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A corrida legislativa para fixar o IPCA como índice de reajuste em contratos de locação

A guinada do IGP-M no decorrer da pandemia de coronavírus causou uma corrida legislativa para estabelecer o IPCA como índice padrão de reajuste em todos os contratos de locação de imóveis urbanos.

28/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

É notório que a pandemia de covid-19 impactou negativamente diversas áreas da sociedade, especialmente o setor econômico.

A limitação de atividades não essenciais e as incertezas a respeito das consequências e efeitos da crise acarretaram em enorme abalo às indústrias, comerciantes e prestadores de serviços, levando ao crescimento dos níveis de inadimplência e ao receio na contratação de novos negócios.

Tal cenário gerou grave desequilíbrio financeiro e vem afetando fortemente as variáveis utilizadas para o cálculo dos índices de preços, um grupo de indicadores econômicos que tem como objetivo principal medir a progressão dos preços na economia, servindo de base para o desenvolvimento de políticas estratégicas e para o reajuste de valores nas mais variadas espécies de contratos.

É de praxe, por exemplo, que os contratos de locação de imóveis utilizem o IGP-M (Índice Geral de Preços - Mercado) como parâmetro para reajuste dos aluguéis, muito embora inexista qualquer determinação legal nesse sentido.

A variação do IGP-M, que é divulgada mensalmente pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, é definida com base na evolução de outros três índices: IPA-M, IPC-M e INCC-M.

O IPA-M (Índice de Preços ao Produtor Amplo) representa 60% do IGP-M, e registra variações de preços de produtos agropecuários e industriais nas transações interempresariais, isto é, nos estágios de comercialização anteriores ao consumo final. Com o dólar valorizado, como no cenário atual, tende-se a exportar mais, causando a escassez de produtos no Brasil e, por consequência, o aumento dos preços.

O IPC-M (Índice de Preços ao Consumidor-Mercado) representa 30% do IGP-M, e mede as variações de preços de um conjunto de bens e serviços que compõem despesas habituais dos consumidores finais, refletindo a inflação no varejo brasileiro. Com esse indicador, é possível mensurar o poder de compra das famílias do país para produtos e serviços relacionados à educação, alimentação, saúde, transporte, dentre outros.

 O INCC-M (Índice Nacional de Custo da Construção - Mercado), por sua vez, compõe 10% do IGP-M e calcula a evolução dos preços de imóveis e construções habitacionais, levando em conta os custos de insumos usados na indústria da construção civil.

A maior parte da base de cálculo do IGP-M, então, é composta por commodities ligadas ao setor industrial e cotadas em dólares, cujos preços dispararam com a recente desvalorização cambial. Por consequência direta, o IGP-M também sofreu uma forte guinada desde o início da pandemia, registrando um acumulado de 31,10% entre março de 2020 e março de 21.

Com isso, a grande maioria dos contratos de locação tiveram reajustes acima do usual, gerando insatisfação para boa parte dos locatários e ensejando pronta reação do Congresso Nacional, com a recente propositura de nada menos que quatro projetos de lei, todos visando à intervenção na forma convencionada de reajuste dos aluguéis.

O projeto de lei 1.026/21, de autoria do Deputado Vinícius Carvalho (Republicanos/SP), e o projeto de lei 1.447/21, de autoria do Deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade/RJ), por exemplo, pretendem acrescentar um parágrafo único ao art. 18 da Lei de Locações (lei 8.245/91), para determinar que o índice de reajuste nos contratos de locação residencial e comercial não possa ser superior ao IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), admitindo-se a utilização de outro índice desde que com a anuência expressa do locatário.

Na mesma linha de raciocínio, o projeto de lei 1.255/21, de autoria da Deputada Renata Abreu (Pode/SP), visa também incluir um parágrafo único no art. 18 da Lei de Locações, divergindo apenas quanto à forma de reajuste. Neste caso, o projeto pretende limitar o reajuste a duas vezes o IPCA apurado nos doze meses anteriores à assinatura do contrato.

