Migalhas de Peso

A autonomia contratual privada em cheque – Ainda a questão da função social do contrato

Um fato indisputável é que os bens circulam, sendo mudada a sua titularidade no decorrer do tempo.

8/6/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

As famílias e as empresas interagem no mundo jurídico buscando a realização dos seus interesses. Um dos fundamentais é o direito de propriedade, seja na forma histórica com uma feição predominantemente estática; seja na moderna sociedade em que ela se revela cada vez mais dinâmica. E outro fator da modernidade está em que a propriedade cada vez mais se desmaterializa, evoluindo do bem imóvel para os bens imateriais, em relação aos quais já se tem discutido a inclusão dos perfis constantes de plataformas destinadas à troca de correspondência e de redes sociais, o que representa novos desafios para o direito.

Um fato indisputável é que os bens circulam, sendo mudada a sua titularidade no decorrer do tempo. Se a herança é uma das formas mais antigas nas suas formas primitivas, em um tempo quase tão longínquo na história, mas não menos verdadeira, é a sua circulação por meio da celebração de contratos. E o que as partes fundamentalmente sempre desejaram do direito contratual é a certeza que ele deve determinar quanto aos direitos e obrigações que dele emanam mediante a livre manifestação da vontade das partes.

Esse é o escopo que o direito contratual deve proteger como se fosse a joia mais preciosa encontrada em um rico tesouro. Toda a construção da teoria geral do contrato tem de girar em torno do centro de interesses fundado na realização da vontade das partes, de forma completa e harmônica, relativa aos institutos diversos que a constituem. Essa é uma tarefa que foi construída ao longo de séculos da história do direito, cada vez mais completa e mais eficaz por força da doutrina que a enriquece e da legislação correspondente que a acata, ainda que se tenham verificados alguns desacertos.

No sentido acima, como veremos ao longo deste texto, o sonho de certeza e de segurança que embala as partes na celebração de contratos tem encontrado óbices relacionados à imperfeição da legislação e ao mau uso que dela faz o Judiciário, muitas vezes responsável pelo esvaziamento dos seus institutos, com o resultado da deturpação dos princípios correspondentes.

É claro que a legislação deve evoluir, tal como evolui a sociedade, destacando-se que a ação dos julgadores deve compreender as mudanças e acompanhá-las em suas decisões. E no tocante ao contrato uma inflexão histórica extremamente relevante que ocorreu há não muito tempo (considerado o “tempo” do direito) foi a mudança da doutrina da autonomia da vontade em favor da autonomia privada. Nesse sentido, a vontade se manteve como elemento motor da formação de contratos, mas ela sofreu uma mudança não na sua essência, mas na expressão de sua valoração pelo direito contratual, que abandonou um sistema em que reinava como estrela absoluta para se tornar um planeta muito importante, mas que gira em sintonia recíproca com outros, tendo o direito como fonte gravitacional do seu percurso. E essa fonte é constituída pela Constituição Federal e pelos princípios gerais do direito.

Nesse sistema jurídico-solar cada planeta tem o seu papel, destacando-se a vontade com a força gravitacional incomparável de júpiter, mas atendendo a todos os demais, desde o ardente mercúrio até o gelado netuno, girando todos em sintonia ao redor de sua matriz estelar. Mas percebemos que - quando vem à luz uma lei desligada dos fundamentos da teoria geral do contrato ou quando esta é torpedeada por um foguete judicial mal dirigido - e que se choca com aquela as reações jurídicas e econômicas são imediatas pode ser causada desde uma marolinha, até um gigantesco tsunami. Por exemplo, tsunami é o nome com que a história do direito em geral e do direito contratual em particular deve designar os efeitos do chamado Plano Collor, de tão triste memória e que deixou o seu rastro de destruição até muito tempo depois que ele foi dominado.

Como se percebe, o contrato enfrentou diversas crises, na visão de autores como Grant Gilmore e P. S. Atiyah, os quais chegaram a declarar de forma um pouco drástica a morte ou a queda do contrato². Na verdade, é claramente perceptível que o contrato continua sendo o instrumento mais utilizado para a circulação dos bens (a eles atrelados os títulos de crédito) e isso jamais deixará de ser uma realidade. A roupa pode mudar, mas o dono continua o mesmo.

Mas outra realidade também inafastável está nos ataques que a legislação mal posta e a jurisprudência mal orientada têm determinado à vida dos contratos, por meio do trabalho de sapadores jurídicos, que cavam túneis sob as suas muralhas, derrubando-as em parte ou as danificando de forma grave. Essa orientação desorientada será vista de forma muito breve no decorrer deste texto, mas podemos antecipar alguns exemplos que não se fixarão nos efeitos da pandemia do covid-19 porque ela é passageira (ainda que demasiadamente dolorida e duradoura no tempo)³.

O primeiro problema está na inclusão da função social do contrato no art. 421 do CC/02, que passou por duas novas redações, conforme abaixo:

(i) Redação original:

“A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

(ii) Redação dada pela MP 881, de 30/4/19

“A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas prevalecerá o princípio da intervenção mínimo do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”.

(iii) Redação dada pela lei 13.874, 20/9/19

“A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

Veja-se inicialmente que a expressão “em razão” desapareceu da redação atual, tendo ficado superada uma questão relacionada à debatida causa do contrato. Em segundo lugar também foi extirpada da segunda redação a referência à Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, objeto da mesma lei 13.874/19 que durou, portanto, pouco menos de cinco meses, mas que produziu efeitos sob a sua vigência.

