É corriqueira na doutrina a afirmação de que a administração pública, em sentido objetivo, corresponde à atividade de gerir os interesses da coletividade. Significa dizer que os agentes públicos, no exercício de suas funções, administram e zelam por interesses que não lhe pertencem (de titularidade da sociedade) e, como tal, não apenas devem prestar contas de seus atos, como estão, ainda, sujeitos ao controle social.¹
Reconhecendo isso, o constituinte de 1988 consagrou, dentre os princípios reitores da atividade administrativa do Estado, o princípio da publicidade (vide art. 37, caput, da Constituição). A publicidade dos atos administrativos, com a consequente transparência que dela vem a reboque, como bem anota Rafael Carvalho Rezende Oliveira, “guarda estreita relação com o princípio democrático (art. 1º da CRFB), possibilitando o exercício do [controle] social sobre os atos públicos”². Na célebre frase do juiz Louis Brandeis, da Suprema Corte dos EUA, “a publicidade é justamente recomendada como um remédio para enfermidades sociais e industriais; a luz do sol é considerada o melhor dos desinfetantes”³. A atuação sigilosa do Estado, desprovida de transparência, é típica dos regimes autoritários; não encontra respaldo no ambiente democrático.
Eis a razão de o legislador ordinário, ao promover a reforma da lei de Arbitragem, ter associado a instauração de arbitragem nas relações com a Administração Pública ao princípio da publicidade: a necessidade de controle social e de fiscalização dos atos administrativos. Sempre que surgir uma controvérsia envolvendo a Fazenda Pública haverá o interesse da coletividade na solução que a ela for dada. Daí a necessidade de se respeitar o princípio da publicidade nas arbitragens que envolvam a Fazenda Pública, nos precisos termos do que dispõe o art. 2º, § 3º4, da lei 9.307/96, com a redação atribuída pela lei 13.129/15. É também o que preconiza a parte final do art. 1525 da lei 14.133/21 (também chamada de Nova lei de Licitações e Contratos Administrativos).
A consequência lógica disso é que, diferentemente do que ocorre nas arbitragens privadas, não será possível a contratação da rotineira confidencialidade nas arbitragens que envolvam a Administração Pública.6
Cabe perquirir, neste ponto, a quem compete o dever de publicidade: se é um dever exclusivamente estatal ou se recai também sobre os árbitros e eventual entidade especializada indicada para gerir o procedimento arbitral. Induvidosamente, o princípio da publicidade insculpido no art. 37 da Carta de 1988 dirige-se, única e exclusivamente, à Administração Pública, a quem cabe por ele zelar, assegurando aos cidadãos amplo acesso às informações e documentos que versem sobre o exercício da atividade administrativa do Estado.
Com efeito, a prática das entidades especializadas – não é de hoje – tem sido a de entender que o dever de publicidade recai, tão somente, sobre o Poder Público. A câmara arbitral é mera prestadora de serviços e, por consequência, na qualidade de contratada, nenhuma obrigação tem de dar publicidade aos seus atos e, muito menos, ao procedimento arbitral que por ela é administrado7. É assim – perceba-se – com todo e qualquer prestador de serviços ou fornecedor de produto que possua vínculo contratual com o Estado. Compete, portanto, à própria Administração Pública a tomada de providências para dar transparência à arbitragem, quer via internet, quer publicando no Diário Oficial os principais atos praticados no curso do procedimento arbitral, como o teor da sentença final, sem prejuízo de assegurar a eventuais interessados a obtenção de cópia das peças e documentos que instruem os autos arbitrais. É a orientação que se saiu vencedora na I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, do Conselho da Justiça Federal, conforme se extrai do seu Enunciado 4: “Na arbitragem, cabe à Administração Pública promover a publicidade prevista no art. 2º, § 3º, da lei 9.307/96, observado o disposto na lei 12.527/11, podendo ser mitigada nos casos de sigilo previstos em lei, a juízo do árbitro”.
