Apesar de ser uma figura já consolidada e usual no ordenamento jurídico brasileiro, as discussões entorno do condomínio edilício são constantes nos tribunais pátrios. O judiciário está abarrotado de causas que envolvem os direitos, os deveres, a constituição, as penalidades, enfim, qualquer tema decorrente das relações condominiais. Pode-se dizer, ainda, que com a pandemia causada pela covid-19, os conflitos intensificaram-se ainda mais.
Neste ínterim, no dia 20/4/21, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, conheceu e não-proveu o REsp 1.819.075/RS, entendendo ser lícito ao condomínio residencial proibir que os condôminos ofertem suas unidades autônomas para locação junto às plataformas digitais, como no caso do Airbnb, já que a atividade pretendida teria fins comerciais.
Segundo o voto do ministro Raul Araújo, o contrato firmado por meio do Airbnb tem como objeto uma locação informal, fracionada e de curto período, sendo, portanto, um contrato atípico de natureza comercial, o que, no caso em debate, desviaria a finalidade residencial do condomínio.
Desta forma, levanta-se as seguintes questões: quais são os poderes que o condomínio edilício tem em face do exercício do direito de propriedade por parte dos condôminos? Seriam esses poderes ilimitados?
A convenção de condomínio será o principal meio para se chegar às respostas para tais questionamentos. Para Tartuce (2018, p. 1165), “no que concerne à convenção de condomínio, essa constitui o estatuto coletivo que regula os interesses das partes, havendo um típico negócio jurídico decorrente do exercício da autonomia privada”¹. Sendo assim, trata-se de um verdadeiro ato normativo. É nesta convenção que estão previstos os fins a que as unidades se destinam (art. 1.332, inciso III, do Código Civil), as sanções a que estão sujeitos os condôminos e o regimento interno (art. 1.334, incisos IV e V, do Código Civil).
Entretanto, assim como em qualquer outro negócio jurídico regido pelo Direito Civil Brasileiro, seus preceitos não são absolutos, estando limitados pelos princípios sociais da boa-fé objetiva, da função social, dentre outros (TARTUCE, 2018, p. 1165)². Diante disso, a interpretação dos arts. 1.335 e 1.336, do Código Civil, deve estar alinhada a tais princípios. Isso é o que também preza Silva (2005, p. 274)³ ao afirmar que “as normas de Direito Privado sobre a propriedade hão que ser compreendidas de conformidade com a disciplina que a Constituição lhe impõe”.
É justamente nesta linha que a Corte Superior tem resolvido as demandas que envolvem a possibilidade de o condomínio proibir ou não a manutenção de animais de estimação nas suas dependências internas. No julgamento do REsp 1.783.076/DF, o acórdão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça assim dispôs:
Se a convenção proíbe a criação e a guarda de animais de quaisquer espécies, a restrição pode se revelar desarrazoada, haja vista determinados animais não apresentarem risco à incolumidade e à tranquilidade dos demais moradores e dos frequentadores ocasionais do condomínio.
(STJ, REsp 1.783.076/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, DJ: 14/5/19, DP: 19/8/19).
No mesmo sentido, o Enunciado 566, da VI Jornada de Direito Civil, prevê: “A cláusula convencional que restringe a permanência de animais em unidades autônomas residenciais deve ser valorada à luz dos parâmetros legais de sossego, insalubridade e periculosidade.” Referidas disposições estão em consonância com o rol de deveres do condômino, nos termos do art. 1.336, inciso IV, segunda parte, do Código Civil.
Outra lide constantemente levada à apreciação do judiciário, refere-se à imposição de penalidades, que não de natureza monetária, ao condômino inadimplente. Nestes casos, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entende que o condomínio não pode impedir que o condômino utilize livremente da sua propriedade, tanto exclusiva quanto comum, apenas em decorrência do inadimplemento das taxas condominiais:
4. É ilícita a prática de privar o condômino inadimplente do uso de áreas comuns do edifício, incorrendo em abuso de direito a disposição condominial que proíbe a utilização como medida coercitiva para obrigar o adimplemento das taxas condominiais. Em verdade, o próprio Código Civil estabeleceu meios legais específicos e rígidos para se alcançar tal desiderato, sem qualquer forma de constrangimento à dignidade do condômino e dos demais moradores. 5. O legislador, quando quis restringir ou condicionar o direito do condômino, em razão da ausência de pagamento, o fez expressamente (CC, art. 1.335). Ademais, por questão de hermenêutica jurídica, as normas que restringem direitos devem ser interpretadas restritivamente, não comportando exegese ampliativa.
(STJ, REsp 1.699.022/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJ: 20/5/19, DP: 1/7/19).
De acordo com o posicionamento supra, apenas o legislador pode restringir os direitos dos condôminos (art. 1.335 do Código Civil), de forma que as normas que assim dispõem não podem ser interpretadas extensivamente. Ou seja, somente podem ser restringidos os direitos que a lei expressamente permite, nos casos que ela expressamente prevê, não podendo o condomínio dispor livremente sobre tais penalidades, sob pena de configurar abuso de direito.
Por meio do já disposto, o que se observa é que os poderes do condomínio não são ilimitados. Pelo contrário, a convenção de condomínio deve sempre ser elaborada e lida de acordo com os princípios que regem o ordenamento jurídico brasileiro e com os direitos constitucionalmente previstos.
