Migalhas de Peso

Processualidade no Direito Administrativo

A processualidade como um dos paradigmas do direito administrativo contemporâneo.

27/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O Direito Administrativo está em fase de apropriação de novos paradigmas. A ideia da processualidade traz uma dessas novas formas de enxergar esse complexo ramo do direito, embora não seja propriamente uma novidade.

Já no início dos anos 90, a professora Odete Medauar, na obra “Direito Administrativo em evolução”, apontava duas premissas que deveriam passar a nortear as reflexões nesse campo de estudo. A primeira delas é a de o ato administrativo deixou de ser o foco do Direito Administrativo. A outra é que o estudo do ato administrativo passou a se concentrar não no ato em si, mas no modo de sua formação, voltando a atenção especialmente para o processo administrativo que antecede o ato, isto é, o processo que forma o ato administrativo (MEDAUAR, 2012).

Assim, aos poucos, o ato administrativo, que é uma das bases de elaboração do próprio Direito Administrativo, foi deixando de ser a figura central do Direito Administrativo, ao menos nos moldes da sua concepção clássica.

Para alguns autores, a justificação do ato administrativo nasce do princípio da separação dos poderes, em um Estado de Direito, segundo o qual cada poder deveria ter seu meio próprio de expressão. No Legislativo, a expressão se dá pelas leis; no Judiciário, ela se faz por meio da sentença. O Executivo, por sua vez, manifesta-se pelo ato administrativo, cuja existência deve se sujeitar à lei. Essa teoria sustenta a ideia da “Administração como mera executora de leis” (MEDAUAR, 2012).

Na concepção clássica, o ato administrativo teve sua elaboração teórica inspirada nos atos jurídicos do direito civil, circunstância da qual decorreram as características ou os atributos do ato administrativo. Esses atributos clássicos, de conhecimento geral, são (a) unilateralidade: refere-se à autoridade da qual emana o ato, que dispensa atuação do particular para perfectibilização do ato; (b) presunção de legalidade, legitimidade e veracidade: relaciona-se ao modo de produção do ato, que tem como pressuposto a observância do ordenamento; (c) autoexecutoriedade: referente à aplicação do ato, que tem execução forçosa, imediata, pela própria Administração; e (d) imperatividade: no tocante aos efeitos produzidos pelo ato, que são impostos de forma coercitiva, independência de qualquer aquiescência (MEDAUAR, 2012).

A concepção clássica do ato administrativo, inclusive com prestígio dos seus atributos, predominou do início do século XX até meados dos anos 70, sendo ele o protagonista da dogmática jurídico-administrativa até então (MEDAUAR, 2012).

No entanto, os elementos e as características tradicionais do ato administrativo passaram a ser questionados. De fato, “os pressupostos (elementos, atributos) do instituto ‘ato administrativo’ demonstram hoje uma enorme incapacidade de responder a questões postas a desafiar o direito administrativo contemporâneo” (MARQUES NETO, 2012, p. 93).

A partir dos anos 70, houve uma convergência de manifestações a favor de atuações processualizadas na Administração Pública, que observassem o contraditório e a ampla defesa dos particulares. A partir dessa época, houve promulgação de diversos códigos de processo administrativo na Europa e na América Latina, nos anos 70, 80 e 90, inclusive, no Brasil, com a Lei 9.784/99 (MEDAUAR, 2012).

O processo é “a sucessão de atos, permeada de posições jurídicas da Administração e de particulares, com vistas a assegurar o direito ao contraditório e à ampla defesa, de regra antes da tomada de decisão” (MEDAUAR, 2012, p. 412). Pode-se falar na existência de processo em todos os poderes estatais, inclusive na Administração Pública.

