A televisão, especialmente na dramaturgia, constrói um ideal de mulher, tanto no plano físico quanto em outras dimensões humanas, como a emocional, profissional e social, reproduzindo uma imagem que passa a ser, uma vez padronizada, a real e desejável. Agrega-se ao corpo padronizado um comportamento social determinado. Na imagem divulgada, a mulher brasileira não se vê retratada porque a imagem não contempla a diversidade. Está presente na dramaturgia televisiva, nos programas cômicos, nos telejornais, a naturalização da discriminação contra a mulher, sua reprodução e reforço, sempre predestinando a mulher a papéis sociais seculares como a maternidade a sexualidade vigiada e reprimida, o compromisso com o casamento a não visibilidade profissional.
Os mais diversos campos do conhecimento, filosófico, histórico, científico e artístico, apontaram ao longo da história para a naturalização desta discriminação de classe e de gênero reforçada pela televisão como uma garantidora das ideias e valores, contributivas de uma consciência alienada, e, também como linha auxiliar da reprodução da ordem vigente.
As feministas no campo teórico e nas lutas visibilisaram essa naturalização da opressão e pré-determinação de papéis sociais partindo de uma categoria, a de gênero (depois classe e raça-etnia) nas relações entre homens e mulheres como uma construção histórica e social, não natural, e, portanto, destrutível da mesma forma que foi construída. A categoria desnudou as relações de poder assimétrico entre homens e mulheres mas a mídia, a partir de uma visão mercadológica, ainda divulga e legitima valores levando à construção (ou desconstrução) da mulher real.
A televisão constrói essa mulher, recortando e retalhando seu corpo. Como a ciência médica em sua história pôde construir e implantar membros do corpo humano, no campo estético corporal ocorreu o mesmo: recorta-se o corpo feminino, em partes modelando-o padronizando-o. Depois esse aparelho ideológico do Estado vende essa imagem com um produto comercial ou como o próprio produto promovendo a venda de necessidades ainda não existentes, (o capital precisa vender) determinando comportamentos e orientando vidas.
Não por mero acaso nas novelas das oito/nove nunca há conflito de classe. Os dois mundos cenográficos, o rico e o pobre, durante uma novela sempre se cruzam. São cordialmente amigos, casam-se entre si, frequentam os mesmos lugares, portanto aqui capital e trabalho, contrariando a vida real, se entendem perfeitamente sem qualquer conflito.
A maternidade na teledramaturgia ainda é colocada como uma imposição como um valor máximo para a mulher valorizada por sua capacidade reprodutiva Se infiel – heroína ou vilã – logo são encontradas formas de puni-la.
Louva-se a heroína da novela, como cuidadora (dos filhos, do marido/companheiro, dos doentes, da casa). Quietas e submissas, com um bom comportamento são premiadas ao final da novela com um bom casamento. Já as vilãs, em geral, têm boa convivência com sua sexualidade, mas, claro, elas têm destino certo: morrem no final da novela. Nada animador! Idosas, salvo raríssimas exceções, não apresentam telejornais.
Já para a juventude, fica evidenciada a questão de classe, se negra e pobre, muitas vezes é apresentada como promíscua reservando-se para a juventude branca, promissoras carreiras de modelo e de empresárias do futuro. Hoje a indicação para a mulher pobre é o empreendedorismo como uma receita infalível e fácil para a sobrevivência (e não, por exemplo, a empregabilidade).
A avalia-se, numa perspectiva conservadora, o papel social da mulher – heroína ou vilã – a partir de valores morais e religiosos, (sua honra, honestidade e até religiosidade). Os modelos de comportamento sexual têm o prisma da cultura ocidental cristã e judaica- ignorando-se que a sexualidade é também uma construção histórica e cultural (fatores familiares, tradições, práticas religiosas, etc.), sempre com a ideia do paraíso perdido, do perdão, da culpa e da repressão.
Fala-se em pluralidade e diversidade, mas a beleza, na televisão tem padrão único: focam superficialmente a diversidade dos tipos físicos, dos modelos sociais, das profissões exercidas pelas mulheres. Enfim, não nos vemos retratadas...
