Migalhas de Peso

As redes sociais e os desafios para a renovação da representação política

Como as redes sociais podem oferecer uma nova dinâmica de comunicação e renovar a legitimidade representativa.

31/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A relação entre a democracia e as redes sociais costuma ser associada à possibilidade de participação direta dos cidadãos nas tomadas de decisão política ou ao controle da atividade governamental. Há quem imagine a possibilidade de construção de uma espécie digital da “Ágora Grega”, assim como há quem suspeite da viabilidade de um projeto dessa natureza, em razão das dificuldades de criação de uma esfera pública virtual.

A despeito dessa discussão, recentemente uma nova dinâmica de interação política chamou atenção dos veículos de imprensa e da sociedade em geral. Durante as sessões da CPI da Covid, vários parlamentares têm utilizado conteúdos de publicações extraídas das redes sociais para fundamentar as suas colocações e, até mesmo, contradizer as testemunhas¹. Essa nova dinâmica ganhou destaque na mídia após o relator da CPI, senador Renan Calheiros, abrir um caixa de perguntas no seu perfil do Instagram, questionando o que os seus seguidores gostariam que fosse perguntado a Eduardo Pazuello, ex-ministro da saúde, que seria ouvido no dia seguinte.

As reações à inusitada publicação vão desde escárnio e críticas sobre um possível traço de populismo digital até, de outro lado, o otimismo quanto à inovação na comunicação com os cidadãos.

As redes sociais parecem ter encontrado um caminho de acesso às instâncias decisórias, demonstrando que a renovação da democracia não precisa, necessariamente, afastar-se da forma representativa. A dificuldade de se construir um diálogo frutífero nas redes e, especialmente, de transformar essas discussões em ação política concreta ganha novo contorno ao se direcionar para os espaços políticos institucionais, ampliando o diálogo entre os parlamentares e o povo.

Nesse cenário, há, pelo menos, duas dimensões importantes. A primeira é relativa à comunicação digital por perfis governamentais oficiais, que tem sido adotada com uma frequência crescente e nos leva a questionamentos sobre a natureza jurídica desses espaços. Pode-se observar, inclusive, alterações nos padrões de publicação. Os perfis, cada vez menos, têm um papel estritamente publicitário e cada vez mais informativo. Associado a isso, há um certo estímulo aos comentários e às interações dos usuários, que merece ser pensado com reservas, pois comentários descontextualizados, mensagens informais ou interações esporádicas não conformam um diálogo institucional efetivo.

Outro tema complexo é a medida adotada por perfis oficiais de apagar comentários considerados inapropriados ou ofensivos e bloquear os usuários reincidentes. De fato, as redes socais possuem regras de comunidade que se aplicam a todos os membros. No entanto, ao transformar um perfil institucional ou pessoal em canal de acesso direto aos centros de decisão, há um novo nível de complexidade nessa relação, considerando que as regras deixam de ser estritamente privadas.

O debate levantado a partir das interações das últimas semanas aponta a segunda dimensão desta conjuntura já complexa, na medida em que os perfis pessoais dos representantes não se confundem com as páginas oficiais dos órgãos estatais. É importante refletir acerca do sentido democrático das interações realizadas em perfis individuais de mandatários e da responsabilidade pública sobre as demandas apresentadas por meio desses canais.

As transformações se apresentam a cada dia. É preciso pensar no que elas significam para a comunicação institucional e para a democracia. Desde logo, vislumbra-se que as teorias tradicionais sobre responsabilidade dos governantes em espaços comunicativos merecem um novo olhar, assim como se constata a possibilidade de uma renovação da legitimidade representativa, com destacada potencialidade política e eleitoral.

De imediato,  para que a nova dinâmica de diálogo com os cidadãos possa ter impacto representativo concreto, é necessário que haja a estruturação e integração da diversidade de redes e perfis dos órgãos estatais com os outros canais de comunicação abertos aos cidadãos. Do mesmo modo, é necessário que haja a divulgação entre o maior número possível de usuários e a transparência acerca da filtragem das mensagens e da destinação dada a elas. Além disso, como retorno às demandas, não basta que haja respostas aos comentários; são necessárias, sobretudo, ações que demonstrem a efetividade da comunicação.

Mais do que a mera projeção da imagem de um candidato ou representante junto à sua base ou aos seus simpatizantes, pensa-se na mudança concreta da forma como os governos e parlamentos dialogam com a sociedade. Parece haver uma disposição cidadã a se pronunciar. Resta observar como as estruturas representativas irão atender a tal demanda, na proporção em que ter um perfil oficial em um rede social é diferente de interpretá-lo como um caminho de acesso concreto às instituições.

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1. Por dentro dos grupos que fornecem informações para a oposição na CPI da Pandemia. El País. 20 mai. 2021. Acessado em: 28 mai. 2021. Disponível aqui.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Desirée Cavalcante Ferreira
Mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito Constitucional. Advogada. Membro da Comissão Especial do Pacto Global do Conselho Federal da OAB, da Comissão Especial Brasil/Onu de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã para Implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas da OAB/CE e do Observatório de Violência Política Contra a Mulher.

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