O Supremo Tribunal Federal, em caso emblemático, no RE 158.543-9/R, julgado em 1994, reconheceu a incidência dos princípios do contraditório e da ampla defesa em todos os processos administrativos. Apesar de hoje parecer absurdo um entendimento contrário, o que prevalecia anteriormente era que o contraditório e a ampla defesa só eram aplicáveis a processos administrativos que fossem disciplinares, onde havia a figura do “acusado”. O entendimento dado pelo STF foi de que a norma do art. 5º, LV, da Constituição Federal, é clara e alcança qualquer situação que possa acarretar a redução de direitos, com compreensão ampla do vocábulo “litigante” previsto no dispositivo (PUCCETTI, 2014). O curioso é que o julgamento foi por maioria, o que representa a divergência do tema na época, mesmo após seis anos da promulgação da Constituição.

A processualidade, então, ganhou relevância e colocou em xeque os clássicos atributos do ato administrativo. Realmente, a partir da década de 90, surgiram estudos no sentido de fazer uma releitura crítica do ato administrativo nos moldes como era visto. Assim, por exemplo, o atributo da unilateralidade foi colocado à prova diante da possibilidade de colaboração de particulares na própria elaboração do ato, determinando seu conteúdo, trazendo ideia de consensualidade para o ato administrativo. Por outro lado, o atributo da imperatividade – segundo o qual os efeitos do ato administrativo se impõem coercitivamente, independente de concordância – pode ser contrastado com os casos em que os efeitos do ato são desejados pelo particular, numa situação em que o ato vem em resposta a um pedido seu. Essa possibilidade não se coaduna com a noção de que a imperatividade sugeriria uma prevalência da vontade da Administração sobre a do destinatário do ato, até porque, nessa hipótese, elas seriam coincidentes (MEDAUAR, 2012).

É nesse contexto que se firma a processualidade como a nova tônica do Direito Administrativo contemporâneo, permitindo, inclusive, um novo olhar para o ato administrativo.

A concepção clássica do ato administrativo, construída sob a forte influência positivista, dá grande valor para o aspecto interno do sistema administrativo. Essa característica fez com que o ato administrativo, a partir dessa visão tradicional e endógena, fosse cunhado de autista. O ato autista é fruto de manifestação de poder autoritário, desenhado pelos clássicos atributos do ato administrativo (MARQUES NETO, 2012).

Com efeito, nesse ponto de vista, “(...) o ato administrativo é entendido como manifestação unilateral da autoridade, o qual deve ser analisado apenas a partir dos requisitos internos de validade (competência, forma, limites legais), sem considerar as interações com os interesses e atores externos ao sistema” (MARQUES NETO, 2012, p. 96).

Ainda, nas palavras do professor Floriano de Azevedo Marques Neto,

“Este ato administrativo, tomado pelo ângulo interno ao sistema jurídico administrativo, tratado pelo vetor da estrutura da administração pública, denominaremos aqui de ato administrativo autista. E assim o faremos para ressaltar sua principal característica: um brutal déficit de comunicação com o meio ambiente cultural, social, econômico; sua absoluta indiferença para com os administrados e com a sociedade que, em última instância, são destinatários e razão de ser da prática destes atos. Esta exacerbação da autonomia do ato administrativo, que pressupõe que todos os elementos para sua existência, validade e eficácia são encontráveis internamente ao sistema jurídico administrativo, gera uma absoluta indiferença em relação ao meio. Aquilo que num primeiro momento procura imunizar o ato das interferências da política, da economia, da cultura e, para tanto, coloca o administrado na condição de mero espectador e destinatário do ato” (MARQUES NETO, 2012, p. 96-97).

Para o renomado autor, a processualidade administrativa – ao lado da consensualidade e do controle ampliado da Administração Pública – é vetor para superação do autismo do ato administrativo, pois, com ela, a edição de atos ocorre com a participação dos administrados, atenta aos interesses envolvidos e aberta à comunicação e diálogo (MARQUES NETO, 2012).

A processualidade tem o condão de introduzir “temas como a participação dos interessados na formação do ato, o juízo de otimização (proporcionalidade) como condição para a sua validade, a ponderação de interesses públicos envolvidos, sua utilidade para a consagração ou respeito a direitos fundamentais” (MARQUES NETO, 2012, p. 96).

