Migalhas de Peso

Deferência judicial e as regulamentações do Conselho Nacional de Justiça no enfrentamento à covid-19

A atual crise sanitária expõe a necessidade de redesenho dos comportamentos institucionais, notadamente quando à preservação das atribuições típicas de cada um dos poderes da República.

27/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

No final de dezembro de 2019, a República Popular da China alertou a Organização Mundial da Saúde – OMS a respeito de uma série de casos de pneumonia na cidade de Wuhan, pertencente à província de Hubei. Após alguns dias, o sequenciamento genético do vírus causador das moléstias revelou tratar-se de uma nova cepa de coronavírus, posteriormente nomeada de SARS-CoV-2, responsável por causar a doença denominada de Covid-19.

Em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou que o surto da doença constituía uma emergência de saúde pública de importância internacional e, em virtude do grande nível de dispersão geográfica, em 11 de março de 2020 a Organização reconheceu o quadro de pandemia.

Ao tempo em que os governos locais colocam em prática medidas de contenção da transmissão da doença, fazendo escolhas trágicas no balanceamento entre a economia e a saúde pública, o Poder Judiciário brasileiro é demandado para resolver controvérsias a respeito do atual quadro sanitário nacional.

Do alcance da cobertura dos planos de saúde, passando pela flexibilização de regimes de cumprimento de pena, pela destinação de recursos ao Sistema Único de Saúde (SUS), além da sindicância de decisões dos governos federal, estaduais, distrital e municipais a respeito da restrição do comércio e do funcionamento de atividades de ensino, uma série de questões afetas à pandemia tem sido objeto de decisões por todas as instâncias do Poder Judiciário.

Fato é que, enquanto o Poder Executivo, por missão constitucional, deve ter preservada sua liberdade de conformação política, realizando escolhas de planejamento e de execução de políticas públicas, ao Poder Judiciário, também por desígnio da Constituição Federal, compete a intervenção jurisdicional, sempre que provocado, zelando pela implementação dos direitos fundamentais.

Não raramente, portanto, o Judiciário é chamado a intervir no planejamento e na execução de políticas públicas, atuação que gera indagações relacionadas às práticas decisórias empregadas e ao nível de sindicância sobre as decisões técnicas tomadas pelo Poder Executivo.

Atento a essa situação, o Conselho Nacional de Justiça vem regulamentando a atuação do Judiciário durante a pandemia de covid-19, por meio de Provimentos, Portarias, Resoluções e Recomendações. Desde março de 2020, já se somaram quase 100 (cem) atos normativos e, em consonância com o objetivo desse artigo, dois deles serão especificamente analisados: as Recomendações 66/20 e 92/21.

A Recomendação 66, de 13/5/20, foi direcionada aos juízos com competência para o julgamento de ações que versem sobre o direito à saúde. Na ocasião, ainda no início da pandemia, preocupava-se o CNJ que fossem garantidos aos gestores de saúde as condições para o enfrentamento da situação de excepcional crise sanitária.

Para tanto, recomendou-se que os juízos se atentassem a medidas como a priorização da “concentração de recursos financeiros e humanos em prol do controle da pandemia e mitigação de seus efeitos” e a suspensão de procedimentos eletivos com o objeto de ampliação de vagas de leitos hospitalares.

Importante notar que a mencionada recomendação tratou de citar expressamente diretrizes para que os magistrados dispensem “maior deferência ao respectivo gestor do SUS” e se atentem às consequências práticas de suas decisões, em um claro movimento de prestígio à doutrina da autorrestrição ou autocontenção judicial, de acordo com a qual somente aos poderes eleitos compete o legítimo enfrentamento das questões políticas, cabendo ao Judiciário uma postura de deferência ao ato técnico.

A recente Recomendaçã 92, de 29/3/21, por sua vez, exsurge em um momento de agravamento da crise sanitária, em que o Brasil já tinha vivido a terrível crise de oxigênio em Manaus e superava, dia após dia, o número de mortes por Covid-19.

Curioso salientar um dos fundamentos desse ato normativo, que se baseia na “multiplicação de demandas judiciais em que se litiga sobre o direito à saúde no contexto pandêmico, e que podem ensejar, em uma macroanálise, a desorganização do Sistema de Saúde e uma ineficiência alocativa em uma conjuntura que já é de carência de recursos humanos e materiais”.

