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Letters of Intent para a compra de vacinas contra a covid-19

Não há informações públicas suficientes para uma análise detalhada das negociações entre as partes para verificar se houve, de fato, expectativa legítima de contratação (considerando ainda a suposta ilegitimidade dos fornecedores), bem como se houve despesa por parte desses fornecedores.

31/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Com o aumento diário do número de mortos por covid-19 e a demora do governo federal na compra e distribuição de vacinas, diversos governos municipais e estaduais tomaram a iniciativa de negociar a aquisição de vacinas diretamente com empresas estrangeiras por meio das chamadas “Cartas de Intenção” (Letters of Intent).

Conforme veiculado na mídia, a título de exemplo, a Federação dos Municípios de Santa Catarina1 enviou carta de intenção para a empresa búlgara TMT Globalpharm (suposta fornecedora do Fundo Russo que comercializa a vacina Sputnik V) para a compra de cerca de 3 milhões de doses. O Consórcio Paraná Saúde também enviou carta de intenção para a empresa americana Davati Medical Supply (suposta fornecedora da vacina da AstraZeneca) para a aquisição de 2 milhões de doses.2 

A negociação direta só foi possível por conta da lei 14.124/21, que autorizou Estados, Municípios e o Distrito Federal a adquirir vacinas, com dispensa de licitação, caso a União não realizasse as aquisições e distribuição tempestiva de doses suficientes para a vacinação dos grupos previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19.3

No entanto, pouco tem se falado sobre as consequências jurídicas dessas cartas de intenção. Apesar de incomum (ou até mesmo, argumenta-se, sem previsão legal) seu uso pela administração pública na celebração de contratos administrativos, as Letters of Intent são utilizadas frequentemente em negociações internacionais.

Essas cartas podem ter por objetivo delimitar os termos de um futuro negócio jurídico ou, em outros casos, fixar pontos consensuais ou obrigações das partes ou estipular condições suspensivas para a eficácia do negócio jurídico.4 Em alguns casos, podem ser consideradas contratos preliminares, inclusive com efeitos vinculantes, em outros, ainda que sejam consideradas apenas instrumentos de negociação, podem gerar responsabilidade por violação ao princípio da boa-fé objetiva.

Ao analisarmos a jurisprudência brasileira, bem como a de outros países, conclui-se que três elementos serão fundamentais na determinação das consequências jurídicas das cartas de intenção: (i) a linguagem utilizada, (ii) se há previsão de cláusula de não-vinculação e (iii) o contexto das negociações e o respeito ao princípio da boa-fé objetiva.

Linguagem

Sob essa perspectiva, analisamos, por exemplo, a linguagem utilizada nas cartas de Intenção assinadas pelo Município de Papanduva (SC)5 e pelo Município de Paraíso (SC)6: “manifestamos nosso interesse na aquisição de 20 mil doses da vacina Sputnik V (...) solicitamos máxima brevidade no encaminhamento da proposta de aquisição para podermos avançarmos com a aquisição pretendida.” (grifo nosso)

Ainda mais vinculante parece ser a linguagem utilizada na carta entre o Consórcio Paraná Saúde e a suposta fornecedora Davati Medical Supply: “(...) requer ao fornecedor a compra imediata de 2.000.000 doses (...) assim que estivermos satisfeitos com a documentação, avançaremos rapidamente com a colocação do pedido e assinatura do contrato de compra e venda e procedimentos de pagamento para garantir a aquisição temporal das vacinas (...)” (tradução livre e grifo nosso).

Quando se lança olhares para jurisprudência norte-americana, é possível perceber que o texto do documento é o aspecto central para responsabilização da parte desistente de uma carta de intenção.  Segundo o precedente Greenfield v. Philles Records7, o acordo será exigido quando for “completo, claro e categórico”8, ou seja, quando contiver elementos que fundamentem indubitavelmente a expectativa das partes de firmar um negócio jurídico definitivo.

No Brasil, o artigo 462 do Código Civil determina que, exceto quanto à forma, o contrato preliminar deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado. Nesse sentido, já decidiu o e. Tribunal de Justiça de São Paulo ao entender que uma carta de intenções configurava um autêntico contrato preliminar por conter as bases gerais da contratação e todos os requisitos essenciais.9

No caso em análise, verifica-se que o objeto do contrato é determinado, nos termos do artigo 104 do Código Civil, inclusive com a menção da quantidade de doses a serem adquiridas, sem, no entanto, constar o preço convencionado pelas partes, pelo menos nas cartas que foram publicadas.

