O Imposto sobre Grandes Fortunas ou IGF, é um tributo previsto no art. 153, inciso VII, da Constituição Federal de 1988. Trata-se de imposto de competência exclusiva da União, cuja regulamentação ou implementação jamais foi realizada. Em que pese a previsão do imposto no país já ser antiga, o debate que o envolve ganhou novo fôlego no ano de 2020, com os gastos exacerbados que o aparelho estatal teve com a pandemia de covid-19. Visto por muitos como a mão salvadora, no cenário global o Imposto sobre Grandes Fortunas perde cada vez mais espaço.
Atualmente tramitam no Congresso Nacional cinco projetos de lei acerca do IGF: PLP 09/19, PLP 183/19, PLP 38/20, PLP 50/20 e PLS 315/15. Os diversos projetos apresentam em comum o embasamento de seus relatores: a ideia de que o Brasil sendo um dos países mais desiguais do mundo pode encontrar na taxação de grandes fortunas uma forma de correição de injustiças sociais, acoplada com uma nova ferramenta de arrecadação tributária. Contudo, apesar do prospecto nobre, a solução para os problemas elencados não se encontra na cobrança do Imposto sobre Grandes Fortunas.
Segundo dados coletados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ODCE) e analisados pelo Observatório de política fiscal¹ mantido pela Fundação Getúlio Vargas, dos 37 países que integram a ODCE 12 já instituíram a cobrança do Imposto sobre Grandes Fortunas, quais sejam: Áustria, Alemanha, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Islândia, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, Suécia e Suíça. Todavia, no ano de 2020, apenas 3 mantiveram o tributo: Espanha, Noruega e Suíça. Os motivos que levam a desistência da manutenção do IGF são os mais diversos e merecem ser analisados com maior profundidade.
De antemão, a experiência global demonstra como a taxação sobre fortunas representa parcela ínfima das receitas tributárias nacionais. Apesar de ainda manter o tributo, as receitas dele provenientes representaram 0,2% do PIB da Espanha no ano de 2016², em relação a receitas de impostos individuais sobre patrimônio líquido. No mesmo ano, o imposto análogo ao IGF na França representou menos de 0,5% da arrecadação tributária total do país³.
Ademais, a observação pela ODCE4 da receita do IGF ao longo de 37 anos (1980-2017) em países como a Áustria, Noruega e Suécia demonstrou que, mesmo com o aumento da riqueza nacional, a arrecadação gerada pela taxação de fortunas decaiu consistentemente. Tais resultados são atribuídos, sobretudo, a evasão fiscal e declarações patrimoniais fraudulentas, através da sub-valoração de bens.
A crescente mobilidade dos patrimônios líquidos, juntamente com o uso de paraísos fiscais, combinado com o desenvolvimento da tecnologia da informação e a eliminação de barreiras para transferência de capitais entre países, permite aos contribuintes a manipulação de seus recursos financeiros. Escancara-se assim, outro grave problema: a fuga de capitais. Com um cenário político instável e políticas cambiais variáveis, o Brasil desde já não apresenta característica desejáveis para investimentos ou para a manutenção de aplicações nacionais. E o aumento da carga tributária sobre o patrimônio de possíveis investidores não otimiza a conjuntura já existente.
Ainda da experiência empírica dos países europeus, é possível extrair uma dificuldade valorativa das “fortunas”, com consequente erosão da base de cálculo do tributo. Igualmente penosa a identificação dos contribuintes do IGF: os patrimônios considerados seriam apenas de pessoas físicas, ou pessoas jurídicas seriam igualmente taxadas? Os bens levados em consideração devem concentrar-se em um único país, ou podem ser analisados extra territorialmente? Possui a Administração Pública um sistema funcional a fim de evitar evasões fiscais?
Ademais, no sistema normativo pátrio a base de cálculo do IFG encontra novas provações. Conforme se extrai do caput do art. 5º do já citado PLP 09/195 de relatoria do Deputado Danilo Cabral, a base de cálculo do Imposto sobre Grandes Fortunas seria: “O valor do conjunto dos bens e direitos que compõem a grande fortuna, diminuído das obrigações pecuniárias do contribuinte, constantes de sua declaração anual do Imposto de Renda das Pessoas Físicas e comprovadas documentalmente”. Desviando-se do enfoque de qual critério seria utilizado para configurar uma “grande” fortuna, destaco que a renda já é utilizada como base de cálculo de outro por um velho conhecido dos brasileiros: o Imposto de Renda. Também de competência Federal, o IR igualmente incide, dentre outros, sobre bens e direitos, além dos rendimentos que destes advém. Logo, notória a ocorrência do fenômeno bis in idem, no qual o mesmo ente federativo (União) tributa duas vezes o mesmo fato gerador, neste caso o patrimônio.
Muito além da base de cálculo, e da ocorrência do bis in idem, a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas também acarretaria o fenômeno da “Bitributação”, cuja ocorrência é marcada pela tributação por dois ou mais entes federativos sobre o mesmo fato gerador. Isso porque, conforme ensina o jurista Ives Gandra Martins6, o IGF incide sobre os bens e direitos que já passaram por todas as tributações anteriores. Para fins exemplificativos, observa-se uma pessoa física que fez fortuna através de atividade empresarial: para a manutenção e abertura de sua empresa o contribuinte pagou o Imposto sobre Serviço e Imposto Predial Urbano (IPTU) para o ente municipal, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para os estados, e ainda a Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) e o já abordado IR para a União.
Não obstante o exposto consigna-se que a compreensão dos argumentos favoráveis à regulamentação e consequente instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas é plenamente possível, mas inviável, na minha opinião. Além dos desafios já enfrentados por outros países, tais como a evasão fiscal, fuga de capitais e inúmeras dificuldades de acompanhamento por parte da Administração Pública, os moldes apresentados até então em Projetos de lei que visam regulamentar o IGF são incompatíveis com o ordenamento tributário brasileiro. Nota-se, portanto, que mesmo representando uma alternativa para a problemática desigualdade no país e fonte de receita tributária para cobertura de gastos exorbitantes na pandemia que ainda assola o mundo, a análise aprofundada do tema permite concluir que não há solução fácil.
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1. Mestrado Profissional em Comportamento do Consumidor. Taxa Rosa e a Construção do Gênero Feminino no Consumo, São Paulo, 9 de março de 2017. Disponível aqui. Acesso em: 19 de março de 2021.
João Pedro Loureiro Braga e Manoel Pires. Experiência internacional do Imposto sobre Grandes Fortunas na OCDE, Rio de Janeiro, 17 de abril de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 27 de abril de 2021.
2. OECD Tax Policy Studies. The Role and Design of Net Wealth Taxes in the OECD, Paris, França, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 27 de abril de 2021.
3. OECD Tax Policy Studies, op cit., p. 21.
4. OECD Tax Policy Studies, op cit., p. 21.
5. Danilo Cabral. Projeto de lei Complementar 09/2019, Brasília, 04 de fevereiro de 2019. Disponível aqui. Acesso em: 27 de abril de 2021.
6. Rádio Câmara. A desigualdade tributária e o Imposto sobre Grandes Fortunas, Brasília, 30 de julho de 2015. Disponível aqui. Acesso em: 27 de abril de 2021.