Elijah Parish Lovejoy, jornalista presbítero e abolicionista, viveu em um tempo em que a escravidão legalizada assombrava ainda os Estados Unidos da América, e verdadeiramente a maior parte do mundo. Nascido no Maine, radicou-se em Saint Louis, onde publicou panfletos em prol de sua causa libertária. Suas eloquentes manifestações, e de seu tipógrafo negro, John Anderson, provocaram inúmeras represálias, como a destruição repetida de suas prensas, e por fim sua morte, alvejado por um tiro no peito. O Boston Reader, influente periódico, noticiaria que “aqueles eventos causaram uma explosão de indignação em todo o país, sem paralelo desde a Batalha de Lexigton” – em referência a uma das mais aclamadas lutas travadas pela independência, em 17751.
A liberdade de expressão passaria a ser uma causa entrelaçada à abolição da escravidão. O jovem país, naquele ano de 1832, ainda lembrava com clareza do escândalo dos Atos de Sedição e Estrangeiros. Quatro leis, que aprovadas pelo Congresso estadunidense, no governo de John Adams, em 1798, davam ao presidente o poder de aprisionar estrangeiros considerados perigosos e punir jornalistas que o criticassem. Naquele momento histórico, a maioria dos imigrantes apoiava seu concorrente Thomas Jefferson, que após vencê-lo na eleição de 1800, perdoou aqueles que ainda cumpriam pena.
A mistura ruim, de ódio e amargura, cerceadora da liberdade de expressão política, em proteção aos detentores do poder, já é assim velha conhecida personagem na história política e jurídica ocidental. Em um precedente divisor de águas, conhecido por New York Times Co. v. Sullivan2, a Suprema Corte daquele país, em 1964, concluiria, unanimemente, que um jornal não poderia ser processado por criticar uma figura pública – no caso a própria força policial da cidade de Montgomery, no Alabama, em razão de críticas feitas por apoiadores de Martin Luther King – sem a prova de que o sujeito, quando da manifestação, sabia ou tinha fortes dúvidas quanto à veracidade do fato. A lavra do terreno árido e pedregoso da proteção à liberdade de manifestação de pensamento na seara política, aparenta, no entanto, não haver germinado tantas sementes em solo brasileiro, e merecer ainda apurada reflexão.
Era verão de 2016, a poeira vermelha pairava no ar brasiliense, irritava gargantas e fazia narizes sangrarem. Os termômetros anunciavam inusuais 30oC – o mês de maio mais quente da história da cidade. O calor associado à costumeira baixa pluviosidade davam à capital federal um clima semelhante àquele do deserto do Atacama. Estampada nos jornais, a aprovação no Congresso da meta fiscal, o primeiro desafio vencido pelo Presidente Temer, recém-empossado. Simultaneamente, notícias sobre gravações do Senador Romero Jucá, e comentários quanto a uma possível delação premiada do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, ameaçavam enguiçar os esforços governistas, sobrava tensão3.
Na praça dos Três Poderes, naquele dia 25, uma quarta-feira, o Pleno do STF julgaria o Recurso Crime 1.472, oriundo do Estado de Minas Gerais. Absolveria o recorrente de imputações baseadas na lei 7.170/83 – lei de segurança nacional – aprovada na Presidência de João Figueiredo, último governo militar brasileiro, com forte influência de leis semelhantes anteriores e impulsionada pelos ares da própria Guerra Fria e seu maniqueísmo entre capitalistas e comunistas4.
