A decisão do Governo brasileiro em sediar a Copa América1, depois da recusa de outros países da América Latina, inaugurou um grande debate na sociedade. O futebol, sem dúvida, é o maior esporte nacional. O movimento econômico gerado, bem como a paixão do brasileiro pelas competições e clubes, são aspectos relevantes do tema.
Há aqueles que defendem a realização da competição, pois campeonatos regionais, estaduais, municipais ocorreram, além da Libertadores da América e dos amistosos para a próxima Copa. Noutra banda, há os que opinam pela não realização, por medo de eventuais cepas novas do covid-19 serem trazidas por comissões técnicas e jogadores de outros países.
A questão de pano de fundo, igualmente, é a morosidade do processo de vacinação, bem como a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que visa apurar desvios de gestão da crise pandêmica pelo Governo Federal. Somado a tudo isto, a cifra superior a 470.000 (quatrocentas e setenta mil) mortes decorrentes da infeção coronavírus, por si só, indaga a pertinência de evento comemorativo esportivo.
O maior movimento e expectativa, a par do sobredito, era o silêncio do técnico da Seleção brasileira, Tite, e também dos jogadores sobre a aceitação em participar do torneio. A ausência de confirmação gerou grande desgaste com o Governo Federal, inclusive com notícias de que o técnico seria trocado caso o atual não confirmasse a atuação da seleção canarinho. Todavia, a seleção2 confirmou participação pelo seu técnico e, também, pelos jogadores convocados.
Contudo, o questionamento sobre a possibilidade da recusa dos jogadores em participar da Copa América gerou muito debate. E, é sobre isto que estas linhas pretendem aclarar.
O atleta profissional (jogador de futebol) está vinculado a uma entidade (clube) esportiva, mantendo um contrato de trabalho. O jogador é um empregado do time, sendo, também, subordinado ao mesmo. Todavia, para a relação entre o empregador (clube/time) e o empregado (jogador) há uma lei especial, a Lei Pelé, lei 9.615/98.
A lei 9.615/98 por ser específica aplica-se em detrimento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Apenas quando a lei 9.615/98 não estabelecer regramento é que a CLT se aplica ao caso concreto. Pois bem, a questão da Copa América, em termos jurídicos, é uma cessão que entidade esportiva (time/clube) faz do seu empregado (jogador) com finalidade de que ele participe da competição de interesse.
O trabalho que decorre da cessão ou transferência do jogador é diferente do labor que o atleta profissional desenvolve para seu time, em vários aspectos. A cessão e a transferência não representam de atividade profissional desenvolvida em favor do empregador, mas de terceiro.
A princípio o atleta profissional só tem obrigação de prestar serviços ao seu empregador, sendo obrigatória a participação em competições do time/clube. Por isto é que o art. 38 da Lei Pelé, informa: Qualquer cessão ou transferência de atleta profissional ou não-profissional depende de sua formal e expressa anuência. O atleta profissional poderá recusar a cessão ou a transferência, pois a lei garante este direito.
A concordância com a cessão ou transferência deve ser realizada formal e expressa, ou seja, um ato que tem forma para ser praticado. Como é exercício de direito, vedada qualquer retaliação, perseguição ou punição ao jogador que recusar a cessão ou a transferência. E, a legislação não exige qualquer justificativa, basta a ausência de interesse do atleta em ser cedido ou transferido.
Uma segunda questão, relevante, é a possibilidade de um atleta, tendo anuído em participar, pode abandonar ou não comparecer à competição sob o fundamento de temos ao contágio pelo coronavírus.
O artigo 43, II, da Lei Pelé, estabelece como dever da entidade de prática desportiva empregadora, em especial, proporcionar aos atletas condições necessárias à participação de competições desportivas (...). A Lei Pelé não trata especificamente sobre condições de saúde e segurança no labor do atleta profissional, pelo que aplica-se a CLT por força do art. 28, § 4º: Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta lei (...).
Todavia, antes de aplicar a CLT, a Constituição Federal garante aos trabalhadores: redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança3. Desta forma, a redução de riscos inerentes ao trabalho também é direito do atleta profissional. Sem dúvida, os protocolos sanitários de enfrentamento ao coronavírus representam redução de riscos inerentes à competição, pelo que devem ser respeitados.
O Art. 154 da CLT inaugura o tratamento de saúde e segurança do trabalho com a seguinte disposição:
A observância, em todos os locais de trabalho, do disposto neste Capitulo, não desobriga as empresas do cumprimento de outras disposições que, com relação à matéria, sejam incluídas em códigos de obras ou regulamentos sanitários dos Estados ou Municípios em que se situem os respectivos estabelecimentos, bem como daquelas oriundas de convenções coletivas de trabalho. (grifos nossos)
A CLT, no art. 154, aclara bastante a questão, pois, expressamente, há previsão normativa de que devem ser cumpridos os regulamentos sanitários dos Estados e Municípios em relação à matéria, como também as normas pertinentes à matéria e regramentos gerais. A competição (Copa das Américas) tem o dever de cumprir as regras de saúde e segurança no que tange ao protocolo sanitário para evitar contágio do coronavírus, sob pena de o atleta profissional (jogador de futebol) poder recusar participação de partida e até abandonar o campeonato de modo lícito.
O risco de contágio pelo descumprimento das normas sanitárias é justo motivo para que o atleta profissional recuse a prestação de serviços, podendo inclusive pleitear rescisão indireta por seu empregador4 cedê-lo a terceiros sem que fossem observadas as regras de saúde e segurança que integram o contrato de trabalho.
Noutra banda, a recusa apenas por temor de contágio, sem que nenhuma norma de saúde e segurança relativa à pandemia tenha sido descumprida, configura motivo injustificado. O empregado (atleta profissional, jogador de futebol) que se recusa a prestar serviços, sem motivo fundado em norma, comete falta grave, passível até mesmo de justa causa ante a gravidade do abandono da competição e prejuízo esportivo, de imagem e financeiros daí decorrentes.
A Copa América é uma realidade, um fato consumado. Então, que o povo brasileiro saiba comemorar sem os calorosos abraços, assistir a jogos sem aglomeração (ainda que familiar) e que as máscaras não impeçam muitos gritos de gol. Encerramos este texto com torcida e votos de sucesso para a seleção brasileira, na mesma medida em que há votos de saúde a todos os participantes, aceleração da vacinação e, respeitosos pêsames às famílias afligidas.
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1 Notícia disponível clicando aqui. Acesso em 07 jun. 21.
2 Notícia disponível clicando aqui. Acesso em 07 jun. 21.
3 Art. 7º, XXII da Constituição Federal de 88.
4 Art. 157 da CLT - Cabe às empresas: I - cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho.
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BRASIL, Lei 9.6215 – Lei Pelé (1998), Disponível clicando aqui. Acesso em 07 de jun. 21.
BRASIL, Constituição Federal (1988), Disponível clicando aqui. Acesso em 07 de jun. 21.
BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho (1943), Disponível clicando aqui. Acesso em 07 de jun. 21.