Criado pela Constituição de 1988, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) moureja à sombra do centenário Supremo Tribunal Federal (STF) e por isso suas decisões não são acompanhadas com a atenção e o escrutínio dedicados ao par mais vetusto e soberano. Nessas três décadas de existência, contudo, o STJ tem julgado causas que tanto se destacam pela relevância das questões de Estado, como pela miudeza dos conflitos cotidianos da sociedade, com foco na administração da Justiça de forma a fazer jus a seu epíteto de Tribunal da Cidadania.
Como exemplo eloquente dessa trajetória institucional, inscreve-se a sessão de 1º de junho, em que a 6ª turma julgou mais um caso do chamado crime de bagatela e trancou a ação penal na qual um homem fora condenado por furto em supermercado de Minas Gerais. A "coisa alheia móvel" subtraída, como define o artigo 155 do Código Penal, foram dois míseros steaks de frango, cada um avaliado em R$ 2,00. Tanto quanto a decisão, já rotineira no STJ, sobressaíram para os anais do Direito Penal as reflexões humanistas dos ministros acerca da justiça elitista, banal e punitivista que tribunais de 1ª e 2ª instâncias ministram ao populacho.
"Dizer que essa política que estamos adotando diminui a criminalidade é brincadeira (...). Estamos num caminho completamente equivocado e completamente errado. E esse caso é a prova viva disso. Onde já se viu o STJ perder tempo para julgar um habeas corpus para trancar uma ação onde o valor do furto foi de R$ 4,00? Quanto que se gastou com esse processo?", desabafou com tom e verve de um autêntico pretor romano o ministro Sebastião Reis Júnior, segundo relatos de sites jurídicos. No subtexto de seu comentário, cintilou o sábio brocardo jurídico minimus non curat praetor, o magistrado não trata de insignificâncias.
Num país de justiça morosa e cara, sobrecarregada por 114 milhões de processos, alentada pela persecução penal inflexível que abarrota as prisões e custeada a peso de ouro pelos impostos pagos inclusive pelo miserável que furta um pão para comer, a insignificância entulha já não os escaninhos, mas os discos rígidos dos computadores dos tribunais. O ministro destacou o crescimento galopante de casos levados à 3ª seção do STJ, que julga matéria penal. De 84,2 mil em 2017, aumentaram para 124 mil em 2020, com previsão de 131 mil em 2021. Tratando-se de um tribunal superior, que julga recursos excepcionais, a pauta é alarmante, ainda mais porque muitíssimos dos recursos destinam-se a corrigir excessos flagrantes nas decisões de juízes e desembargadores, boa parte delas em descompasso com matérias já pacificada pelo próprio STJ, a exemplo dos crimes de bagatela.
Recentemente, o ministro Rogério Schietti criticou tribunais estaduais de Justiça, principalmente o de São Paulo, por ignorarem a jurisprudência do STJ que sinaliza a aplicação do princípio da insignificância nos casos em que o valor do bem furtado é inferior a 10% do salário mínimo. Relator do processo em tela do furto dos bifinhos de frango, Schietti fez questão de levar o caso ao colegiado para, mais uma vez, reiterar a jurisprudência tão desprezada por juízes-verdugos, desses que tanto sucesso fazem em parte da mídia. "Está-se utilizando o sistema de Justiça Criminal para perseguir quem furtou R$ 4,00 de alimentos, que representam 0,5% do salário mínimo à época", criticou.
A carapuça serviu ao representante da acusação no Tribunal. "Esse caso é chocante", admitiu o subprocurador da República Domingos Sávio Dresch da Silveira, fazendo reparo aos colegas da instituição que insistem acusar e pedir a condenação de pessoas que cometem crimes insignificantes até para matar a fome, como no caso tratado: "Fui ao processo e fiquei constrangido. Enquanto membro do Ministério Público, quero expressar profundo constrangimento que a instituição não tenha, em termo nacional, se organizado para criar uma consciência mínima de prioridade na persecução penal."
Alheios à evolução do Direito Penal, que prioriza a intervenção mínima do poder punitivo do Estado e assegura a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, muitos agentes públicos ainda só enxergam a letra fria da lei, quase sempre contra despossuídos, ignorando o vasto elenco das causas de isenção de pena, de atenuantes, da jurisprudência e da doutrina que humanizam a dogmática jurídica. Esquecem-se de que atrás do processo está um ser humano, muitas vezes chefe de família, com crianças a passar fome, morador de rua, sem emprego ou qualquer fonte de renda. A bagatela nesses casos ocorre, invariavelmente, em supermercado, praticada por miseráveis, daí porque os juízes não lhes aplicam a pena de multa, pois sabem que esses réus só podem pagar com a liberdade.