Ao final do julgamento, o min. Luis Roberto Barroso, ladeado por seus pares, pediria a palavra para fazer uma última observação: “Presidente, eu estou de pleno acordo. Gostaria de fazer um breve registro. Já passou a hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira.” No que seria acompanhado pelo Min. Ricardo Lewandowski: “- Vossa Excelência tem razão. E há um aspecto importante, ao meu ver: com a superação da Carta de 69, a maior parte do fundamento constitucional da Lei de Segurança Nacional caiu por terra. Portanto, hoje certamente ela não seria recepcionada pela nova Ordem Constitucional em sua maior parte.” Por fim, o Ministro Marco Aurélio de Mello engrossaria o coro, no mesmo tom: “Já não temos sequer segurança individual”5. Concluiriam, assim, o julgamento, acentuando que o instrumento antiquado oportunizava perseguições como do caso em exame, com a imputação de ofensa à segurança nacional, sem deixar de ressaltar, o Min. Barroso, que desde o governo Fernando Henrique Cardoso tramitava no Congresso projeto de lei pretendendo revogá-la.
Particularmente em relação à liberdade de expressão política, a Lei de Segurança Nacional institui tipos penais de tessitura tão ampla, que têm servido, em pleno regime democrático, à abertura de investigações policiais por manifestações absolutamente destituídas de ameaça à segurança nacional propriamente dita. Incluem-se entre os acusados um ex-Presidente da República, jornalistas de renome nacional, chargistas, advogados, políticos em pleno mandato eleitoral e mesmo juízes. Nenhum desses dispunha de qualquer capacidade, ao menos em tese, para enfraquecer as bases da democracia brasileira. Ao contrário, dialogavam – com bom senso ou não, a depender do ponto de vista do observador –, expunham críticas, ideias e denúncias, contra figuras públicas e seus comportamentos. Ordens de censura a matérias jornalísticas, suspensão de sítios eletrônicos, e mesmo a prisão de manifestantes foram determinadas, em investigações que frequentemente sequer foram objeto de denúncia pelo Ministério Público, ou a despeito de pedidos de arquivamento, em perigoso desvirtuamento da ordem constitucional das coisas6.
Diante da inação do Congresso, e dos fatos mencionados, ao menos quatro Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental já foram ajuizadas por partidos políticos visando o reconhecimento da inconstitucionalidade – ou não recepção – parcial ou total da norma. O Supremo, no entanto, em meio aos acontecimentos políticos de um ano conturbado pela pandemia e às críticas públicas que tem sofrido, se absteve, até o momento, de decidir, seja mediante provimentos liminares, seja pautando os casos para julgamento colegiado, o que parece indicar a momentânea indisposição para a discussão da matéria.
A inexistência de decisão uniforme do STF sobre o tema, bem como a demora pelo Congresso em aprovar novo texto legal, mais consentâneo com a norma constitucional, associam-se à tortuosa gama de precedentes encontrada, em tribunais estaduais e nos tribunais de cúpula. Não há a definição clara dos parâmetros ou standards que devem guiar a possível responsabilidade das manifestações. Enquanto por um lado se reconhece o lugar de destaque da liberdade de expressão, a título de direito fundamental – e não são poucas as decisões em controle objetivo de constitucionalidade sobre o tema, ao mesmo tempo o argumento parece extremamente demagógico, quando a própria Corte subverte a compreensão, ao permitir, monocraticamente, inclusive, o cerceamento de tal liberdade contra atos puramente políticos ou críticas jornalísticas.
A atuação da Corte Suprema, distante ainda de um ideal de estabilidade e coerência, como modernamente preconizado para a formação de orientações jurisprudenciais, abala a sua imagem e apoio públicos, forçando, diante da crítica acentuada da sociedade civil e de excessos nas decisões, a reconsideração de provimentos monocráticos, e o embate entre Poderes ou com a PGR, resultando em consequente enfraquecimento institucional. A reputação judicial7 de uma Corte depende fundamentalmente da visão que os demais Poderes Públicos e a sociedade civil têm de sua postura coerente e distante de relações político-partidárias, atrelada ainda aos limites bem definidos de seu papel constitucional. É certamente esta uma das razões pelas quais nunca se viu tamanha quantidade de pedidos de impeachment de seus Ministros, bem como acumulam-se as críticas ao formato de nomeação.
