Migalhas de Peso

Lecionando durante a pandemia

Sem uma harmonia comunicativa (“o ser”) entre corpos docentes e discentes, além de uma prática solidária de inclusão estrutural e emocional das pessoas envoltas, o futuro reserva mais outra grave crise no ensino e na educação para a realidade pós-pandêmica.

14/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Se quase todas as categorias profissionais foram afetadas negativamente pelo advento da pandemia global, certo é que os impactos à rotina de labuta não foram símiles ou mesmo proporcionais. No contexto da docência, por exemplo, nota-se uma desigualdade marcante na questão das estruturas de trabalho. Se de um lado os professores vinculados às Instituições de Ensino Superior se viram ‘encorajados’ à utilização de seus bens/estruturas pessoais (computador, rede de internet, impressora etc.) para a continuidade do trabalho, tantos outros membros do magistério fundamental carecem da devida estrutura para prosseguirem em sua missão educacional. Sem a participação dos poderes constituídos e dos Fatores Reais de Poder, como será possível ‘estimular’ a utência de bens próprios quando o perfil salarial de muitos educadores é incompatível com tais tipos de titularidades?

Por sinal, muito além da (a) questão da autossuficiência econômica/estrutural de quem exerce a cátedra (o “ter”); (b) o aumento da carga de trabalho (majoração quantitativa de e-mails, licenças não remuneradas do uso de sua imagem e direitos de autor, mensagens, atividades extraclasse, preparação de apresentações com maior apelo à comunicação visual – ou seja, o “fazer”); (c) e as incertezas quanto ao próprio futuro profissional (demissões, falências e recuperações judiciais); (d) põem em xeque a serenidade exigida para o exercício do processo de ensinar. Alguma coisa de errado acontece em um país que direciona o profissional do ensino a ser uma espécie de messias.

No lado do corpo discente, a ausência de uma isonomia basilar nas essenciais condições materiais de vida também atravanca o desenvolvimento do mínimo de qualidade esperada para o processo de aprendizado. Por tais razões, nota-se a elevação do número de desistências de matriculados junto a estabelecimentos de ensino de todas as sortes. Uma economia depauperada resulta na baixa absorção de um mercado de trabalho (que, aliás, está em franca transformação), e esta, por sua vez, retroalimenta o processo vicioso da interrupção da formação das novas gerações de estudantes e de profissionais.

Muito além das carências existenciais e patrimoniais narradas, uma revolução havida na forma de comunicação sincrônica entre professores e estudantes não tem recebido a devida atenção. Walter Benjamin deixou à humanidade algumas valiosas lições em seu “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”. Naquele ensaio, o gênio de Berlim narrou como as novas tecnologias transformam a maneira com a qual o interlocutor absorve, compreende e critica o conteúdo analisado. Por exemplo, a fotografia não destruiu a pintura, tal como o cinema não tornou obsoleta a própria fotografia. Ainda, as obras audiovisuais não tornaram as criações de dramaturgia exibidas in locus no teatro, ou na ágora pública, “algo do passado”. Hoje, todas as nuances artísticas podem conviver com influências recíprocas, cada qual para o seu nicho.

Para a rotina escolar atual, o desafio se faz pela maneira com a qual o ato de lecionar foi concebido (para números mais delimitados de classe, com o tête-à-tête, a aura do “aqui e agora”) mais próximo da lógica do teatro; perante a forma com a qual hoje ele precisa ser praticado (números bem maiores de estudantes que, em grande parte das vezes, seguem com câmeras desligadas além de uma conduta passiva em termos de participação), símile à transmissão futebolística na televisão ou, até mesmo, em reprises.

Sem uma harmonia comunicativa (“o ser”) entre corpos docentes e discentes, além de uma prática solidária de inclusão estrutural e emocional das pessoas envoltas, o futuro reserva mais outra grave crise no ensino e na educação para a realidade pós-pandêmica.

Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.

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