De fato, a processualidade permite a saída dessa perspectiva interna para perspectivas mais sociais e políticas, com enfoque nas relações de poder. Em obra publicada há quase 30 anos, a professora Odete Medauar já tratava do tema e expunha as “novas” finalidades para as quais se presta o processo administrativo (MEDAUAR, 1993).

As finalidades do processo administrativo são diversas e vão ao encontro dessa necessidade de abertura da Administração em relação ao ambiente que a cerca. Em primeiro lugar, o processo administrativo tem uma função garantista para o administrado no sentido de que se constitui forma de proteger direitos que porventura possam ser afetados, já que, diante do processo administrativo, a atividade administrativa, para ser considerada legítima, tem que observar parâmetros previamente determinados. Nessa esteira, o processo também tem a finalidade de legitimar o poder estatal. Para não ser autoritário, o poder deve ser realizado por meio do processo administrativo, que proporciona paridade e imparcialidade. A imperatividade não pode se confundir com a arbitrariedade. A imperatividade unilateral, autoritária, é substituída pelo resultado de um processo administrativo que confrontou possibilidades, direitos e deveres e chegou, em colaboração, a um ponto de convergência. (MEDAUAR, 1993).

A processualidade proporciona também melhor conteúdo das decisões, pois, com o devido processo, os particulares são ouvidos, apresentando argumentos, provas e informações suficientes para esclarecimento necessário da autoridade que dará a decisão. Ademais, uma vez que tenha decorrido de um procedimento estabelecido, com colaboração dos interessados para formar o convencimento da autoridade, a decisão tem maior eficácia, sendo mais suscetível de aceitação do que com a mera imposição (MEDAUAR, 1993).

Em outra decisão paradigmática, o Supremo afirmou que a ampla defesa e contraditório nos processos administrativos não podem se limitar a aspectos formais. No julgamento do MS 24.268/MG, julgado no ano de 2004, ficou delineado que o direito ao contraditório e à ampla defesa não poderia se resumir na simples manifestação formal no processo. É apresentada a noção de necessidade de devido processo legal substancial no âmbito administrativo. É a ideia de que os direitos de informação e de manifestação do administrado exigem que ele tenha suas razões e argumentos apreciados pela autoridade administrativa, com sua participação efetiva no processo[1] (PUCCETTI, 2014).

A processualidade também traz, para dentro do âmbito administrativo, a finalidade de justiça, superando o paradigma de que só seria possível fazer justiça no Poder Judiciário. Na Administração também é lugar de se realizar justiça, no mínimo, com a efetivação do contraditório e ampla defesa e com a ponderação dos interesses envolvidos em um processo administrativo (MEDAUAR, 1993).

Cabe ressaltar que, a nosso sentir, a finalidade do processo administrativo que mais corrobora a superação do ato administrativo autista é a aproximação entre Administração e cidadãos. A processualidade permite uma verdadeira conversa, um espaço de diálogo, entre os interessados. A colaboração dos cidadãos no processo administrativo, o encontro de vontades do administrador e administrados para a formação da decisão, rompe tradições de contraposição, de defesa contra um poder público autoritário. É, sem dúvida, fator de atendimento aos anseios de democracia e de participação popular, no âmbito da Administração (MEDAUAR, 1993).

As finalidades do processo administrativo, expostas pela professora Odete Medauar, bem explicam as consequências da adoção da processualidade para a superação do ato administrativo autista, apontadas pelo professor Floriano de Azevedo Marques Neto. A primeira consequência é que, com o processo,

“o percurso de edição do ato administrativo torna-se permeável aos interesses dos administrados potencialmente colhidos pelos seus efeitos. Ser permeável não significa que a edição do ato seja capturada, tornada caudatária destes interesses. Significa que todos os diversos ângulos de mirada, todas as contraposições e os conflitos deverão ser conhecidos e considerados. O sistema jurídico administrativo se torna permeável aos demais sistemas e aberto ao ambiente em que se insere” (MARQUES NETO, 2012. p. 110).

