Migalhas de Peso

O raciocínio da criação jurídica nas ações que pleiteiam a retirada de conteúdo da internet e a negativa, pelo STF, de existência de um direito ao esquecimento

Ainda que não fosse fruto do Judiciário brasileiro, sua adaptação ao direito interno orientou, por anos, o direito civil, sendo, reiteradas vezes, aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça – a Corte que deveria ter a última palavra para o direito infraconstitucional.

27/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Ao negar a compatibilidade do Direito ao Esquecimento perante as normas da Constituição Federal de 1988, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou por extirpar o resultado de uma atividade criativa. Ainda que não fosse fruto do Judiciário brasileiro, sua adaptação ao direito interno orientou, por anos, o direito civil, sendo, reiteradas vezes, aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça – a Corte que deveria ter a última palavra para o direito infraconstitucional.

Cueva¹ destacou duas acepções para o Direito ao Esquecimento que sintetizaram a sua aplicabilidade mais rotineira: “a) como direito ao apagamento de dados pessoais no contexto da internet e b) como direito à não veiculação, pela mídia, de informação desprovida de atualidade relevância para o público, mas ofensiva ao interessado” – e seguiu essa toada a produção da jurisprudência nacional, atuando contra um silêncio legislativo que nunca pareceu proibitivo.

Certo é que, na ausência de uma “letra de lei”, a prestação jurisdicional ocorreu por atividade criativa, algo que poderia ser enquadrado na “tarefa de buscar o melhor, nos moldes do que é justo, para o jurisdicionado, pela prestação da tutela jurisdicional” citada por Moraes² (p. 136).

Nessa ótica, os cenários que a internet apresenta para o Direito contemporâneo é mais um indicativo de que a atuação longeva da subsunção judicial do fato à norma, cada vez mais, deve ser deixado de lado: a atuação criativa do juiz deve ganhar espaço, ainda que, ao fim dos trâmites processuais, venha a ser invalidada por uma Corte de vértice, pois a produção normativa não é capaz de acompanhar os desenvolvimentos tecnológicos.

Um dos embates mais comuns gerados pela disponibilização de informações na internet está no interesse dos envolvidos na retirada do conteúdo desse ambiente.

Seja com base no direito à intimidade, fosse com base no Direito ao Esquecimento – quando ainda era possível –, a eficácia³  das decisões judiciais com o objetivo de retirada de conteúdo de internet demanda análise mais aprofundada. Independentemente da razão do pedido da retirada ou do fundamento jurídico que a sustente, questões técnicas e operacionais são um desafio real a ser vencido pela atuação do magistrado pois exige, além do conhecimento legal, uma familiaridade com questões que vão para além do Direito, o que reforça a ideia de que:

“apesar de ser membro do Estado em sua função de prestar a tutela jurisdicional, é homem, pensa, sente e age de acordo com aquilo que pare ele é aceitável enquanto ser humano, cidadão, componente de uma sociedade e por mais que esteja preso ao formalismo legal, não consegue fugir a esta realidade.”4

O Direito ao Esquecimento, como era aplicado no Brasil, definiu parâmetros e diretrizes para essas decisões, dando ao julgador e às partes orientações quanto ao que se buscar na preservação, perpetuação ou extirpação de memórias. De um lado o juiz tinha de onde socorrer-se para fundamentação de suas sentenças. De outro, as partes tinham e onde colher critérios para além da responsabilidade civil e dos danos morais – ainda que estes institutos também servissem de balizadores – para pleitear junto ao Judiciário.

Porém, essa fonte, no momento, está estancada. A interferência do Supremo em uma matéria de cunho essencialmente de legislação civil pode ser interpretada como um sinal de alerta à atividade criativa do julgador por colocar em risco a técnica de adaptação de institutos judiciais que poderiam funcionar para adequada solução de conflitos para a qual a lei e o legislador ainda não se viram prontos a encarar. Não se trata de uma atividade jurisdicional livre de vinculação com normatização legal, mas de reforçar que a atuação do juiz em nada se equipara aos anseios de inteligência artificial, onde um software é suficiente para adequação por subsunção de fatos às normas. Por vezes, as normas não são o suficiente, seja por ausência de produção, seja por inadequação com o momento histórico-social.

Assim, se antes a retirada de conteúdo de internet demandava do juiz um rigor maior quanto à previsão da eficácia de sua decisão quando lastreada por parâmetros como interesse social na informação ou decurso de tempo entre o fato e as notícias, a determinação de retirada do conteúdo poderia esbarrar em critérios técnicos ou ser ineficiente por não estar direcionada aos atores corretos.

A determinação do bloqueio de um link objetivamente identificado de fato pode resultar na cessação da propagação da notícia que a pessoa citada procura estancar a partir do provedor que armazena a informação, estado factualmente amparado na responsabilidade civil.

De outra sorte, desvincular de mecanismos de busca a associação de um nome a um fato ou notícia demanda maior justificação, onde a subsunção normativa pode não ser alcançável, uma vez que a informação está armazenada em servidores ou dispositivos de memória que não fazem parte do acervo dos canais de busca.

A adequada produção das sentenças, por mais que devam ser fundadas no corpo normativo, não escapam à atividade racional do magistrado, exigindo, em certa medida, a permissão para que haja espaço para uma atividade de criação por parte do juiz.

Por outro lado, o julgamento do STF no RE 1.010.606 ameaça essa necessidade. De pouco adiantará uma atividade jurisdicional criativa que sofra estanque pelas Cortes superiores, especialmente nos tópicos onde os ramos do direito possam se confundir – o Direito ao Esquecimento, por exemplo, é mesmo de viés Constitucional? Sua aplicabilidade não está ligada, essencialmente, ao Direito Civil, no qual já havia sido devidamente reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça, a quem caberia a interpretação da compatibilidade dos institutos de Direito aos temas ligados à legislação infraconstitucional?

A suposta incompatibilidade do Direito ao Esquecimento com as normas da Constituição de 1988 pode ser um indicativo para uma atividade jurisdicional meramente por subsunção normativa.

____________

1. CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Evolução do direito ao esquecimento no Judiciário. In: SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flávio (Coord.). Direito civil: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2017.

2. MORAES, Daniela Marques de. A importância do Olhar do outro para a democratização do acesso à justiça: uma análise sobre o direito processual civil, o Poder Judiciário e o Observatório da Justiça Brasileiratese de doutorado. Universidade de Brasília, 2014.

3. Que para Teresa Arruda Alvim tem a ideia de uma “efetiva produção de efeitos típicos”, sendo que o sentido de efeitos típicos é o dos efeitos pretendidos pelo agente em seus atos (ALVIM, Teresa Arruda. Nulidades do Processo e da Sentença. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 113).

4. MORAES, p. 138.

Gilson Fernandes Ribeiro
Mestrando em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília e ocupante de cargo efetivo no Superior Tribunal de Justiça.

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