Migalhas de Peso

As alterações na lei de improbidade administrativa e o mito do estímulo à impunidade

Vale lembrar que improbidade administrativa e corrupção são institutos jurídicos distintos.

28/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A aprovação do PL 10.887 de 2018, que altera a lei 8.429/92, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa (LIA), convulsionou muitos segmentos do mundo jurídico na última semana. E o mito incialmente criado é o de que haverá retrocesso no combate à corrupção.

Nesse sentido, desde logo, é preciso destacar que se trata, como dito, um verdadeiro mito, uma ficção criada e sem qualquer lastro de veracidade. É um esperneio gratuito e que apenas atrapalha a evolução – e, mais, desvia o olhar do que realmente importa: o meritório projeto de lei aperfeiçoa o sistema do direito sancionador administrativo a partir da incorporação do que a jurisprudência já balizou nos últimos anos em tema de improbidade administrativa.

Desmistificar, portanto, os equívocos é o dever de (e do) ofício. Com efeito, tomemos por base as principais mudanças, entre as quais destacam-se as seguintes:

1. Deixa de haver a possibilidade de incurso em atos de improbidade na modalidade culposa;

2. O projeto de lei passa a prevê rol taxativo dos atos que configuram violação aos princípios da administração (art. 11);

3. Há a previsão da elevação do prazo prescricional, ao tempo que se passa a prever a prescrição intercorrente, além de melhor delinear os marcos em si;

4. Passa-se a admitir o ato de improbidade administrativa de menor potencial ofensivo;

5. O ente lesado deixa de ser legitimado ativo para a propositura da ação;

6. Suprime-se a fase de defesa prévia;

7. Traz critérios para conciliar as sanções por ato de improbidade com as penas aplicáveis em outras esferas de responsabilização;

8. Delimita a responsabilidade dos sócios e diretores de empresas, passando a prever a necessidade de demonstrar a efetiva participação da prática do ilícito e do auferimento do benefício;

9. A proibição para contratar com o Poder Público passa a ser apenas em casos excepcionais;

10. Deixa-se de presumir o perigo da demora no contexto da decretação de indisponibilidade e de outras medidas cautelares.

Como se vê, o projeto de lei não beneficia o desvio, tampouco incentiva o cometimento de atos que violam a probidade administrativa, geram enriquecimento ilícito ou acarretam prejuízo ao erário. É necessário ter presente que a inovação legislativa não criará um sistema mais tendente à corrupção.

Deve-se consignar que a Lei de Improbidade Administrativa vigente é de 1992, e há quase 30 anos ela vigora sem que, necessariamente, tenha debelado a corrupção na administração pública. Ou seja, não é a alteração da lei que irá recrudescer o combate à corrupção, já que a prática de improbidade depende, eminentemente, da vontade do ser humano.

É neste contexto, a propósito, que a alteração legislativa proposta enumera a primeira e, quiçá a maior, alteração: determina que os atos que gerem enriquecimento ilícito (art. 9º), acarretem dano ao erário (art. 10) e violam princípios (art. 11) dependem da presença do elemento subjetivo, isto é, da demonstração da livre e consciente vontade de incorrer na prática no ato de improbidade administrativa. Ou seja, apenas reflete o que prevê a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, modulando apenas a impossibilidade de haver condenação na modalidade culposa.

Por isso, a grande questão não é compreender o aprimoramento como se fosse um movimento para satisfazer a impunidade, não podendo importar o mito do afrouxamento do sistema em si.

De mais a mais, vale lembrar que improbidade administrativa e corrupção são institutos jurídicos distintos.

Enquanto a corrupção se coloca como a conduta tipificada nos artigos 317, 333 e 337-B, todos da Lei Substantiva Penal, os quais descrevem, respectivamente, as três principais modalidades do delito, quais sejam, a corrupção passiva, a corrupção ativa e a corrupção ativa em transação comercial internacional, a improbidade administrativa implica o rompimento do elo da legalidade que rege a administração pública.

A leitura desatenta da lei 12.846/13 (conhecida por Lei Anticorrupção) pode levar à equivocada ideia de que as condutas tipificadas em seu artigo 5º sejam equivalentes aos tipos penais ou, mesmo sinônimo de improbidade administrativa.

O conceito jurídico "corrupção" tem vertente criminal (corrupção e corrupção ativa), enquanto a Lei Anticorrupção não a define, mas se consubstancia em mais um instrumento de combate a ela. Como corolário do quanto se disse, observe-se que a incidência da lei 12.846/2013 independe da participação de funcionário público, tendo como destinatárias as pessoas jurídicas de direito privado.

Isto é, envolve uma caracterização que, embora devidamente tipificada, está ligada a fatores e ocorrências como (i) promover vantagem indevida a agente público, (ii) subvencionar prática de atos ilícitos ou mesmo (iii) praticar atos que atentem contra o processo licitatório ou aos contratos administrativos.

É nesta perspectiva que a inclusão do § 1º ao art. 11 é igualmente digna de nota, na medida em que, se aprovado o projeto de lei, galvanizará conceitos fundamentais, notadamente porque extirpa a forma culposa, e passará a demandar que para a ocorrência de violação aos postulados principiológicos apenas se dará "§ 1º (...) quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade". 

Portanto, nem todo o ato que possa ser tipificado como ímprobo é um ato de corrupção, mas todo ato de corrupção seguramente é um ato ímprobo.