A respeito do tema, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, estabelece o art. 13, § 2º, do decreto 46.245/18 que cabe à Procuradoria do Estado a disponibilização dos atos do processo arbitral mediante requerimento de eventual interessado, podendo a instituição arbitral “informar a terceiros sobre a existência da arbitragem, a data do requerimento de arbitragem, o nome das partes, o nome dos árbitros e o valor envolvido” (art. 13, § 5º).
Evidentemente, pode o Poder Público, por decreto ou resolução, transferir o dever de publicidade às instituições arbitrais, compelindo-as a dar transparência dos atos do procedimento, seja no site da entidade na rede mundial de computadores, seja, ainda, obrigando-as a disponibilizar cópias a terceiros, ainda que a entrega do duplicado fique condicionada ao pagamento das custas correlatas.
A transparência exigida nas arbitragens com a Administração Pública, no entanto, não significa que estejam as partes obrigadas a publicizar seus segredos comerciais, desenhos industriais, patentes e outros documentos e informações sigilosas. A publicidade não é um princípio absoluto, podendo ser relativizada, quando em antinomia com outras normas constitucionais, de igual hierarquia. A decretação do sigilo (ou segredo de justiça arbitral) poderá justificar-se por três razões distintas: (i) por força da existência no processo de documentos, informações ou dados que possam colocar em risco a segurança da sociedade ou do Estado; (ii) quando a divulgação da informação, ou da matéria objeto de litígio, puder importar em ofensa a direitos individuais da parte privada, como, por exemplo, segredos comerciais, patentes, informações fiscais ou os respectivos livros comerciais; e (iii) por fim, quando a divulgação da informação, ou da matéria objeto de litígio, colocar em risco direitos de terceiros, de natureza sigilosa.8
As informações consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado, por sua vez, só poderão permanecer em segredo de justiça se classificadas como ultrassecretas, secretas ou reservadas, nos termos e na forma dos arts. 23 e 24 da lei 12.527/11. Não é papel do Tribunal Arbitral, evidentemente, classificar como sigilosos, ou não, os documentos trazidos pelo Poder Público ao procedimento arbitral. Não há, neste particular, qualquer margem de discricionariedade para o árbitro. Caso a informação tenha sido classificada como sigilosa pelo Estado, conforme o procedimento estatuído pela lei de Acesso à Informação, deverá o Tribunal Arbitral decretar o segredo de justiça ou, ao menos, preservar o sigilo da informação. Do contrário, prevalecerá o princípio da publicidade.
Bem diversa é aquela situação em que o Tribunal Arbitral se depara com pedido da parte privada para que o procedimento arbitral corra em segredo de justiça, por conter informações sigilosas, de sua titularidade ou de terceiros, tais como segredos comerciais, desenhos industriais, prontuários médicos, documentos fiscais, contratos celebrados com terceiros, dotados de cláusula de confidencialidade, etc. Neste cenário, caberá ao árbitro, como juiz de fato e de direito da causa, zelar pelos direitos da parte privada, resguardando a confidencialidade da informação, inclusive mediante a decretação, se necessário, do segredo do procedimento arbitral.9
Como é intuitivo, não pode o árbitro decretar o sigilo, ou o segredo de justiça, sem que tenha sido formulado pedido a esse respeito por qualquer das partes. O árbitro não age de ofício. A decretação do sigilo, além de ser matéria estranha ao mérito do procedimento arbitral, é exceção nas arbitragens que envolvam a Administração Pública, somente podendo ser admitida se tiver sido formalmente requerida por qualquer das partes e, naturalmente, desde que presente justificativa legal (e constitucional) para tanto.
É perfeitamente possível, ademais, que a proteção do sigilo não possa aguardar a formação do Tribunal Arbitral, quer porque a informação tenha que constar, desde logo, do requerimento de instauração da arbitragem (o que é algo raro), quer porque o interesse envolvido seja de tamanha relevância que o requerente não possa assumir o risco de ter a informação indevidamente divulgada. Em tais circunstâncias, pode a parte interessada recorrer ao judiciário para resguardar seu direito, inclusive se servindo da medida cautelar de que trata o art. 22-A da lei 9.307/96, nela acrescido pela lei 13.129/15. Pode, também, em se tratando de arbitragem institucional, postular a decretação do sigilo pela câmara gestora, em caráter excepcional, até que o Tribunal Arbitral esteja instituído.
