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A execução da nova lei de licitações e contratos pelos pequenos municípios: centralização e atuação cooperativa à racionalização da atividade administrativa

A nova lei de licitações e contratos, lei 14.133/21, instituiu um novo marco normativo licitatório e contratual à Administração Pública, que passa a exigir uma estrutura administrativa diferente do que há.

28/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O Brasil acompanhou na primeira metade da década de 1990 um período de inúmeras emancipações, com a criação de milhares de pequenos municípios (o STF preferiu utilizar o termo "proliferação", por ocasião do julgamento da ADI 2381/RS), os quais atualmente pagam um preço (literalmente) caro pela obtenção de sua autonomia político-administrativa.

Muitos deles que, àquela época, eram distritos ou bairros que possuíam uma população que mal chegava a 5 mil habitantes, hoje possuem menos de 2 mil habitantes, sem desonerar a manutenção da estrutura legislativa e administrativa que consome quase a totalidade dos recursos arrecadados. Pois bem, esse cenário refletirá na execução da Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC), a qual não será possível, nesses entes federativos, sem a cooperação e um esforço conjunto (interfederativo) que demandará desde a instituição de grupos de trabalho à regulamentação do novo marco normativo, com a divisão de tarefas, até a implementação de sistemas integrados de aquisições e contratações públicas.

Atualmente, muitos desses municípios mantêm a descentralização da execução administrativa dos Poderes, possuindo um "departamento" de aquisições e contratações no Executivo e outro no Legislativo. Isso, não raro, é visto não só entre os Poderes, mas também entre as diversas secretarias do Executivo, muitas vezes havendo duas, três ou mais "centrais de compras", ainda que, na prática, as atividades licitatórias e contratuais sejam desempenhadas por um, dois ou três agentes públicos, nem sempre ocupantes de cargos efetivos ("agentes de carreira").

Nesse contexto de descentralização, o princípio da segregação de funções é mitigado ou sequer aplicado, uma vez que não há estrutura de pessoal suficiente para que seja atendido. Há alguns dias, em uma aula sobre a NLLC, um assessor jurídico que atua no legislativo de um município no oeste de Santa Catarina me relatava, assustado, que o quadro de pessoal existente na Câmara Municipal é composto por ele, o diretor, a secretária e uma servidora encarregada da limpeza (quatro servidores). Atualmente, eles exercem, de modo independente, as atividades licitatórias. Isso será possível com a lei 14.133/21?

A nova lei de licitações e contratos traz um enorme rol de figuras essenciais a sua execução, dentre os quais, no mínimo, é possível elencar a autoridade máxima do órgão ou entidade (geralmente o ordenador de despesas), o requisitante, o agente de contratação, o pregoeiro, o agente designado para o leilão, os membros da comissão de contratação, os membros da equipe de apoio, o fiscal de contrato, o gestor de contratos, o servidor ou comissão responsável pelo recebimento definitivo do objeto, o membro do controle interno e o membro da advocacia pública.

Se levarmos em consideração que, no mesmo processo, esses agentes não exercerão essas funções simultaneamente, teríamos a necessidade de, no mínimo, um ordenador de despesas, um requisitante, um agente de contratação (que também pode ser o mesmo agente designado para o leilão ou pregoeiro), uma comissão de contratação (com, no mínimo, mais dois membros, que também poderão atuar como membro de equipe de apoio, pois o terceiro poderá ser o próprio agente de contratação ou pregoeiro), um fiscal de contrato, um gestor de contratos, um agente responsável pelo recebimento definitivo, um membro de controle interno e um advogado público.

Veja que a estrutura mínima para conduzir um processo licitatório da sua instauração até o recebimento definitivo do objeto é de dez agentes públicos, sem contar com os responsáveis pela elaboração dos instrumentos de planejamento e da fase preparatória, como o Plano de Contratações Anual, o Estudo Técnico Preliminar, o Termo de Referência, o Projeto Básico e o Projeto Executivo, que, conforme estabelecidos na NLLC, não serão viabilizados (do modo efetivo) sem a atuação de uma equipe interdisciplinar, composta por profissionais de diferentes áreas do saber.