Mais uma vez, reconhecendo a necessidade de respeito entre os poderes e suas atividades típicas, o CNJ se mostra atento ao fato de que as decisões judiciais têm o potencial de alterar os rumos de execução das políticas públicas conforme definidas pelo Poder Executivo sem, de fato, avaliarem um contexto maior, inerente à atuação do gestor público.

Por óbvio, o Judiciário não deve ficar inerte e se abdicar de intervir em casos de violação de direitos fundamentais. Descobrir os limites dessa intervenção, balanceando a atuação judicial entre a concretização dos direitos e o respeito às políticas públicas traçadas pelo Poder executivo é o grande desafio que se impõe com a judicialização da política.

Em breve síntese, ao fenômeno que se intensificou no Brasil, notadamente após a Constituição Federal de 88, de acordo com o qual a política vem, em grande medida, sendo decidida em caráter final, pelo Poder Judiciário, dá-se o nome de judicialização da política.

A política de saúde pública é, sem dúvida, uma das que mais está sujeita à judicialização, quer por ações coletivas, quer nas milhares de ações individuais que, por exemplo, pleiteiam a concessão de medicamentos ou a liberação de leitos hospitalares.

Previamente à elaboração e à concretização de qualquer política pública, o gestor público se depara com opções políticas conflitantes e, na atual crise sanitária, são conferidos ares de urgência às políticas públicas de combate à pandemia.

Diligente a esse cenário pandêmico o CNJ, por meio das resoluções acima citadas, desestimula o exercício, pelo Poder Judiciário, da atividade substitutiva ao Poder Executivo, sem que se analisem, pormenorizadamente, as consequências de uma decisão judicial nas políticas públicas.

Reforça-se, assim, que o exercício das funções típicas de planejamento e de execução de políticas públicas, incluindo a consideração de argumentos técnico-científicos, é de atribuição dos poderes executivos, competindo ao Judiciário, em atenção à doutrina da deferência administrativa – doctrine of administrative deference, princípio basilar do direito administrativo norte-americano, respeitar as escolhas do agente público, desde que representem uma acomodação razoável das possibilidades que estavam ao seu alcance.

É possível concluir, portanto, que da concepção positivista francesa de que o juiz apenas declara a lei, reduzindo-se sua atividade a uma prática meramente subsuntiva, à aplicação de princípios axiológicos, a atividade judicante se deparou com rompimentos de paradigmas e novas perspectivas no último século. No Brasil, como dito, notadamente após a Constituição Federal de 88.

O campo de atuação do magistrado se abriu e a antiga preocupação de limitar a arbitrariedade dos julgamentos continua relevante. A coerência argumentativa e a coesão na concessão ou não dos provimentos postulados passam a ser critérios definidores de boas práticas decisórias, perseguidos pela jurisdição.

É nesse contexto que tem se inserido a atuação do Conselho Nacional de Justiça no atual cenário pandêmico. Ao invés de aniquilar a discricionariedade do gestor público, recomenda-se que os magistrados preservem uma certa margem discricionária das escolhas políticas, respeitando o ato técnico em deferência ao gestor público.

Nos resta, na atividade cotidiana de estudo e de aplicação do Direito, acompanhar como se comportará o Judiciário na análise das políticas públicas, notadamente as de saúde, após o fim da atual crise sanitária e continuarmos nos questionando: estamos diante de um novo modelo de relacionamento institucional entre os Poderes Judiciário e Executivo?

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ARRUDA, Carmen Silvia Lima de. Harmonia entre os Poderes: judicialização, autocontenção e deferência. In: CUNHA FILHO, Alexandre Jorge Carneiro da (coord.) et al. Direito em tempos de crise: COVID-19. São Paulo: Quartier Latin, 2020. v. 3. p. 215-230.

BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; KOZICKI, Katya. Judicialização da política e controle judicial de políticas públicas. REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO. pp. 59-86. Jan-Jun. 2012.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 18, abril/maio/junho, 2009.

DELGADO, José Augusto. Ativismo judicial: o papel político do Poder Judiciário na sociedade contemporânea. In Processo civil: novas tendências: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 319-338.

Lara Caroline Miranda
Servidora Pública do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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