Segundo o parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição Federal de 1988,
“As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a reponsabilidade civil ou criminal dos infratores”.
Portanto, tais comissões, que se somam àquelas passíveis de criação pelas casas legislativas federais (comissões permanentes e temporárias), na forma do caput do artigo 58 e de seu parágrafo 2º¹, se destinam à apuração de fato certo e determinado, no afã de que, encontrados elementos materiais e de autoria sobre eventual ilegalidade civil ou criminal, encaminhem suas conclusões ao Ministério Público, com a deflagração consequente dos processos cabíveis, se for o caso, para apuração das responsabilidades civil ou criminal dos possíveis/prováveis infratores.
As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) possuem prerrogativas típicas de autoridade judicial, que são aquelas que, via de regra, são destinadas à reserva de jurisdição do Poder Judiciário, e que atingem diretamente direitos e garantias fundamentais², daí a necessidade de rígido controle pelos agentes jurisdicionais representantes da força estatal.
Tais poderes também decorrem, como nos informa o parágrafo 3º do artigo 58 da mesma Constituição, das previsões contidas no Regimento Interno das respectivas casas legislativas federais (Senado da República e Câmara dos Deputados). No caso do Senado, vejamos a redação do caput do artigo 148 de seu Regimento Interno:
Art. 148. No exercício das suas atribuições, a comissão parlamentar de inquérito terá poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, facultada a realização de diligências que julgar necessárias, podendo convocar Ministros de Estado, tomar o depoimento de qualquer autoridade, inquirir testemunhas, sob compromisso, ouvir indiciados, requisitar de órgão público informações ou documentos de qualquer natureza, bem como requerer ao Tribunal de Contas da União a realização de inspeções e auditorias que entender necessárias.
Dentre os poderes de autoridade judicial previstos em tal dispositivo regimental, encontram-se os seguintes no que tange à questão da coleta probatória, notadamente a oitiva de depoentes e testemunhas:
1. De convocar Ministros de Estado;
2. De tomar depoimento de qualquer autoridade;
3. De inquirir testemunhas; e
4. De ouvir indiciados.
Feitos esses breves esclarecimentos, abordarei, a partir de agora, a (in)viabilidade da convocação de chefias do Poder Executivo Federal, Estadual, Distrital e Municipal pela CPI da covid-19. É fato público e notório a existência da CPI da covid-19, que tramita no Senado da República, e que vem causando intensos debates políticos, jurídicos e sociais.
Avançando cada vez mais referida CPI à etapa das oitivas de depoentes e testemunhas, surgiu na imprensa informação segundo a qual alguns governadores estatuais e do Distrito Federal poderiam ser convocados para prestar esclarecimentos; também circulou na imprensa informação de que o presidente da República poderia ser outro agente a ser convocado ao mesmo fim, ou seja, para também prestar esclarecimentos.
Não adentrarei, aqui, em jurisprudência ou eventual decisão isolada a respeito da questão, inclusive emanada do Supremo Tribunal Federal ou proferida por ministro seu. Focarei na análise verticalizada sobre as disposições do artigo 148 do Regimento Interno do Senado em observância ao texto (referência jurídica máxima) da Constituição Federal, já afirmando, de antemão que, a meu ver, a CPI da covid-19 não tem prerrogativa constitucional para convocar chefias do Poder Executivo, seja em âmbito federal, estadual, distrital ou municipal. Eis as razões, a saber:
Primeiro, o artigo 50 da Constituição Federal diz que “A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer de suas Comissões³, poderão convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado”. Em outras palavras, o chefe do Poder Executivo Federal (o presidente da República), para efeito de CPIs, não pode ser obrigado a prestar informações, seja na condição de indiciado, seja na condição de testemunha, assim como não integra o rol de autoridades convocáveis, tal como visto na redação do artigo 50 em comento.
Segundo, o presidente da República é o chefe do Poder Executivo Federal e, à luz do artigo 2º da Constituição, os poderes são independentes e harmônicos entre si, devendo sua convocação, considerado ser o Congresso Nacional um órgão de controle externo do Poder Executivo Federal, ser viabilizada apenas em casos de processo de impedimento (impeachment), o qual possui balizas constitucionais (artigos 85 e 86) e legais (lei 1.079/50) especiais e rígidas, processo esse com natureza jurídico-política ou político-jurídica, com condutas e procedimentos bem delineados, cujo objetivo final, se apurada responsabilidade, é a decretação da perda do cargo político e consequente inabilitação política por certo prazo.
Terceiro, o artigo 52 da Constituição, que elenca um rol de competências privativas dirigidas ao Senado da República (ou “Senado Federal”), não contempla em favor de tal órgão legislativo a prerrogativa de convocar o presidente da República para depor ou testemunhar em CPIs. Tal questão, como visto acima, poderia ocorrer apenas em caso de processo de impeachment, no qual o presidente da República seria convocado para apresentar defesa, ser interrogado etc., enfim, exercer seu amplo direito de defesa, contraditório e contribuir com a justa tramitação do devido processo legal.
Quarto, o artigo 49 da Constituição, que contempla rol de competências exclusivas ao Congresso Nacional, não prevê a convocação do presidente da República para prestar depoimento ou testemunho em CPIs. Pelo contrário, delimita todas as atividades do Poder Executivo Federal passíveis de controle externo pelo Poder Legislativo Federal (o Congresso Nacional).