A segunda consequência é que,

“dentro da processualidade, o agir administrativo (para o que aqui se trata, a edição do ato administrativo) não poderá ser referenciado apenas nas balizas editadas ex ante (fundamento legal), tornando-se necessário também a consideração do olhar prospectivo (forward-looking), mediante ponderação de impactos, comparação de alternativas, fundamentação da melhor escolha, juízos de ponderação. Em suma, o ato administrativo tomado no ambiente processual tende a se pautar por uma maior responsividade” (MARQUES NETO, 2012. p. 110).

Por fim, com a processualidade,

“não há como se preservar a unilateralidade como pressuposto da prática do ato administrativo. Não que se diga, repita-se, que o ato administrativo estará convolado em negócio jurídico bilateral ou que a Administração possa renunciar ao manejo ponderado do poder extroverso. Porém, no ambiente da processualidade, as posições conflitantes têm de ser consideradas (v.g., levadas em conta inclusive para fins de fundamentação) no momento de produção do ato (ou seja, no curso do necessário processo administrativo). Emerge o que poderíamos chamar de unilateralidade reflexiva, em que o exercício da autoridade não se desvanece, mas se sofistica, perdendo o seu viés autoritário” (MARQUES NETO, 2012. p. 110).

A processualidade se apresenta tão essencial no Direito Administrativo contemporâneo que o STF, em julgamento que retrata verdadeira evolução jurisprudencial, reconheceu a obrigatoriedade de a Administração agir via processo administrativo mesmo em caso de ausência de previsão normativa específica que tenha essa exigência. Isso porque essa obrigatoriedade decorre da própria Constituição Federal. No AgRg em RO em MS 28.517/DF, do ano de 2014, afirmou-se que o contraditório e a ampla defesa são decorrências imanentes da própria garantia constitucional do devido processo legal e que independem de previsão normativa específica nos estatutos administrativos (PUCCETTI, 2014).

No entanto, apesar do deslocamento do centro de gravidade do ato para o processo administrativo, a professora Odete Medauar alerta que, em verdade, não deve existir figura central no Direito Administrativo. Isso porque, tendo se ampliado significativamente as funções do Estado e, por consequência, com a grande diversificação das atividades da Administração, houve enorme crescimento do catálogo de temas afetos ao Direito Administrativo. Assim, ao invés de procurar de uma figura central no ramo, o foco metodológico deve estar na elaboração e na prática de fórmulas que concretizem os direitos sociais, econômicos, difusos e coletivos, que reclamam prestações positivas do Estado (MEDAUAR, 2012).

Em última análise, a processualidade no Direito Administrativo, assim como todos os novos paradigmas que se apresentam, deve buscar o objetivo de garantir a inclusão dos administrados na tomada de decisões pelo poder público, em cumprimento à verdadeira democracia participativa e deliberativa.

__________

1Esse julgado se tornou o principal precedente para a edição da SV nº 3: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão” (PUCCETTI, 2014).

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MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. A superação do ato administrativo autista. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein (coord.). Os caminhos do ato administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 89-113.

MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993.

MEDAUAR, Odete. Administração Pública: do ato ao processo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (org.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012. p. 405-419.

PUCCETTI, Renata Fiori. Breves apontamentos sobre a evolução jurisprudencial sobre o processo administrativo no âmbito do Supremo Tribunal Federal. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes; CAMMAROSANO, Márcio; SILVEIRA, Marilda de Paula; ZOCKUN, Maurício (coord.). O direito administrativo na jurisprudência do STF e do STJ: homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2014.  p. 489-496.

Janine Vilas Boas Gonçalves Ramos
Analista Judiciária do Superior Tribunal de Justiça e Discente do Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas da Universidade de Brasília (UnB).

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