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NFT e o retorno dos problemas jurídicos decorrentes das "não negociações"

Na prática a disponibilização das criações como uma NFT tenta "desburocratizar" a relação entre as partes que tem interesse em contratar.

23/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

NFT, non-fungible token, ou token não-fungível, são as palavras do momento. Com o advento da pandemia a transformação digital foi acelerada em todos os setores, inclusive no público que cada dia incentiva mais a utilização de novas tecnologias, com especial destaque para a blockchain.

Considerando que a NFT se utiliza desta tecnologia não seria surpresa o seu sucesso. Tal qual já acontece com a criptomoeda a possibilidade de transações sem a intermediação de terceiros, a disponibilidade online de um conteúdo e ainda o incremento da fungibilidade para algo não tangível, tornando o único e destacado, dando-lhe ares de exclusividade e um item colecionável acabaria caindo nas graças do mercado de arte em um momento ou outro.

Inclusive, é que já está acontecendo com certas criações, como a obra de Banksy. Neste exemplo, temos a pintura "Morons" que foi queimada em uma gravação ao vivo, deixando de existir no mundo físico, para se manter apenas um ativo e uma obra digital, originária da digitalização da versão física destruída, a qual pode ser e de fato foi comercializada como uma NFT.

A tecnologia aparenta favorecer esse mercado de arte e dá aos criadores de conteúdo uma possibilidade de mais ampla de negociação, ao, potencialmente, retirar o intermediário que realizaria a comercialização de sua obra, buscando evitar, assim, o fenômeno da plataformização da cultura.

Na prática a disponibilização das criações como uma NFT tenta "desburocratizar" a relação entre as partes que tem interesse em contratar, ao evitar não apenas a intermediação, mas também a realização de contratos extensos, longos debates acerca dos direitos existentes, "simplificando", assim, a negociação e a comercialização da obra.

Contudo, é exatamente neste ponto em que existem os problemas jurídicos. A existência de contratos não é apenas uma previsão sobre os direitos e deveres das partes na relação, mas um instrumento que busca garantir o cumprimento da legislação e que criador e o comprador tenham as suas expectativas respeitadas, evitando potenciais contenciosos.

Neste sentido, no Brasil para existir a transferência de direitos autorais acerca de qualquer obra é necessário que essa tratativa esteja prevista em um instrumento escrito abordando a questão e detalhando os limites e as possibilidades desta mudança de titularidade de tais direitos.

Dessa forma, em uma transferência de NFT sem qualquer negociação ou mesmo autorização para a utilização de uma obra, o comprador pode ter um item considerado de colecionador, porém, que não poderá ser explorado economicamente de qualquer modo, ainda que para a mera exibição, sem a autorização do autor, criador originário, da NFT.

A título de exemplo, poderíamos pensar em uma NFT de uma música, em que o "comprador" ao adquiri-la do seu criador não realizou qualquer negociação ou mesmo realizou qualquer transferência de direitos. Dessa forma, "o dono da NFT" poderia apenas ouvi-la, mas não poderia remixá-la, alterá-la, incluí-la em um vídeo ou mesmo publicá-la em outras plataformas, sem a autorização prévia do criador, em nosso exemplo, titular dos direitos originários sobre a música que agora está em NFT.

O caso hipotético levantado não é único. Os problemas decorrentes desta falta de negociação e efetiva contratação sobre a transferência de direitos autorais já começam a aparecer. Em alguns casos noticiados, criadores de conteúdo que traziam elementos de outras obras, como personagens, foram questionados em relação as suas criações e da possibilidade de comercialização, pois não detinham a autorização para explorar economicamente esse elemento de obra.

A possibilidade de ter em seu poder uma criação autêntica e única, criando uma escassez ficta diante da autenticação criada pela tecnologia blockchain é algo relevante para o mercado de arte. Contudo, se não for acompanhada de uma formalização da transação mediante contrato pode tornar o conteúdo um item de colecionador que não poderá ser utilizado ou mesmo comercializado, por questões relacionadas à propriedade intelectual.

Igualmente, a ampla disponibilização e possibilidade de negociação em uma plataforma aberta de uma obra em NFT ainda que seja vantajosa para o criador, pode trazer alguns problemas a respeito dos direitos originários da obra comercializada, visto que nem sempre o autor tomou o cuidado de verificar se poderia utilizar a obra com os representados ou os titulares de direitos.

Dessa forma, ao comercializar uma NFT há a extensa publicização de uma criação que pode infringir o direito de terceiros e que será facilmente percebida, em razão do próprio interesse da plataforma de disponibilidade, autenticidade, publicidade e segurança.

Com tais pensamentos em mente é que apesar da possibilidade de exploração econômica sem intermediários das criações intelectuais por meio das NFTs, ainda existem alguns cuidados que precisam ser tomados relativos à propriedade intelectual com o intuito de não invalidar uma transação ou trazer problemas com a utilização da obra, em razão da inexistência de uma contratação formal.

Não se exclui a possibilidade de se registrar também previsões contratuais pela própria tecnologia NFT. Neste caso, há a possibilidade do autor da NFT tratar as questões de transferência de titularidade com o comprador e ter o interesse na sua formalização por meio da própria tecnologia. O cuidado que deve existir é apenas de apurar se o quanto negociado, acordado e firmado pela tecnologia está de acordo com a legislação vigente, a qual exige certos requisitos, como contrato escrito para a sua validade jurídica.

Cabendo, assim, uma atenção especial a todo aquele que negocia e está interessado em entrar no mercado de NFT com a aquisição de criações intelectuais com uma escassez ficta e uma identificação específica de autenticidade avaliar as questões de propriedade intelectual aplicáveis a cada país, autor e obra.

Fernanda Galera
Sócia da Daniel Advogados. Mestre em Direito Comercial. Especialista em Propriedade Intelectual. Professora do corpo docente da pós-graduação lato sensu em Direito da FGV/SP. Pesquisadora, com atuação na área de Propriedade Intelectual, Direito Digital e Inovação.

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