O ano de 2020 representou marco na história brasileira. Com a pandemia da covid-19 e o avanço significativo do desmatamento em função do agronegócio, o Brasil se vê na iminência de uma escassez generalizada de recursos naturais, com poucas chances de recuo da situação em curto e em médio prazos.
As lutas históricas dos povos pelo território associada à pauta da soberania alimentar representam via de acesso à nova visão de como podemos seguir. Especificamente nos meses de agosto e setembro, houve aumento considerável no preço dos cereais, desabastecimento de alimentos nos mercados em determinadas localidades e a inflação foi seguida pelo corte do auxílio emergencial1. Ou seja: a fome bate à porta das famílias brasileiras, e não é de hoje. O mais revoltante talvez seja pensar que poderia ter sido diferente, se antes tivéssemos tomado conhecimento da importância do meio ambiente, e aqui me refiro não só ao espaço físico de produção e reprodução da vida, mas ao complexo social, que ainda se mantém em uma espécie de torpor relativo ao todo que o cerca.
A questão está no desmonte generalizado (agravado nos últimos anos) das políticas públicas que garantem o desenvolvimento integral de frentes não hegemônicas, como os diversos povos indígenas, quilombolas e entidades que historicamente lutam pelo direito à ocupação da terra a partir de uma perspectiva integrativa, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Frente à grave questão de saúde pública, segue-se a emergência em resolver questões territoriais fundamentais. Afinal, para onde vão as famílias que carecem de moradia digna e do auxílio estatal e de que forma garantem a vida para além da sobrevivência, se o acesso ao espaço não lhes é garantido? A figura do Estado-Nação conservador e antidemocrático surge aqui com força descomunal, tendo um alicerce na tentativa de criminalização de entidades combativas, e cessando todo e qualquer direito destas à autonomia. Evidentemente, uma vez que não se garante o acesso à terra, a limitação da autonomia é consequência do processo.
O desdobramento mais visível é a expulsão da população camponesa de seus locais de origem por grandes latifúndios, em grande parte improdutivos. Resta, aos que não empreendem a jornada de tentar resistir no campo, a vida nas cidades, em grande parte nas periferias, alienados do contato com a terra, que lhes pertencia por direito primário. A consequência de tal processo é a pauperização e seus reflexos: fome, falta de acesso à saúde de qualidade, baixa escolaridade, falta de oportunidade etc.
Todos os fatores gerados a partir da alienação do ser com ao seu espaço fundamental, a natureza, na qual produziriam seus alimentos de acordo com o seu complexo cultural; se não para garantia de suas sobrevivências, também de maneira a auxiliar a quem também precisa (e aí se encontra a explicação do conceito de soberania alimentar). Ademais, o processo de capitalização de tudo que nos é dado pelo meio é fundamentalmente uma mentalidade branca e masculina, e isso não é passível de ser questionado, dada a obviedade do fato.
Frente ao avanço das políticas de degradação de pessoas e do meio ambiente, surgem as vozes que questionam a própria noção de espaço, que divergem da visão estritamente mercantil e enxergam na terra uma coexistência afetiva e simbólica. O espaço deixa então de ser comercializado e/ou degradado, para representar um enlace muito divergente, que envolve respeito à própria terra e aos seus processos. Nem sempre o tempo da terra é o tempo do capital, como facilmente observado no implemento de agrotóxicos para acelerar e modificar os processos naturais de feitio dos alimentos, empreendidos pela natureza.
É preciso empreender, talvez mais urgentemente do que se pensava, uma nova mentalidade que se pretende mais combativa e construtora de uma nova realidade, e pensar uma estrutura de contra-ataque é fundamental para combater a hegemonia dos grandes latifundiários.
A defesa do meio ambiente é mais do que nunca pauta a se pensar, ou logo estaremos (ainda mais) tratorando o nosso próprio destino e a qualidade da vida que deixaremos para as futuras gerações.
O tempo urge e, com ele, a necessidade de nos reinventarmos enquanto sociedade de maneira mais integrativa e orgânica com o meio. Para lutar pelo direito à terra e da terra, é preciso caminhar de maneira a impor o respeito devido às nuances culturais, sociais, mas principalmente prestar verdadeira reverência ao próprio ecossistema, afinal, é ele quem nos mantém respirando ainda.
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1 PIRES, B. Alta do arroz traz de volta a inflação à mesa do brasileiro e põe bode na sala do Governo Bolsonaro. Disponível clicando aqui. Acesso em 14/5/21.