Todavia, diferentemente do entendimento reiteradamente adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do REsp 1.819.075/RS a mesma Corte entendeu que o simples desvio da finalidade do condomínio bastaria para que fosse possível a este proibir a locação das unidades autônomas via plataformas digitais.
Ainda que no caso tenha se verificado que as locações eram realizadas desde 2011 pelos condôminos, sem qualquer oposição dos demais moradores, e que não houve qualquer quebra ou vulneração da segurança do condomínio, como destacou o Ministro Luis Felipe Salomão em seu voto, a 4ª Turma entendeu que a convenção deve prevalecer, já que dispõe que a finalidade do condomínio é apenas residencial.
Além do mais, apesar dos ministros do Superior Tribunal de Justiça terem salientado que o caso do REsp 1.819.075/RS tem particularidades as quais levaram ao seu não provimento, o entendimento aplicado foi em sentido inverso ao reiteradamente adotado pela Corte por motivos alheios às circunstâncias que particularizavam o caso.
Isso porque não foi levada em consideração a disposição do art. 1.336, inciso IV, do Código Civil, que serviu de base para o julgamento do REsp 1.783.076/DF, bem como o direito de usufruir plenamente da sua propriedade, que foi adotado no REsp 1.699.022/SP.
Como bem destacou o Ministro Luis Felipe Salomão, a jurisprudência da Corte Superior é firme no sentido de que, quando há um conflito entre o direito de propriedade e os direitos do condomínio, a convenção de condomínio deverá ser analisada com base nos critérios da razoabilidade e da legitimidade.
Inclusive, em casos que envolvam o desvio de finalidade do condomínio, os tribunais pátrios também entendem ser necessária a configuração de uma lesão aos direitos deste, quando sopesado aos direitos constitucionais do trabalho e da livre-iniciativa. É o caso, por exemplo, da Apelação Cível 384.239, de relatoria do desembargador Sérgio Bittencourt, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, de onde extrai-se os seguintes trechos:
Nos termos do art. 1.277 do Código Civil, os limites ordinários de tolerância dos moradores devem ser analisados no caso concreto, a fim de se configurar, ou não, a violação aos direitos de vizinhança. (...) O direito ao trabalho e à livre iniciativa, insculpidos no caput do art. 170 da Constituição Federal apenas pode ser limitado mediante previsão legal ou quando em legítimo conflito com outro direito fundamental.
(TJDFT, AC 384.239, Rel. Des. Designado Sérgio Bittencourt, 4ª Turma Cível, DJ: 24/6/09, DP: 3/11/09).
Verifica-se que a Constituição Federal estabelece uma íntima relação entre a propriedade e o cumprimento da sua função social (art. 5º, inciso XXIII, do texto maior) e ainda prevê esses dois institutos como princípios regentes da ordem econômica (art. 170, incisos II e III, da Constituição Federal). Diante disso, Silva (2005, p. 272-273) destaca que é comum a confusão entre o princípio da função social e as limitações de polícia, apesar dos institutos se diferenciarem: enquanto este representa um “conjunto de condições limitativas” que recaem sobre o direito de propriedade para que não haja um prejuízo ao interesse social, aquele é o regime jurídico fundamental do direito de propriedade.
Dito isto, sobre as limitações, Barbosa e Pamplona Filho (2010, p. 13-14)4 frisam que elas podem ser de três ordens: privada, administrativa ou social. Importante destaque deve ser dado às limitações de ordem privada, prevista o art. 1.228, § 2º, do Código Civil, que, segundo os autores já mencionados, estão preponderantemente vinculadas aos atos do proprietário que objetivem prejudicar outras pessoas, o que restará configurado com a demonstração de que ele manifestadamente excedeu aos limites impostos pelos fins “econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (art. 184, do Código Civil).
Considerando o apresentado, restou vislumbrado que a Corte Superior vinha adotando posicionamento justamente no sentido de entender que as limitações ao direito de propriedade condominial deveriam estar relacionadas com excessos do condômino ao usufruir de sua unidade autônoma prejudicando o sossego, a salubridade e a segurança dos demais possuidores, ou os bons costumes (art. 1.336, inciso IV, do Código Civil).
No entanto, conforme já anteriormente mencionado, mesmo que no caso do REsp 1.819.075/RS não se tenha demonstrado qualquer prejuízo ao condomínio, a 4ª Turma fez prevalecer a convenção de condomínio que estabelece uma norma limitadora do direito de propriedade.
Em vista do exposto, o Superior Tribunal de Justiça estaria abrindo precedente no sentido de que os poderes do condomínio sejam tão amplos a ponto da convenção limitar os direitos de uso da unidade exclusiva do condômino, ainda que não haja qualquer ofensa aos direitos dos demais moradores.
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1. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. p. 1165.
2. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. p. 1165.
3. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 25ª edição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 274.
4. BARBOSA, Camilo de Lelis Colani; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Compreendendo os novos limites à propriedade: uma análise do art. 1.228 do código civil brasileiro. Seara Jurídica, v. 03, 01, jan.-jun./2010.p.08-29.Disponível aqui. Acesso em: 26 mai. 2021.