Sabemos que os institutos da licitação e dos contratos administrativos são daqueles que causam grandes debates nos meios profissional, doutrinário e acadêmico, sendo dos que mais possuem destaque no campo jurídico brasileiro.
Recentemente, em 1º de abril do corrente ano, foi publicada a nova lei geral de licitações e contratos administrativos (lei 14.133/21), que por dois anos deverá conviver harmonicamente com a lei 8.666/93, lei 10.520/02 e lei 12.462/11, até que estas três ultimas leis sejam definitiva e amplamente revogadas. Trata-se, assim, de um período adaptativo proposto pelo legislador, a meu ver, de forma inteligente e dentro dos parâmetros sugeridos pela lei complementar 95/98 (art. 8º), que regulamenta o artigo 59 da Constituição Federal de 1988 e trata, por consequência, do processo de elaboração, redação, alteração e consolidação das espécies normativas primárias, aquelas que efetivamente podem inovar na ordem jurídica vigente, permitindo ou proibindo condutas.
No Brasil, como se sabe, tem-se como primeiro marco normativo sobre o tema “compras públicas” o decreto 15.783/22, o conhecido Regulamento Geral de Contabilidade Pública da União, avançando esse tema no tempo, da ótica da legalidade, por sucessivas regulamentações, conforme depreendemos dos decretos-lei 200/67 e 2.300/86, da lei 8.666/93, lei 10.520/02, lei 12.462/11, lei 13.303/16 e, agora, a lei 14.133/21.
O professor e advogado André Rosilho[1] escreveu um livro de ímpar relevância para todos aqueles que se dedicam aos aspectos práticos e acadêmicos das leis brasileiras de contratações públicas, mas, mais do que isso, trouxe contribuição com viés extremamente particular, pelo qual se pode ver a evolução histórica do instituto em terra brasileira.
Nesse sentido, há uma divisão interessante, em quatro momentos históricos, pela qual são abordados elementos de maior ou menor regulamentação do tema pelo legislador. Essa maior ou menor escala de regulamentação impacta na maior ou menor liberdade do administrador para inovar e produzir atos administrativos voltados à concretização do interesse público primário, que é o bem estar da sociedade, por meio, via de regra, da entrega de serviços públicos. Em suma, aumentam ou diminuem a margem de atuação do administrador público e, por corolário, os limites da conveniência e oportunidade dos atos administrativos.
Em suma, verifica-se uma evolução normativa, desde o mencionado Código de Contabilidade Pública da União, de uma menor investida para uma maior investida legislativa. E, conforme depreendi da leitura do referido livro e de outras pesquisas que venho realizando ao longo do tempo, o legislador partiu do pressuposto de que quanto maior a regulamentação do tema, até mesmo com a descrição mais pormenorizada dos procedimentos operacionais, estar-se-ia a conferir maior segurança e lisura aos procedimentos de compras públicas.
Entretanto, ocorre que ao longo do tempo alguns fatos irregulares decorrentes das contratações foram conhecidos pelo grande público, inclusive foram objeto de operações criminais públicas e notórias à sociedade, gerando condenações criminais e por prática de atos de improbidade. Exemplo já de grande ciência pela sociedade é o chamado “Petrolão”, em que, supostamente, verificaram-se atos irregulares no âmbito de contratações públicas levadas a efeito pela empresa estatal Petrobrás.
E, aqui, me pergunto: será que a previsão amiúde de regras licitatórias e contratuais, no curso da história, realmente atingiu o objetivo de tornar os certames públicos mais honestos e, portanto, isentos de atos de corrupção? Creio que não, respondendo objetivamente à minha própria indagação.
Vejo que um grande obstáculo à boa e correta aplicação da legislação de regência é a própria cultura social envolvida na questão. Não bastam regras a regular todos os pormenores dos processos de licitação e de contratação; há de se estimular a cultura da conformidade, por meio dos contínuos e incansáveis treinamento, aperfeiçoamento e capacitação. Sem isso, pode-se prever normativamente o que for, pode o legislador determinar ao administrador aquilo que ele acha conveniente como um bom e regular ato de processo de contratação, mas jamais teremos demandas de aquisições públicas imunes às irregularidades.
Ainda sobre o livro que aqui mencionei, ele nos leva à seguinte reflexão: o excesso de regras é capaz de moralizar as licitações públicas? Respondo por mim: até acredito que sim, mas isso deve vir colado à cultura da conformidade, em que agentes públicos e particulares entendam que as licitações e contratações públicas são dirigidas à satisfação das necessidades da comunidade, da própria administração pública, bem como são responsáveis pelo equilíbrio sadio da economia nacional, por meio da livre iniciativa e da justa competitividade entre os atores econômicos que fornecem bens e serviços aos órgãos e entes públicos.
Fica aqui, neste texto, um breve registro, de forma que possamos avaliar se realmente a lei 14.133/21 está num bom caminho e se esse bom caminho não necessita do aculturamento sobre a conformidade necessária ao bom andar das demandas inerentes. Como todo bom programa de Compliance/Integridade, um de seus mais importantes pilares é a cultura e a ciência de que devemos cumprir as regras, tanto no plano legal, quanto no plano ético-moral. Sem isso, programas com tal natureza são questão em vão, podendo-se prever o que for, pois jamais evitar-se-á atos irregulares e de corrupção, mal esse que, em geral, assola toda a humanidade.
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1 ROSILHO, André. Licitação no Brasil. Malheiros Editores, São Paulo: 2003.