Por fim, o projeto de lei 1.538/21, de autoria do Deputado Carlos Veras (PT/PE), planeja criar nova lei com o intuito de dispor exclusivamente sobre a correção monetária do aluguel nas locações de imóveis urbanos. O objetivo é impor o reajuste de acordo com o IPCA às locações residenciais e às não residenciais – nesse segundo caso, apenas quando locatário for qualificado como microempreendedor individual, microempresa, empresa de pequeno porte, empresário individual ou profissional liberal.

Todos os projetos de lei supracitados tramitam de forma conjunta e em regime de urgência na Câmara dos Deputados.

Não se pretende aqui esgotar o assunto, tampouco tecer parecer acerca da louvável iniciativa dos ilustres parlamentares. Não obstante, é necessário ligar o sinal de alerta e observar que todas as proposições citadas apresentam possíveis incorreções que devem ser analisadas com cautela, tanto no tocante à técnica legislativa aplicada, como no que se refere à legalidade e constitucionaldiade das medidas envisionadas.

Os PL 1.026/21, 1.447/21 e 1.255/21, por exemplo, embora citem como justificativa o transitório período de pandemia que o país enfrenta, pretendem realizar alterações definitivas na Lei de Locações, havendo, então, um grave descompasso entre a justificativa apresentada e a alteração proposta.

Da mesma forma, em que pese o PL 1.538/2021 objetive a criação de nova lei e não apenas a inclusão de dispositivo na Lei de Locações, também se fundamenta apenas na elevação do IGP-M durante o ano de 2020, marcado pela Pandemia, e deixa de estabelecer um critério de transitoriedade dos efeitos da lei, gerando a mesma problemática dos projetos anteriormente citados.

Desvirtuando-se um pouco dos demais, o PL 1.447/21 até chega a propor uma medida de natureza temporária ao sugerir a vedação de reajuste de todos os aluguéis, residenciais e comerciais, até o dia 31/12/22, como medida de combate e enfrentamento da crise econômica decorrente da pandemia de Covid-19. Aqui, porém, ao que nos parece, dentre outros problemas, peca e muito pelo excesso, pois pretende congelar um único setor da economia por longo e aleatório período, enquanto todos os demais navegam pelo processo inflacionário.

Além da controversa questão temporal, outro grave vício de técnica legislativa está no fato de que a redação das proposições, de modo geral, é inerentemente contraditória.

O PL 1.026/21, a título de exemplo, estipula que o índice de reajuste previsto nos contratos de locação residencial e comercial não poderá ser superior ao IPCA, mas que “é permitida a cobrança de valor acima do índice convencionado, desde que com anuência do locatário”. A redação do PL 1.447/21 é praticamente idêntica, ao afirmar que é “permitida a utilização de outro índice, desde que com a anuência expressa do locatário”.

Por sua vez, o PL 1.538/21 vai mais além quando pretende considerar sem efeito as cláusulas que houverem instituído índice diverso do IPCA, mas também recua ao admitr a renegociação realizada entre as partes após a entrada em vigor da lei.

As proposições, assim, permitem que as partes negociem e cheguem a um consenso para aplicação de qualquer outro índice em seus contratos, ou seja, exatamente como já ocorre na sistemática atual.

A censura mais contundente, contudo, é direcionada à própria legalidade ou constitucionalidade das propostas, vez que todos os projetos limitam indevidamente a autonomia da vontade das partes e a livre iniciativa, princípios basilares de direito que garantem aos particulares a liberdade para contratar e estipular no contrato o que lhes convém, havendo clara contrariedade entre os projetos de lei e o espírito liberal da Lei de Locações e da própria Constituição Federal.

Afinal, o art. 17 da Lei de Locações prevê ser livre a convenção do aluguel, vedada apenas a estipulação em moeda estrangeira e a vinculação à variação cambial ou ao salário mínimo. Plasmando a autonomia da vontade, a Lei de Locações também já prevê a possibilidade de os contratantes fixarem, de comum acordo, novo valor para o aluguel, bem como inserir ou modificar cláusula de reajuste (art. 18).