Quinto, e no tocante aos governadores estaduais, do Distrito Federal, bem como aos prefeitos municipais, diante do que previsto nos artigos 1º e 18 da Constituição, o Brasil possui organização político-administrativa de natureza federativa, ou seja, dividida em União (federal), estados, Distrito Federal e Municípios, todos autônomos e não subordinados uns aos outros, apenas respeitantes dos preceitos constitucionais que delimitam seus espaços respectivos de atuação administrativa, política e organizacional, conforme artigos 21 ao 32, da mesma Constituição. Nem o supramencionado artigo 148 do Regimento Interno do Senado, com a previsão de convocação para “tomar o depoimento de qualquer autoridade”, chancela essa possibilidade, pois tal dispositivo regimental deve ser interpretado à luz dos artigos 50 e 58, parágrafo 3º, da Constituição, e de forma restritiva.
Sexto, governadores e prefeitos são chefes do respectivo Poder Executivo estadual, distrital ou municipal, logo, no máximo, podem ser fiscalizados externamente por seus órgãos legislativos correspondentes (Assembleias Legislativas, Câmara Legislativa do DF e Câmaras Municipais), aos quais, ante a simetria que deve ser guardada com o texto da Constituição Federal, igualmente não pode ser prevista a convocação das chefias executivas para depor ou testemunhar em suas CPIs locais.
No plano da CPI da covid-19, há quem defenda que os governadores e prefeitos poderiam ser convocados, por analogia, em atenção ao que dispõe o artigo 70, inciso VI, da Constituição Federal. Tal dispositivo confere ao Tribunal de Contas da União (TCU), como órgão técnico-auxiliar do Congresso Nacional no controle externo da administração pública, a prerrogativa de “fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União (...) a Estado, Distrito Federal ou a Município”. E, nesse sentido, há quem sustente que se o TCU pode “perquirir” os gastos realizados com recursos federais da área da saúde encaminhados a estados, DF e municípios, estaria a CPI da covid-19, por consequência, autorizada a convocar governadores e prefeitos para a oferta de esclarecimentos, mesmo que inexistente norma constitucional expressa, e autorizadora, em tal sentido.
Com as devidas vênias, penso que isso não é possível. Não sou partidário da famosa premissa “quem pode o mais, pode o menos”. Isso, a meu ver, é esdrúxulo e faz ser cabível, em qualquer suposto hiato normativo, atribuição qualquer a qualquer órgão do Poder Público, fazendo da ordem jurídica um ato de vontade do intérprete de plantão. A atuação do TCU tem cunho técnico, e realmente visa apurar a tecnicidade, legalidade, legitimidade e quejandos dos recursos federais empreendidos por estados, DF e municípios e, para tanto, há devido processo legal previsto, que deve ser levado a efeito nos termos da lei Orgânica do TCU (lei 8.443/92), de seu Regimento Interno e Resoluções/Deliberações pontuais, sem pirotécnica política. Não se trata, como visto, de processo político, mas sim de processo estritamente técnico de apuração de contas sobre o bom emprego de verbas públicas federais.
Aqui, portanto, impera a lógica das atribuições constitucionais expressamente previstas e delimitadas, havendo uma nítida separação constitucional entre processos de controle técnico e processos com viés político, caso das CPIs, que apesar de terem prerrogativas de autoridade judicial, pouco podem fazer e movimentar (tecnicamente) após a expedição do relatório final, o qual, em regra, há de ser remetido ao Ministério Público para eventual processamento civil ou criminal.
Por oportuno, friso, a impossibilidade de convocação por mim pregada neste artigo, cuja convocação tem natureza jurídica de ato de império/obrigatório, sob pena de imposição de penalidade para a autoridade recalcitrante (na forma da lei penal e processual penal, até mesmo no campo do processo político), não impede que o presidente da República, os governadores e prefeitos, a convite “de cortesia” da CPI da covid-19, compareçam para prestar os esclarecimentos que entendam pertinentes, bem como decidam, ao revés, pelo não comparecimento, o qual não poderá ser penalizado, tampouco revertido por ato de tribunal judiciário competente, haja vista a inexistência de lide4 legítima à luz do direito.
Ante o acima exposto, conclui-se que as chefias do Poder Executivo, Brasil afora, não podem ser convocadas para comparecimento a qualquer CPI, incluída a da covid-19. Isso, por outro lado, não impede o comparecimento espontâneo de tais autoridades, o que pode fortalecer a transparência informacional exigida pela sociedade e, ao mesmo tempo, eliminar qualquer mácula tendenciosa à excessiva politização do atual período excepcional vivido pelo mundo e pelo Brasil, o que se verifica, estranhamente, nos limites de atuação da CPI da covid-19.
Um pouco de juridicidade não faz mal a ninguém nesses estranhos tempos políticos!
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1. Da Constituição Federal de 1988.
2. As CPIs não possuem todas as prerrogativas típicas de autoridade judiciária, mas tal tema não é objeto do presente artigo. Fica o registro a título informacional geral.
3. A expressão “qualquer de suas Comissões” inclui as CPIS, havendo uma conexão interpretativa a ser observada entre o presente artigo 50 e o parágrafo 3º do artigo 58, ambos da Constituição.
4. Conflito intersubjetivo de interesses qualificado por uma pretensão resistida.