De acordo com o art. 7º da NLLC, a maioria dessas atribuições deverá ser exercida por servidores ou empregados públicos do quadro permanente (o agente de contratação e o pregoeiro devem ser "agentes de carreira", por força do art. 8º. A comissão de contratação no diálogo competitivo e a banca julgadora no caso de licitação do tipo melhor técnica ou técnica e preço também devem ser compostas por "agentes de carreira", conforme previsão respectiva do art. 32, § 1º, XI e art. 37, § 1º, I, ambos da NLLC).

Tenho visto, por vezes, algumas vozes no sentido de que as exigências contidas nos arts. 7º e 8º da NLLC seriam normas específicas (à União) e não gerais (a todos os Entes federativos). Gostemos ou não, essa defesa não subsiste à interpretação sistemática da lei (sim, a lei continua após o art. 8º e passa pelo art. 176, inciso I, o qual estabelece que os Municípios com até 20.000 habitantes terão o prazo de 6 anos, contado da data de publicação da NLLC, para o cumprimento dos requisitos estabelecidos nos arts. 7º e 8º). Como compreender, com esta clareza, que se tratam de normas aplicáveis especificamente à União?

Diante desse quadro, visualizo que os Entes locais deverão atuar de modo planejado e cooperativo, buscando a racionalização da atividade administrativa, principalmente com o melhor aproveitamento e otimização dos recursos humanos já existentes. Como forma de buscar a viabilidade na execução dos comandos normativos, o legislador geral lançou mão de algumas ferramentas, dentre as quais destaco 1) a execução centralizada das atividades licitatórias no âmbito do Ente federativo; 2) a instituição de centrais de licitações e contratos consorciadas; e 3) a possibilidade de realização do sistema de registro de preços interfederativo (SRPI).

O art. 181 da NLLC determina que os Entes federativos instituirão centrais de compras, com o objetivo de realizar aquisições em grande escala para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades da nova lei. É comum vermos, ao menos no Estado do Rio Grande do Sul, muitos municípios relativamente pequenos (com menos de 20 mil habitantes) com várias unidades gestoras (em alguns, cada secretaria é uma unidade gestora e possui seu próprio setor de licitações).

A racionalização para o cumprimento da nova lei, principalmente nos pequenos municípios, exige que não apenas no âmbito do Executivo haja a centralização das aquisições e contratações (retirando-se essa atribuição das diversas secretarias), mas também entre os Poderes, com a instituição de uma central única de aquisições e contratações municipal.

Essa centralização não só propiciará a denominada economia de escala, mas também a otimização de recursos humanos, que ocorrerá com a concentração dos agentes que até então atuavam descentralizados, os quais poderão ser "reforçados" com a cessão de agentes do Legislativo que desempenhavam as "funções licitatórias", todos atuando conjuntamente nessa "central de compras unificada".

Essa centralização, com a execução conjunta das atribuições licitatórias e contratuais dos Poderes Legislativo e Executivo em nada fere a autonomia e a independência dos Poderes, pois se está exclusivamente a tratar da execução centralizada da função administrativa, objetivando-se viabilizar o cumprimento da sistemática implementada pela lei 14.133/21. Ressalta-se que a ordenação das despesas (pelo Presidente da Câmara e pelo Prefeito Municipal/Secretário Municipal), bem como a origem orçamentária dos recursos continuação inalterados.

Para os municípios com até 10 mil habitantes, o § único do art. 181 da NLLC previu a preferência da instituição de centrais de compras consorciadas, o que entendo que seria melhor realizada com a instituição de uma associação pública (autarquia pública interfederativa, de acordo com o art. 41, IV, do Código Civil), com a cessão dos agentes que já desempenham as atribuições licitatórias nos municípios consorciados (art. 4º, § 4º, da lei 11.107/2005) para a entidade que passará a integrar a Administração Pública indireta de todos esses Entes (art. 6º, § 1º, lei 11.107/2005).

O consórcio licitatório (que já é utilizado atualmente por muitos municípios), com personalidade jurídica de direito público (art. 6º, I, da lei 11.107/2005), passará a licitar para todos os Entes consorciados, o que, volto a dizer, propiciará não apenas a economia decorrente das compras em grande escala, mas principalmente a otimização de recursos humanos para o desempenho das atribuições indispensáveis à execução da nova lei.

