Migalhas de Peso

Uma breve análise sobre o PL 10.887/18, da Câmara dos Deputados

Há quem diga sobre um afrouxamento no combate à corrupção na administração pública; por outro lado, há quem sustente um realinhamento da proposta à proporcionalidade.

25/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Nesses últimos dias, o PL 10.887/18, que se propõe à alteração da lei de improbidade administrativa vigente (lei 8.429/92 - "LIA"), foi presenteado com intensos debates e opiniões, favoráveis e contra ao seu prosseguimento no formato em que se encontra.

Há quem diga sobre um afrouxamento no combate à corrupção na administração pública; por outro lado, há quem sustente um realinhamento da proposta à proporcionalidade, fazendo com que as condutas ímprobas sejam apenas punidas a partir de condutas dolosas efetivamente comprovadas em processos judiciais competentes, com a efetiva demonstração da intenção de o agente público ter atuado com desonestidade.

Hoje, a LIA prevê, por exemplo, que atos de enriquecimento ilícito e que causam prejuízo ao erário podem ser punidos mediante comprovação de condutas culposas (negligência, imprudência ou imperícia) ou dolosas. E isso, a meu sentir, torna todo e qualquer ato irregular, tomado como culposo, inclusive o mero erro administrativo, passível de responsabilização pela lei de improbidade administrativa, que deveria se dar, apenas, quanto ao ato ilícito qualificado pela intenção (dolo) de lesar ou enriquecer indevidamente à custa do poder público, assim como de violar princípios da administração pública.

Em se tratando de legislação que, penso, possui poder punitivo/repressivo tão "potente", no campo prático, quanto ao poder punitivo-criminal, as vezes até mais severo/amplo, creio que tornar as condutas puníveis à luz do dolo, da vontade livre e consciente de produzir um resultado ou de assumir riscos de produção desse resultado, torna o jogo mais justo e equilibrado. Afinal de contas, partimos do equívoco pressuposto de que a sociedade brasileira jaz em desonestidade, e isso, me parece, ainda não é a regra. Como diz o ministro Marco Aurélio (STF), deve-se partir, sempre, da boa-fé; não se presume a má-fé, pois esta há de ser exaustivamente comprovada.

Hoje, o que vemos é um aparente império do "direito administrativo do medo", do direito puramente persecutório, que acaba por impedir, por vezes, a própria concretização do princípio constitucional-administrativo da eficiência. Vejo que muito se fala e defende sobre punibilidade, mas pouco se debate e constrói sobre como levar a efeito o caráter educativo, preparatório, pelo qual são forjados os cidadãos e administradores do bem.

Nesse sentido, agentes públicos bem intencionados podem, estranhamente, ser punidos pelo erro na medida e em igual equivalência aos atos de desonestidade dolosos. Não se quer aqui defender a impunidade, e não é disso que se trata; o que se busca é que a punibilidade se dê à luz de justo processo e das proporcionais e necessárias sanções, "matematicamente" adequadas às condutas ilícitas comissivas ou omissivas devidamente comprovadas, dentro do desejado fair play processual.

E, como não poderia (eu) deixar de rememorar aqui neste breve texto, o fator educação é o mais relevante e aquele que deve ser priorizado na pauta em comento. Sociedade educada é sociedade consciente de suas obrigações cívicas e morais, o que se reflete para o campo da atuação limpa do poder público. Falamos sempre sobre o final da linha, mas parece que pouco estamos preocupados com o início do caminho, com o nascedouro dos problemas, com o entendimento e solução pedagógica.

Um único ponto que destoou no PL em apreço, e que realmente me parece fazer neutralizar a atuação da fazenda pública na proposição das demandas judiciais de improbidade, e por consequência fustigar os artigos 131 e 132 da Constituição Federal, foi a proposta de exclusão da atuação dos respectivos órgãos de advocacia pública do rol de legitimados ativos para o oferecimento das ações de improbidade administrativa. Quem sabe, com a análise do projeto, agora pelo Senado da República, possa esse item ser objeto de reavaliação, mas, no aspecto de mérito, parece-me que a casa legislativa proponente acertou ao prever que as condutas ímprobas, em semelhança ao que previsto como regra no direito penal, serão punidas apenas e mediante a comprovação de atos dolosos, intencionais, de modo a deixar o administrador público médio - o honesto, presumivelmente - confortável a perseguir a satisfação das necessidades públicas por meio da prática de atos administrativos. Afinal de contas, fazemos parte de um mundo evolutivo, em transformação, e a legislação há de seguir o Homem e a sociedade em suas necessidades.

Todo esse pensamento possui um equilíbrio comparativo, a saber: se no direito penal pune-se, como regra, condutas dolosas, na improbidade, que possui penas tão graves quanto, não deve ser diferente. Ademais, um ato irregular administrativo já pode proporcionar ao agente infrator uma gama de outras responsabilizações concorrentes e independentes entre si, nas esferas do controle, funcional-laboral, civil e do próprio criminal. Logo, é papel do legislador não permitir que as penas por improbidade, que se somarão às demais, reduzam-se a penas cruéis, degradantes, e que inviabilizem, inclusive, seu próprio cumprimento (imediato) a contento e o consequente caráter (mediato) pedagógico.

Ante tais considerações, creio seja viável e salutar à sociedade a nova modulação legislativa pretendida para a LIA. Não podemos pautar uma regra pelas exceções que ocorrem e banalizar o sistema punitivo, pois acredito que, em essência, o brasileiro -médio é correto e honesto, ainda que esse meu pensamento possa parecer, a muitos, utópico. Os casos recentes de corrupção e bandalheira vistos na administração pública se consubstanciam em atos isolados e, portanto, não devem ser o termômetro à verificação e previsões normativas sobre aquilo que ordinariamente acontece na sociedade. O discurso do "combate à corrupção", de há muito, parece um discurso repetido em formato de mantra... quer a sociedade, e ela exige, soluções de piso, prioritariamente educativas, sem descurar, em momento posterior, sobre a importância de ser ter um bom e justo sistema sancionatório.

Já é chegada a hora de fazemos mais pelo nosso país, e tudo o que é bom e justo demanda-nos mais "neurônios" construtivos, e deve passar pelo crivo primário e essencial da boa educação, contemplando-se sanções, obviamente por serem necessárias, dentro de um script equilibrado, dando a cada qual a resposta mais justa possível.

Alessandro Ajouz
Advogado. Exerceu as funções de Advogado da Apex-Brasil e do SESCOOP-Nacional (entidades do Sistema "S") entre os anos de 2012 e 2019.

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