Verifica-se quanto a esse tema que se caracterizou uma intromissão indevida e controvertida no texto do CC/02 sobre esse instituto. Depois de promulgado aquele código logo teve início uma profusão de discussões sobre o significado e alcance dessa função social, evidentemente em prejuízo da segurança e certeza das partes quando da celebração de contratos.

A segunda redação trazia para dentro do CC/02 uma referência expressa à lei de Liberdade Econômica, desatendendo o princípio de boa técnica legislativa, a par das questões que ela suscita sobre suas determinações, abrindo campo para controvérsias jurídicas.

Ficando com a terceira redação (ora vigente, não se sabe por quanto tempo) ela mantém o preenchimento da função social do contrato, nos seus limites, como requisito para o exercício da liberdade contratual. Esse instituto não pode ser visto como uma visão socialista do contrato (o que, na verdade, tem acontecido), pretexto para o favorecimento da parte considerada hipossuficiente econômica ou socialmente. Como sabemos, na CF, artigo 5º, incisos XXII e XXIII é garantido o direito de propriedade, a qual deverá atender a sua função social. Não se fala do contrato, instituto por meio do qual a propriedade circula.

Esse direito de propriedade está tratado na CF sem qualificativos, de forma que se pode entender inerente a todo o tipo de bens incorporado ao patrimônio de um sujeito, mas que não poderá ser aplicado de forma indeterminado sob pena de completa subversão da ordem jurídica, existindo evidentes diferenças entre eles, não podendo ser generalizada a todos e de forma ampla o atendimento à função social. Vejamos.

O exemplo clássico de um bem que está vinculado a tal cerceamento é aquele consistente em propriedade rural que não apresente qualquer tipo de uso. Em casos como esse o proprietário tão somente o detém para o fim de valorização para uma venda futura, que pode ocorrer apenas em um futuro distante indeterminado. Se a propriedade rural potencialmente produtiva é um bem escasso, deixá-la sem uso representa uma perda para a sociedade como um todo, com afetação negativa da função social correspondente.

Por outro lado, os bens móveis que o titular tenha em sua residência - mesmo que possam ser considerados de luxo dentro de uma sociedade que apresenta diferenças gritantes de status econômico e social – ainda que sem uso por muito tempo não podem ser ligados ao exercício da aludida função social para o fim, por exemplo, de uma desapropriação a bem do interesse público.

Nos fixando no campo do contrato, na medida em que ele é celebrado no exercício da autonomia privada como garantia constitucional, somente pode ser entendida a sua função social, nele mesmo inserida, quando ela se refere a cada um dos objetos dos contratos típicos ou dos inominados. Dessa forma, a função social do contrato está precisamente em permitir a circulação da riqueza dentro da sociedade segundo a infinita variedade dos seus tipos. Ou seja, essa função social está referida, precisamente, à circulação da riqueza, concretizada do ponto de vista micro por cada contrato em particular e, no macro, pela somatória dos seus efeitos econômicos que, em regra, são positivos para o bem social.Mas no plano da jurisprudência há outros entendimentos, conforme abaixo.

No REsp 2012/0257539-6, foi discutida questão relativa a interesse dos herdeiros no âmbito de um contrato de consórcio para aquisição de bens4, tendo se afirmado na decisão a dimensão social daquele instituto, para o fim da aplicação do art. 421 do CC/02. Na ocasião, foi feita a conciliação pelos julgadores – segundo o seu entendimento - do bem comum pretendido (aquisição de bens ou serviços por todos os consorciados) e a dignidade humana de cada integrante do núcleo familiar atingido pela morte da consorciada. É muito estranha essa concepção que alarga sobremaneira o conceito da função social do contrato.

Por sua vez, no AgRg no AREsp 1552445 foi declarada sem maiores desdobramentos a função social do contrato de seguro que se caracteriza, na verdade, como uma relação privada entre o estipulante e a seguradora, em favor do beneficiário indicado na apólice.

Finalizando essa sucinta abordagem, verifica-se um alargamento verdadeiramente exorbitante, referido à função social do contrato quando, no REsp 9724366 foi explicitado que “o exame da função social do contrato é um convite ao Poder Judiciário, para que ele construa soluções justas, rente à realidade da vida, prestigiando prestações jurisdicionais intermediárias, razoáveis, harmonizadores e que, sendo encontradas caso a caso, não cheguem a aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento jurídico, como a autonomia da vontade”. Mas, aplicado esse entendimento na forma tão aberta como colocado, o resultado preciso é o da quebra da autonomia da vontade.

Enfim, na defesa da autonomia privada é preciso que seus pressupostos e seus efeitos sejam garantidos, em benefício do contrato e de todos os seus usuários, o que não vem acontecendo.

___________

1. Esse texto faz parte da nova edição da obra “Teoria Geral do Contrato” deste autor, em coautoria com Rachel Sztajn, a ser publicada em breve pela Editora Quartier Latin.

2. Gilmore, Grant; Atiyah, P. S. The death of contract ethe rise and fall of freedom of contract”.

3. Um ponto a ser ponderado quanto a essa pandemia é a limitação do direito no tratamento das questões jurídicas que tem suscitado, a merecer uma consideração mais aprofundada pelos operadores do direito, considerando-se que outras delas provavelmente serão deflagradas na sociedade humana.

4. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª DJE 2/2/17.

5. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T. j. 07.02.2013, DJe 15/2/13.

6. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 17.03.2009, DJe 12/6/09.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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