Assim, prevalece inalterado – mas reforçado pela perspectiva de lege ferenda –, a máxima que nem toda irregularidade é uma improbidade, embora toda improbidade contenha uma irregularidade.

Ocorre, porém, que, como forma de garantir a correta persecução civil, o órgão acusador deverá perquirir, necessariamente, a deliberada e consciente vontade do agente em violar os princípios da administração pública, com o espoco de causar dano ou prejuízo ao erário. Este é ponto de partida do projeto de lei.

Ademais, é válido considerar que as alterações em relação à lei de improbidade administrativa podem sanar aquelas situações cotidianas da Administração Pública, que acabam consideradas erroneamente como condutas ímprobas, como é o caso, daqueles atos que atentam contra a moralidade administrativa, mas que o  agente não agiu de forma dolosa, de modo que estará presente o efetivo maltrato à moralidade administrativa ou ao patrimônio público.

Assim, a nova redação do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa especifica quais as condutas enquadráveis na modalidade de improbidade que atenta contra a moralidade administrativa, a exemplo de (i) violar sigilo de informação ou fazer vazar informação privilegiada, pondo em risco a segurança da sociedade; (ii) negar publicidade aos atos oficiais; (iii) frustrar a imparcialidade concorrencial de certames; (iv) não prestar contas obrigatórias; (v) praticar nepotismo; (vi) promover publicidade pessoal com recursos públicos.

O que se pode concluir, portanto, é que não se trata de "enfraquecimento" ou "afrouxamento" do combate à corrupção. Tão somente se busca o equacionamento do diploma normativo de combate à improbidade administrativa às novas regras do ordenamento pátrio, coadunando a sua interpretação ao Século XXI.

Na prática, portanto, ter-se-á o aperfeiçoamento da lei para que a norma reflita a melhor exegese dos tribunais superiores, além de trazer avanços que protegem, por exemplo, a coletividade, como é o caso do aumento do prazo prescricional para o ajuizamento da ação correspondente.

Além disso, vale dizer o projeto de lei extirpa a nefasta interpretação do dano in re ipsa, ou dano presumido, adotando a racionalidade do que significa "dano", equivalente à diminuição patrimonial, prejuízo concreto, cristalizando assim a impossibilidade de responsabilização objetiva do agente, sendo – repita-se – necessária a demonstração, sempre, do elemento subjetivo consistente em dolo.

Ainda no esteio de dar racionalidade ao conceito de improbidade, deve-se lembrar que o ato praticado com base em orientação prevalente em Cortes de Contas e jurisprudência não carrega em si o dolo, ínsito à caracterização do ato de improbidade administrativa, o que já é insuscetível de responsabilização.

Digno de detalhe é a revogação do dispositivo que dava suporte ao entendimento de que era suficiente a demonstração de indícios razoáveis de prática de atos de improbidade e autoria, para que se determinasse o processamento da ação, em obediência ao princípio do in dubio pro societate, a fim de possibilitar o maior resguardo do interesse público.

O sistema jurídico brasileiro não admite, tampouco deve tolerar, a possibilidade de prolação de decisão de recebimento de ação de improbidade administrativa com apoio exclusivo em elementos indiciários, única e unilateralmente produzidos na fase de Inquérito Civil ou de procedimento de investigação criminal instaurado pelo Ministério Público, sob pena de violação ao constitucionalismo garantista, que obviamente não concebe um sistema de lesão aos direitos e garantias fundamentais.

O cotidiano de inúmeros administradores públicos e empresários que atuam no segmento da infraestrutura e administração pública constantemente é estremecido por ações de improbidade administrativa, a despeito do ato ou da contratação haverem sido praticados com base em pareceres técnicos e jurídicos aderentes a entendimentos acolhidos e firmados em Tribunais de Contas e Poder Judiciário.

Talvez seja um alento para o que tanto se preocupa – e que pressiona o custo Brasil – que é a insegurança jurídica de quem investe e o medo de que milita na administração público, que se traduz em quase um ato de fé. A reforma é necessária e está longe de significar, como alguns tem dito, como sendo a Lei da Impunidade.

Portanto, a simples leitura do projeto denota, em verdade, uma evolução legislativa e não está associada à impunidade, tratando o texto aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado para apreciação uma medida meritória e que gera um ajuste na rota, permitindo que os abusos sejam ainda mais evitados e que apenas aqueles que sejam efetivamente ímprobos, sejam responsabilizados.

É necessário, assim, afastar os mitos da impunidade e do afrouxamento ao combate da corrupção. Não é isso que está em jogo. O que está verdadeiramente em jogo é o Estado de Direito, que respeita as liberdades e garante uma sociedade em que segurança jurídica é norte nas relações humanas.

Evane Beiguelman Kramer
Advogada do escritório Dal Pozzo Advogados.

Thiago Pedrino Simão
Advogado, Chefe de Gabinete de Deputado na Câmara dos Deputados e Diretor de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura – IBEJI.

Paulo Henrique Triandafelides Capelotto
Advogado sênior e sócio do escritório Dal Pozzo Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Atualização do Código Civil e as regras de correção monetária e juros para inadimplência

19/12/2024

5 perguntas e respostas sobre as férias coletivas

19/12/2024

A política de concessão de veículos a funcionários e a tributação previdenciária

19/12/2024

Julgamento do Tema repetitivo 1.101/STJ: Responsabilidade dos bancos na indicação do termo final dos juros remuneratórios

19/12/2024