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Aditamento de contratos de concessão de saneamento para atingimento das metas do novo marco

A medida é um instrumento importante para viabilizar as metas de universalização e qualidade.

28/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

1. O dever de consecução das metas do Novo Marco

A universalização dos serviços de saneamento é uma dificuldade com a qual o Brasil lida há décadas. Enquanto houve a disseminação de diversos outros serviços, notadamente desde os processos de privatizações e concessões iniciados na década de 1990, o saneamento de certa forma “ficou para trás” em termos de resultados.

Para tentar pôr um fim a esse problema, o Novo Marco do setor de saneamento impôs uma meta audaciosa. O art. 11-B da lei 11.445, com a redação dada pela lei 14.026, estabeleceu que os contratos de prestação de serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033. Fora isso, esses contratos deverão ainda estabelecer metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento – ou seja, metas de qualidade que sejam aferíveis de modo objetivo.

Mas o Novo Marco não se limitou a impor metas. Ele estabeleceu os instrumentos que podem ser utilizados para a sua consecução.

2. Os contratos de concessão em vigor que não possuem metas

Os contratos de prestação de serviços em vigor que não possuírem metas de universalização nem metas quantitativas de melhoria da qualidade deverão ser aditadas até 31 de março de 2022 de modo a prever essas metas (art. 11-B, §1º). Evidentemente, cabe ao poder concedente negociar com o concessionário atual as condições necessárias para a viabilização do atingimento das metas.

A assunção de novos investimentos pelos concessionários representa uma ampliação dos seus ônus. Logo, deve ser compensada com a adoção de medidas de reequilíbrio, tais como (i) a ampliação do prazo contratual para permitir a amortização dos investimentos adicionais, (ii) a redução de investimentos menos relevantes, (iii) a reformulação do cronograma de investimentos, (iv) a viabilização de novas receitas, seja pelo aumento de tarifas, seja pela reorganização da estrutura tarifária, e (v) a redução de valores eventualmente pagos pela outorga. Aqui, há ampla liberdade para que poder concedente e concessionário revejam as previsões contratuais e adaptem os contratos de modo a viabilizar o atingimento das metas estabelecidas pelo Novo Marco.

Não se pode dizer que essa renegociação das condições contratuais seja per se uma desnaturação dos contratos nem uma violação ao edital que deu origem à avença. Afinal, trata-se de modificar as condições contratuais de modo a cumprir uma imposição legal evidentemente calcada em interesse público relevante.

3. Os contratos de concessão com metas diversas das previstas no Novo Marco

Já em relação aos contratos decorrentes de licitação, mas que possuem metas diversas daquelas estabelecidas pelo Novo Marco, o §2º do art. 11-B estabeleceu que eles permanecerão inalterados, mas previu de maneira exemplificativa três instrumentos que poderão ser utilizados pelo titular do serviço para viabilizar o atingimento das metas. São eles: (i) a prestação direta da parcela remanescente, (ii) a realização de licitação complementar para atingimento da totalidade da meta e (iii) o aditamento de contratos já licitados, incluindo eventual reequilíbrio econômico-financeiro, desde que em comum acordo com o contratado.

Os dois primeiros instrumentos são soluções extracontratuais, ou seja, adotadas fora do âmbito do contrato de concessão dos serviços de saneamento que esteja em vigor. É evidente que o titular do serviço, em vez de aditar o contrato de concessão, dispõe de margem de discricionariedade para, de modo fundamentado, adotar outras soluções, como a prestação direta ou a realização de uma licitação complementar para viabilizar os investimentos necessários a atingir a totalidade da meta que o contrato de concessão em vigor não atingirá se não for aditado¹.

O terceiro instrumento consiste em uma solução interna ao contrato de concessão em vigor. Ou seja, o contrato de concessão celebrado anteriormente ao Novo Marco e que preveja metas diferentes daquelas que foram supervenientemente introduzidas pela nova legislação poderá ser aditado de forma a ampliar as metas e viabilizar o seu atingimento até 31 de dezembro de 2033.

O aditamento de contratos de concessão de serviços de saneamento para fins de atingimento das metas do Novo Marco, no entanto, comporta maiores digressões e detalhamentos.