Para longe de preconizar-se a ausência de qualquer responsabilização para a manifestação de pensamentos – a liberdade de expressão não deve servir de esteio a mazelas e pode funcionar, se não regulada, como instrumento do aprofundamento de discriminações. O momento histórico brasileiro parece exigir a superação da lei de segurança nacional, preferencialmente pelo Congresso Nacional, com a aprovação de substitutivo, mas ao mesmo tempo, a análise, pela comunidade nacional, da experiência extremamente fecunda e mais ampla de outras nações. Estas vêm lidando com tais dilemas desde o início do pós-segunda guerra, v.g. a Alemanha e o confronto com nazistas, ou mesmo desde a aurora do século XIX, nos EUA, com suas dificuldades em lidar com grupos heterogêneos e a construção de parâmetros em constante revisão. A realidade da América latina é cheia de particularidades, que não devem ser olvidadas, mas há referências e modelos que podem nortear uma análise séria do problema.
Por fim, em síntese, a permanência da lei de segurança nos moldes atuais, como um barco que navega na maré de conflitos entre grupos políticos diferentes, ameaça naufragar os esforços pelo próprio avanço nacional. Não é possível a construção de democracia digna sem liberdade de opiniões e de crença. Guiar essa atuação é papel do Legislativo, tão quanto o Judiciário deve estar presente para aperfeiçoar os detalhes e tolher aquilo que seja puramente violência. O momento atual, de certa desordem, é profundamente desagregador. Não colabora para a construção de uma sociedade livre e solidária, já que processos têm sido usados para perseguição de inimigos políticos; para a garantia do desenvolvimento nacional, pois este pressupõe a atuação minimamente coesa dos entes que governam a sociedade que compõe a nação; ou a promoção do bem de todos, sem discriminações. Urge, assim, mais uma vez, o repensar da Constituição Cidadã e das posturas de seus artífices. Constituição é matéria viva, sua sobrevida depende de cuidados diários.
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1- MERRIAM, Allen H. Elijah Lovejoy and Free Speech, Boston, 1987.
2- New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964)
3- El País, disponível aqui, acesso em 27 de junho de 2021.
4- FERNANDES, Reginaldo J. Um breviário da Lei de Segurança Nacional (LSN): do Estado Novo aos primeiros anos do Regime Militar (1930-1969). São Paulo, 2009. Disponível aqui. acesso em 27 de junho de 2021.
5- Supremo Tribunal Federal. Recurso Crime 1472-MG. Inteiro teor disponível aqui. Acesso em 27 de junho de 2021.
6- “Em sua primeira parte, o Diagnóstico da Aplicação Atual da Lei de Segurança Nacional chama a atenção para o número de inquéritos policiais abertos com base na LSN, a partir de levantamento do jornal O Estado de São Paulo: houve um aumento de cerca de 285% entre 2019 e 2020, dois primeiros anos da presidência de Jair Bolsonaro, em relação aos primeiros anos de mandato de seus predecessores, Dilma Rousseff e Michel Temer. A análise do conteúdo de alguns desses casos evidencia o uso de inquéritos instaurados para investigar situações que envolvem críticas públicas dirigidas ao Presidente ou ao Governo Federal. Esses inquéritos são, muitas vezes, arquivados, mas sua instauração – que envolve, na maior parte dos casos, intimações pessoais para depor perante a Polícia Federal – por si só, mostra-se uma evidente técnica intimidatória do poder público, que não afeta a liberdade crítica de quem é investigado, mas tem efeito multiplicador no silenciamento da crítica em geral.” Anna Carolina Venturini (coord.), Conrado Hubner Mendes (coord.), Adriane Sanctis, Danyelle Reis Carvalho, Luisa Mozetic Plastino, Mariana Celano De Souza Amaral, Marina Slhessarenko Barreto, Pedro Ansel. Diagnóstico da Aplicação Atual da LSN. Disponível em: aqui., acesso em 27 de junho de 2021.
7- Cf. Para melhor compreensão do assunto da Reputação Judicial: SAUAIA, Hugo. Como o STF Decide? Rio de Janeiro, Lumenjuris, 2021.