Raros são os jornalistas negros trabalhando em frente às câmeras de TV (pública ou privada), uma situação que vem mudando. Somente em 2004, uma atriz negra (Taís Araújo), foi protagonista principal de uma telenovela brasileira - "Da cor do Pecado". Mulheres negras durante décadas ou eram escravas em novela de época ou empregadas domésticas quase sempre sem direito à fala. O corpo negro ainda é segregado em espaços pré-determinados: esportes, entretenimento, trabalhos domésticos, fora do espaço público no mercado de trabalho e nas relações sociais.
No trabalho
As heroínas das novelas das oito-nove há mais de quarenta anos, não se realizam profissionalmente sem o casamento ou sem uma mínima ajuda masculina. Raramente são vistas trabalhando (somente em situações emergenciais, para compor renda da família ou para uma simples composição de uma cena). São apresentadas como não muito competentes e assim temos o reforço ideológico da divisão sexual do trabalho no modo de produção atual (e, ao longo da história a partir de cada forma de produção e reprodução).
Se não há razões na dramaturgia novelística para mostrar alguém trabalhando, por que os homens têm visibilidade no trabalho? Outro aspecto: naturaliza-se que o trabalho dos mais pobres, (empregadas domésticas, motoristas, por exemplo) não têm horário para descanso e encerramento das atividades.
O direito à imagem – Espaço eletromagnético
O direito à imagem não é um problema só de celebridades nem só de indivíduos. São difusos e coletivos, constitucionais, internacionais e humanos os direitos das mulheres pela Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993) com aplicação inicial em 1994 sendo o Brasil dela signatário com ressalvas, desde outubro de 2009 (decreto 7030).
A Lei Maria da Penha cuidou da questão da imagem da mulher afirmando no seu artigo 8º:
III - o respeito º., nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do art. 1º , no inciso IV do art. 3º e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal .
O controle social mídia - Espaço eletromagnético
O professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo aponta a existência da natureza jurídica de um bem que não é nem público e nem privado: o bem difuso.
O legislador constituinte no artigo 5º., LXXIII, assim como no inciso III do artigo 129 distinguiu os bens pertencentes ao patrimônio público e o meio ambiente, tratando então de forma diferenciada o bem público, tendo como titular o Estado e o difuso cuja titularidade é do povo. Esse bem, ambiental, de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, diz respeito a uma coletividade de pessoas indefinidas, (critério transindividual). Ofensas atingem coletividades e, nesse sentido, as mulheres que têm o direito à informação captada através de meios que usam o espectro eletromagnético. O direito de antena é direito de "captar e transmitir comunicação, o que é feito por via de ondas, através do espectro eletromagnético (bem ambiental) de modo que o direito de antena possui natureza jurídica de direito ambiental". (FIORILLO, p.156) e, como tal, a utilização das ondas não pode ser objeto de apropriação. A titularidade é do povo o Poder Público apenas o administra.
O uso dos canais de televisão por determinação constitucional é uma concessão pública e o espaço eletromagnético, um bem ambiental, portanto, do povo, então o Estado tem que, ouvindo as mulheres, ter políticas públicas sem ser permissivo à reprodução da discriminação.
Pensemos o mundo das comunicações não só de forma metafísica ou filosófica, ou do ponto de vista crítico no campo das artes e da estética. Falar em controle social da comunicação não significa restrição do direito à liberdade de expressão, pensamento e de produção, ofensa à democracia: apenas significa que tais direitos são limitados constitucionalmente.
A verdadeira democracia pressupõe a defesa, pelos interessados, de seus valores de classe, culturais, éticos e morais, e não a mulher em constante relação de subordinação e inferioridade que fere a dignidade da pessoa humana e reforça a proposital confusão entre um corpo feminino e um carro ou uma garrafa de cerveja.
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FIORILLO, Celso Antonio Pacheco – Curso de Direito Ambiental Brasileiro, Editora Saraiva – 3ª Edição Ampliada, 2002 – São Paulo- ISBN 85-02-03779-X.
LIMA, Mercedes, A desconstrução da Imagem da Mulher na Mídia - Monografia no MESTRADO-UNIMES (Santos – São Paulo) outubro, 2007.