4. O cabimento de aditamentos aos contratos de concessão com metas diversas das previstas no Novo Marco

Inicialmente, cabe um esclarecimento em termos de interpretação.

Numa leitura inicial, como o §2º do art. 11-B prevê que os contratos de concessão com metas diversas “permanecerão inalterados nos moldes licitados”, pode-se ter a impressão de que haveria uma antinomia com o inciso III, que prevê o instrumento do aditamento contratual. Uma possível interpretação seria dizer que o inciso III estaria a tratar de outros contratos licitados, que não o próprio contrato de concessão. Poderia englobar, por exemplo, um contrato de obra pública, que comportaria aditivo destinado a ampliar o seu objeto e assim englobar obras que seriam necessárias à consecução das metas de universalização. Embora essa possibilidade seja viável, não parece ser apenas esse o sentido do inciso III.

É claro que contratos de obra podem ser aditados para ampliação quantitativa e qualitativa do seu objeto, nos termos da legislação geral de licitações e contratos administrativos. Todavia, não faz sentido lógico afastar essa possibilidade também em relação aos contratos de concessão que tenham metas diversas daquelas estabelecidas pelo Novo Marco.

Primeiro, porque o §1º do art. 11-B admite essa possibilidade em relação aos contratos de concessão que não possuem meta alguma. Se isso é possível em relação a eles, a mesma possibilidade deve se aplicar por razões lógicas aos contratos que possam ter as suas metas meramente ajustadas para atingimento da previsão de universalização do Novo Marco. Em tese, essa alteração é menos relevante do que a prevista no §1º.

Segundo, porque o rol de instrumentos previstos nos incisos I a III do §2º do art. 11-B é meramente exemplificativo, conforme se depreende de interpretação literal do dispositivo (“incluídas as seguintes”).

Terceiro, porque contratos de concessão, por serem avenças de longo prazo que não podem estar fechados às inovações supervenientes, apresentam uma mutabilidade intensificada. Esse regime de mutabilidade contratual continua se aplicando às concessões em geral, não sendo afastado pelo Novo Marco. Pelo contrário, o Novo Marco admite expressamente aditamentos contratuais como um instrumento viável ao atingimento dos objetivos buscados com a nova lei.

Assim, a previsão de que os contratos de concessão em vigor que possuam metas diversas daquelas do Novo Marco “permanecerão inalterados nos moldes licitados” devem ser lidos, na verdade, como uma garantia aos concessionários atuais. A rigor, cabe o seu aditamento, desde que haja concordância do concessionário com as medidas de reequilíbrio destinadas a viabilizar o atingimento das novas metas.

5. Questões relacionadas ao aditamento de contratos de concessão com metas diversas

Estabelecido que os contratos de concessão de saneamento que prevejam metas diversas daquelas estabelecidas pelo Novo Marco podem ser aditados, alguns esclarecimentos se fazem necessários.

5.1. Possibilidade de prorrogação como instrumento de reequilíbrio

Primeiro, é cabível que o aditamento adote como medida de reequilíbrio a prorrogação do prazo do contrato de concessão em vigor.

A prorrogação dos contratos de concessão é comumente uma medida útil e vantajosa ao próprio poder concedente e aos usuários. Por meio da concessão de prazo adicional ao contrato, permite-se que haja tempo hábil para a amortização dos novos investimentos necessários ao atingimento das metas do Novo Marco.

Uma clara vantagem da prorrogação é a viabilização de investimentos sem o aumento de tarifas para os usuários e sem a redução ou exclusão de outros ônus que caibam ao concessionário e que eventualmente não podem ser simplesmente alterados.

Prorrogações dotadas exatamente da mesma lógica têm sido adotadas no setor portuário. Diversos contratos de arrendamento portuário já foram prorrogados antecipadamente como medida necessária à viabilização de investimentos novos cuja necessidade foi identificada supervenientemente à celebração daquelas avenças. A solução foi positivada no art. 57 da lei 12.815 (lei de Portos), mas já era possível – e efetivamente aplicada – antes².