No que diz respeito à capacidade das partes, merece destaque o fato de as referidas cartas terem sido encaminhadas a fornecedores e não diretamente aos laboratórios. Não obstante o fato desses fornecedores terem eventualmente capacidade para contratar, questiona-se a sua legitimidade. Isso porque, em operação policial deflagrada no Rio de Janeiro contra empresa que oferecia a vacina da AstraZeneca, requisitando inclusive pagamento antecipado a alguns municípios, foi verificado que a AstraZeneca emitiu nota pública confirmando que não haveria doses remanescentes e que, portanto, não estava negociando venda para estados, municípios ou entidades privadas.10

Diante desses fatos, é possível questionar a legitimidade da empresa americana Davati Medical Supply, para a qual o Consórcio Paraná Saúde encaminhou carta de intenções para aquisição da vacina da AstraZeneca. No Canadá, há inclusive notícia de investigação conduzida pela RMCP (Royal Canadian Mounted Police) a respeito da ilegitimidade dessa empresa, tendo sido inclusive emitido aviso de fraude pelo governo federal canadense.11

Por seu turno, há também fundada razão para se questionar a legitimidade da empresa búlgara TMT Globalpharm, que recebeu carta de intenção assinada pela FECAM, porquanto o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF), que comercializa a vacina Sputnik V, alegadamente declarou que essa empresa não tem autorização para fornecer a sua vacina.12

Não há notícias de pagamento antecipado, mas cabe mencionar que, caso tenha ocorrido pagamento, sem garantia de entrega das vacinas, há possibilidade de instauração de impeachment por crime de omissão. Cite-se, nesse sentido, o caso do Governador de Santa Catarina que foi afastado do cargo por 39 dias, mas posteriormente absolvido, diante de pagamento antecipado de R$ 33 milhões por respiradores, sem nenhuma garantia de que os equipamentos seriam entregues, como de fato não foram.13

De qualquer forma, entende-se que as referidas cartas só poderão ser consideradas contratos preliminares caso contenham todos os requisitos essenciais para a formação de um contrato, incluindo, por exemplo, o preço acordado, o que não se verifica nas cartas disponibilizadas publicamente. No entanto, diante dos riscos em se constituir um contrato preliminar, entende-se que os entes federativos poderiam ter evitado definir o objeto nessa fase negocial, inclusive com menção às quantidades exatas de doses de vacinas a serem adquiridas. Ainda mais importante, poderiam (ou deveriam) ter averiguado de forma mais cautelosa a legitimidade dos supostos fornecedores e adotado linguagem menos vinculante, demonstrando ser apenas uma negociação preliminar.

Cláusulas de não-vinculação

Em tempo, cabe destacar o fato de que, ao menos nas cartas disponibilizadas publicamente, não há previsão de non-binding clause (“cláusula de não-vinculação”), considerada fundamental na preparação de cartas de intenção, vez que delimita no texto do documento o caráter preliminar da negociação naquele momento. Cite-se, por exemplo, a notícia de que a União teria alegadamente incluído uma non-biding clause nas cartas de intenção assinadas para a compra de vacinas, justamente para deixar evidente a falta de intenção em se vincular a qualquer empresa preliminarmente, já que qualquer compra ainda dependeria da aprovação do Ministério da Saúde.14 

A cláusula de não-vinculação pode evitar responsabilização futura caso o contrato definitivo não venha a ser concluído. Nesse sentido, em um caso envolvendo um memorando de entendimento, cuja finalidade pode ser bem similar às cartas de intenção, o e. TJSP julgou improcedente pedido de indenização por rescisão ante a expressa cláusula de não-vinculação.15

A jurisprudência americana também segue a mesma linha, determinando que “a falta de uma expressão reservando o direito de não vinculação à carta de intenção ou ao memorando de entendimento, na ausência de acordos futuros, favorece fortemente o julgamento pela vinculação ao acordo”.16

Dessa forma, critica-se a ausência da referida cláusula nas cartas de intenção disponibilizadas publicamente, já que sua inclusão poderia evitar, de forma clara, a ausência de efeito vinculante a esses instrumentos, em caso de desistência da assinatura do contrato definitivo de compra e venda.

Contexto das negociações e o princípio da boa-fé objetiva

O contexto das negociações é extremamente relevante para verificar as obrigações que podem resultar das cartas de intenção, mesmo quando essas não constituam contratos preliminares. Isso porque o princípio da boa-fé objetiva incide desde a fase de formação do vínculo obrigacional, antes mesmo de ser celebrado o negócio jurídico pretendido pelas partes, conforme doutrina e jurisprudência pacífica do c. Superior Tribunal de Justiça.