Destaco que, embora a NLLC tenha trazido a utilização preferencial das centrais consorciadas para os municípios com até 10 mil habitantes, o dispositivo não comporta interpretação excludente no sentido de inviabilizar a instituição de "consórcios licitatórios" também pelos municípios que possuam quantum populacional maior.

A terceira ferramenta cooperativa que ajudará na otimização das atividades licitatórias, é a instituição de Sistema de Registro de Preços Interfederativo (SRPI), o qual possuirá um Ente federativo gerenciador e outros como participantes. Com isso, mediante planejamento e coordenação, os municípios poderão dividir atribuições, de modo que cada Ente fique responsável por gerenciar determinado SRPI (como material de expediente, material de limpeza, gêneros alimentícios, medicamentos) estabelecendo uma espécie de escala ou rodízio na divisão das tarefas.

A possibilidade da realização do Sistema de Registro de Preços Interfederativo encontra previsão no art. 86. Da NLLC, o qual prevê que o órgão ou entidade gerenciadora deverá, na fase preparatória do processo licitatório, para fins de registro de preços, realizar procedimento público de intenção de registro de preços para, nos termos de regulamento, possibilitar, pelo prazo mínimo de 8 (oito) dias úteis, a participação de outros órgãos ou entidades na respectiva ata e determinar a estimativa total de quantidades da contratação.

Assim, o município "gerenciador" divulgará sua "Intenção de Registro de Preços – IRP", para que outros possam ingressar no SRPI como "participantes", passando suas demandas para serem incluídas na licitação promovida pelo primeiro. Obviamente que a melhor operacionalização do SRPI se dará entre municípios vizinhos, principalmente para obter melhores preços (ainda que a NLLC, no art. 82, inciso III, alínea "a", tenha previsto a possibilidade de cotação de preços diferentes em virtude de entrega ou execução do objeto em lugares diferentes) e facilitar a coordenação.

O SRPI possui uma vantagem em relação à central de compras consorciada, pois dispensa a instituição de qualquer entidade, ou seja, não há a necessidade de criação de uma associação pública que integrará a Administração Pública indireta dos Entes consorciados.

No que tange ao SRP, entendo que o legislador geral poderia ter sido mais "generoso" com os municípios, permitindo a utilização da "carona" entre eles, mas vedou expressamente a "carona horizontal" no art. 86, § 3º, da NLLC, ao prever que, caso não participem da licitação desde o início, poderão aderir, como "não participantes", à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital.

O legislador preservou o princípio da verticalidade, possibilitando a "carona municipal" em ata de registro de preços (ARP) estadual, distrital ou federal, bem como a "carona estadual ou distrital" em ARP federal, vedando, todavia, no art. 86, § 8º, a "carona federal" em ARP estadual, distrital ou municipal.

Por conseguinte, destaco dois pontos importantes: primeiro, que o sistema de registro de preços interfederativo não fica adstrito aos municípios, havendo a possibilidade, por exemplo, de um SRPI gerenciado pelo Estado, tendo como participantes inúmeros de seus municípios; segundo, que, embora haja a vedação de um município aderir à ata de outro (carona horizontal), há a possibilidade de aderir à ata gerenciada por órgão ou entidade federal, distrital ou estadual (carona vertical), o que, indubitavelmente, auxiliará na racionalização procedimental.

Em sede conclusiva, há de se dizer que a lei 14.133/21 coloca um desafio aos municípios brasileiros no que tange a sua execução, o qual não será cumprido sem a atuação planejada e cooperativa, para a qual a utilização dos instrumentos acima (instituição de centrais de compras unificadas, implementação de consórcios públicos licitatórios e a utilização do sistema de registro de preços interfederativo) se demonstra indispensável.

Para tanto, há, de imediato, a necessidade da instituição de grupos de trabalho entre esses Entes federativos que, com uma atuação político-administrativa de cooperação, já deverão iniciar os trabalhos de levantamento de suas dificuldades, análise das necessidades para a estruturação necessária e regulamentação da NLLC.

Felipe Dalenogare Alves
Pós-doutorando, doutor, mestre e especialista em Direito. Professor de Direito Administrativo, Constitucional e Direitos Humanos. Autor e Palestrante. Instagram: @prof.felipedalenogare

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