Os projetos, consequentemente, estão em completa dissonância com esses dispositivos, e criam um cenário de dirigismo contratual pelo Estado, para o qual, especialmente no âmbito da Lei de Locações, certamente não há espaço

Outra crítica pode ser feita à aparente falta de critério para a adoção de um índice em detrimento de outros, com efeitos ad aeternum. Isso pois, em que pese o IGP-M tenha efetivamente sofrido vertiginosa variação desde o início da pandemia, o mesmo índice apresentou deflação no passado recente, como nos anos de 2009 e 2017, em que teve decréscimos de -1,72% e -0,52%, respectivamente, no acumulado de doze meses.

O que importa em dizer que naqueles anos os aluguéis reajustados pelo IGP-M não sofreram qualquer alteração, e os locadores permaneceram recebendo os mesmos valores durante vinte e quatro meses, enquanto suportavam os impactos da inflação nos outros setores da economia.

A título de comparação, observa-se que naqueles mesmos anos de 2009 e 2017 o IPCA apresentou variação positiva de 4,31% e 6,29%, respectivamente, e nem por isso os locadores deixaram de obedecer às disposições contratuais, tampouco se iniciou uma corrida legislativa no Congresso Nacional para propositura de despropositadas alterações na Lei de Locações.

Isso  é  dizer que, independentemente do contexto extraordinário que vivemos atualmente, episódios pretéritos já demonstraram que os índices inflacionários podem se deslocar em dado momento histórico, a depender de variações nos cenários políticos, econômicos e  sociais. Nessa linha de pensamento, o evento propulsor pode até ser imprevisível (pandemia), mas os seus efeitos econômicos não são estranhos ao mercado, que já experimentou períodos de crise semelhantes em passado recente.

Os problemas dos projetos ora estudados, como visto, são diversos, e talvez seja necessário nos espelharmos em recentes experiências legislativas para, prudentemente, limitar a intervenção estatal nas relações de direito privado e prevenir o desmantelamento do regime jurídico – e do próprio mercado – das locações de imóveis urbanos.

Diz-se isso pois vivenciamos situação muito semelhante já nos primórdios da pandemia, quando subitamente passaram a aflorar inúmeros projetos de lei em ambas as Casas do Congresso Nacional, todos com o objetivo declarado de preservar as relações locatícias por meio da imposição de normas de caráter protetivo à parte que, em tese, se encontraria em uma posição de vulnerabilidade no microssistema dos contratos de locação: o locatário.

Com poucas variações, praticamente todas as proposições propunham medidas similarmente extremadas, para determinar a suspensão parcial ou total do pagamento de aluguéis e proibir o despejo de locatários inadimplentes.

No fim, prevaleceram a prudência e a razoabilidade, com a aprovação da lei 14.010/20 e a instituição de um Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET), dedicado a regular com moderação as relações jurídicas de direito privado no período da pandemia do coronavírus.

O consenso que aparentemente havia se formado nas deliberações do Congresso Nacional naquela época – já olvidado, como demonstram os noveis projetos de lei que são objeto do presente estudo –, era no sentido de que as obrigações contratuais firmadas entre locador e locatário, especialmente as de ordem pecuniária, não podem ser simplesmente suspensas ou isentadas de forma indiscriminada pela intervenção estatal, sob pena de se instituir verdadeiras medidas de exceção e atribuir apenas a uma das partes os ônus e os riscos, criando um irreversível desequilíbrio nas bases contratuais.

A solução para o imbróglio, portanto, não está na alteração da Lei de Locações ou mesmo na criação de novas leis para tratar do assunto, mas sim, na negociação franca e pautada pela boa-fé e na utilização dos dispositivos já previstos no sistema jurídico atual, que prescrevem, acima de tudo, a necessidade de respeito à autonomia da vontade e a excepcionalidade das revisões contratuais.

Gustavo Henrique Ellerbrock
Advogado. Membro de Casillo Advogados. Graduado pela Universidade Federal do Paraná. Especializado em Direito Imobiliário pela Universidade Positivo.

Cecilia Troib
Advogada. Membro de Casillo Advogados. Graduada pelo Centro Universitário Curitiba. Pós-graduada em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná.

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