O princípio da boa-fé objetiva e seus aspectos são conceituados de formas diferentes por jurisdições ao redor do mundo. No Brasil, há previsão expressa nos artigos 113 e 422 do Código Civil, exigindo que as partes se comportem de acordo com um padrão ético de confiança e de lealdade, de modo a permitir a concretização das legítimas expectativas que justificaram a celebração do pacto.17

Para que haja responsabilização, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, é necessária a demonstração de efetivo prejuízo material.18 O simples fato de uma longa negociação preliminar não constitui necessariamente uma conduta lesiva, podendo ser reconhecida apenas como uma situação intrínseca à fase preparatória, de estudo ou de concorrência, que sucede eventual negócio jurídico.19

No caso em questão, não há informações públicas suficientes para uma análise detalhada das negociações entre as partes para verificar se houve, de fato, expectativa legítima de contratação (considerando ainda a suposta ilegitimidade dos fornecedores), bem como se houve despesa por parte desses fornecedores. No entanto, critica-se, mais uma vez, ao menos com relação às cartas disponibilizadas publicamente, a ausência de cláusula expressa de não-responsabilização por custos e/ou despesas em caso de desistência da compra de vacinas, para evitar, por exemplo, qualquer alegação de prejuízos materiais e/ou perda de outros negócios.

Considerações Finais

A situação emergencial de uma pandemia certamente justifica a busca imediata e urgente pelos governos estaduais e municipais por vacinas que poderiam salvar milhares de vidas, principalmente quando há demora no fornecimento pelo governo federal. No entanto, critica-se a assinatura e o envio de cartas de intenções a fornecedores estrangeiros, que eventualmente sequer tinham legitimidade para negociar em nome dos laboratórios, bem como a falta de cautela quanto à sua linguagem e à ausência de cláusulas de não-vinculação e não-responsabilização, a fim de minimizar eventual responsabilidade futura dos entes federativos.

___________________

1 BRASIL. Taió encaminha carta de intenções para a compra de 10.800 doses da vacina Sputnik V, para a FECAM. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

2 BRASIL. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

3 Art. 13, parágrafo 3º, da lei 14.124/21.

4 BASSO, Maristela. Contratos Internacionais do Comércio. Apud: BAPTISTA, Luiz Olavo. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex Editora, 2010, p. 156.

5 BRASIL. Município envia carta de intenções de compra da vacina SPUTNIK V para a distribuidora internacional GLOBALPHARM. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

6 BRASIL. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

7 Court of Appeals of the State of New York. Greenfield v. Philles Records, 98 N.Y.2d 562, 750 N.Y.S.2d 565, 780 N.E.2d 166 (2002). Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

8 Tradução Livre.

9 TJSP, DJ 22.11.2010, Apelação n. 992.08.053826-5, 33ª Câmara de Direito Privado, des. Rel. Carlos Alberto de Sá Duarte.

10 AQUINO, Rai. RJ: Operação investiga fraude em oferta de vacinas da AstraZeneca. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

11 BARRERA, Jorge. Entrepreneur quizzed by RCMP says she won’t stop trying to land covid-19 vaccine doses for First Nations. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

12 SAQUETTO, Danielli. Prefeitos negociam milhões de vacinas com empresa búlgara sem aval de laboratórios. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

13 G1 SC; NSC TV. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

14 REUTERS. Brazil signs letter of intent to purchase five covid vaccines. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 2021. MARIZ, Renata. Saúde diz que deverá assinar cartas de intenção para comprar vacinas em reta final de desenvolvimento. Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

15 TJSP, DJ 14.12.2016, Apelação n.  0005452-31.2013.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, des. Rel. Carlos Alberto Garbi.

16 New York Appellate Division, First Department Decisions. Netherlands Ins. Co. v. Endurance Am. Specialty Ins. Co., 157 A.D.3d 468, 469 (1st Dept. 2018). Disponível clicando aqui. Acesso em: mai. 21.

17 STJ, DJE 18.12.2020, REsp 1.862.508/SP, Rel. Min. Ricardo Cueva.

18 STJ, DJE 27.02.2013, REsp 1.051.065/AM, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Cueva.

19 TJSP, DJ 09.09.2011, Apelação n. 0063951-27.2007.8.26.0000, 27ª Câmara de Direito Privado, des. Rel. Hugo Crepaldi.

Joyce Dias
Mestre em Direito Internacional pela Universidade de Cambridge (Shell Centenary Scholarship). Advogada no Brasil, em Portugal e na Holanda. Sócia-fundadora do escritório Joyce Dias Advocacia.

Amanda de Moura Cañizo
Graduanda de Direito no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP. Bolsista de Iniciação Científica (PROIC/2021) na linha de Direito Internacional. Colaboradora jurídica no escritório Joyce Dias Advocacia.

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