Aliás, é recomendável que o Poder Executivo e, igualmente, as câmaras institucionais regulamentem a publicidade nos respectivos procedimentos arbitrais, indicando, inclusive, as hipóteses e a forma pela qual o sigilo será decretado. Isso muito facilitará o trabalho dos árbitros e evitará que fiquem receosos de decretá-lo. É de suma importância, ainda, que existam regras disciplinando a forma de acesso ao procedimento e de divulgação dos atos processuais. É assim nos processos judiciais e, igualmente, nos processos administrativos. Merece destaque, a propósito, o regramento constante do art. 12 do Decreto 64.356/19, do Estado de São Paulo:
“Artigo 12 - Os atos do procedimento arbitral serão públicos, ressalvadas as hipóteses legais de sigilo ou segredo de justiça.
§ 1º - Para fins de atendimento deste dispositivo, consideram-se atos do procedimento arbitral as petições, laudos periciais, Termo de Arbitragem ou instrumento congênere e decisões dos árbitros.
§ 2º - A Procuradoria Geral do Estado disponibilizará os atos do procedimento arbitral na rede mundial de computadores.
§ 3º - As audiências do procedimento arbitral poderão ser reservadas aos árbitros, secretários do Tribunal Arbitral, partes, respectivos procuradores, testemunhas, assistentes técnicos, peritos, funcionários da câmara arbitral e pessoas previamente autorizadas pelo Tribunal Arbitral”.
É pleno o acesso às informações, mas existe um rito para que os interessados obtenham as cópias necessárias. E apenas alguns atos processuais precisam ser publicados, sobremodo o termo de arbitragem (ou um extrato dele) e a sentença arbitral. A publicidade exigida nas arbitragens com a Administração Pública não pode implicar na ineficiência da via arbitral.
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1. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, 25ª ed., rev. amp. e atual., São Paulo: Atlas, 2012, p. 11 e 34. No mesmo sentido: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 38ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 85.
2. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo, Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2013, p. 29.
3. BRANDEIS, Louis D. What publicity can do (tradução livre). Disponível em: 1913_12_20_What_Publicity_Ca (rackcdn.com). Acesso em: 26.04.2021.
4. “§ 3o A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.”
5. “Art. 152. A arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade.”
6. FITCHNER, José Antonio. A confidencialidade no projeto da nova lei de arbitragem – PLS 406/2003. In: ROCHA, Caio Cesar Vieira & SALOMÃO, Luis Felipe (coordenação). Arbitragem e mediação: a reforma da legislação brasileira, São Paulo: Atlas, 2015, p. 184.
7. Já tive a oportunidade de defender perspectiva oposta. Vide: SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Arbitragem na administração pública, Curitiba: Juruá, 2018, p. 58/65.
8. Em sentido semelhante, é a dicção do Decreto Federal 10.025/2019: “as informações sobre o processo de arbitragem serão públicas, ressalvadas aquelas necessárias à preservação de segredo industrial ou comercial e aquelas consideradas sigilosas pela legislação brasileira” (art. 3º, IV). É também a orientação que consta, no Estado do Rio de Janeiro, do art. 13, caput, do Decreto 46.245/2018 “Os atos do processo arbitral serão públicos, ressalvadas as hipóteses legais de sigilo, de segredo de justiça, de segredo industrial decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo com o Poder Público”.
9. Na mesma linha, estabelece o art. 13, § 4º, do Decreto 46.245/2018, do Estado do Rio: “O tribunal arbitral decidirá sobre os pedidos formulados por quaisquer das partes a respeito do sigilo de documentos e informações protegidos por lei ou cuja divulgação possa afetar o interesse das partes”.