Caberá, em cada caso concreto, definir se a prorrogação é a medida mais adequada de reequilíbrio e se ela eventualmente poderá ser adotada em conjunto com outras medidas de recomposição da equação econômico-financeira. Não é obrigatório que o reequilíbrio se restrinja a uma medida específica.

5.2. Ausência de ofensa ao edital e de burla ao dever de licitar

Segundo o aditamento ao contrato de concessão (seja por meio de prorrogação, seja por outros meios), não constitui ofensa ao edital nem ao dever de licitação. É claro que caberá ao poder concedente avaliar tecnicamente a vantajosidade dos três instrumentos previstos no Novo Marco e de eventuais outros em teses cabíveis. A solução aplicada deverá ser o resultado de uma avaliação ponderada e fundamentada. De todo modo, o simples aditamento contratual não constitui por si só uma burla ao dever de licitar. Se fosse assim, qualquer termo aditivo a contratos administrativos seria irregular, o que é evidentemente uma falsa afirmação.

5.3. Possibilidade de inclusão de novos investimentos em contratos O&M e contratos que tratem individualmente de água ou de esgoto

Terceiro, a inclusão de investimentos adicionais pode ocorrer tanto em contratos que envolvam água e esgoto conjuntamente (por óbvio), como também em contratos que tratem individualmente de água ou de esgoto e ainda em contratos de concessão concebidos na sistemática O&M (Operate & Maintenance), ou seja, aqueles em que o concessionário é responsável pela operação e manutenção, ficando os investimentos a cargo do poder público.

Primeiro, porque não nos parece que os dispositivos façam distinção entre essas situações e admitam o aditamento e a inclusão de novos investimentos apenas nos contratos de concessão de saneamento que já preveem investimentos a cargo do concessionário. Não se deve ler enxergar distinções onde elas não existem, e o Novo Marco de fato não faz nenhuma distinção em relação a essa possibilidade.

Segundo, porque a introdução de metas obrigatórias pelo Novo Marco constitui uma circunstância superveniente, que pode ser atendida de forma mais vantajosa por meio da revisão de um contrato O&M ou de um contrato que trate individualmente apenas de água ou de esgoto. Os motivos que levaram à concepção desses contratos da maneira como eles foram construídos podem não se fazer mais presentes diante da imposição das metas estabelecidas pelo Novo Marco. Assim, não faz sentido excluir qualquer possibilidade de inclusão de investimentos em contratos O&M (ou de investimentos de esgoto em contrato que trate apenas de água individualmente, e vice-versa) se essa solução for a mais vantajosa em comparação com os demais instrumentos previstos na legislação.

Nem se diga que contratos O&M não estabeleceriam metas de universalização e, portanto, não se enquadrariam no §2º do art. 11-B. O caput do art. 11-B não trata apenas de metas de universalização, mas também de metas de quantitativas de aferição de qualidade. Além disso, pode-se reputar que os contratos O&M, justamente por não preverem metas, enquadram-se no §1º do art. 11-B, que admite textualmente aditamentos contratuais (inclusive por prorrogação, conforme sustentado acima) como forma de viabilizar o atingimento das metas do Novo Marco. A diferença é que esses aditamentos deverão ser formalizados até 31 de março de 2022.

5.4. A definição da solução mais vantajosa e o “mix” de soluções

Na prática, a definição da solução cabível em cada caso deverá ser adotada levando em conta a vantajosidade aferível, reconhecendo-se, obviamente, todos os limites e dificuldades que esse tipo de avaliação envolve. Em certos casos, o aditamento do contrato de concessão em vigor será a solução mais vantajosa, mas essa poderá não ser a melhor solução em outras situações. Mesmo adotando-se a solução do aditamento, a forma como ela ocorrerá também deverá ser devidamente avaliada. A prorrogação será a melhor solução em vários casos, mas poderá não ser a mais adequada em outras situações. Pode ainda haver a adoção conjunta de vários instrumentos: prestação direta de certos serviços, licitações complementares para outros, e aditamento contratual da concessão – que, por sua vez, poderá envolver um “mix” de soluções (prorrogação do prazo contratual, alteração das tarifas e da estrutura tarifária, redução de outros investimentos menos relevantes, adequação do cronograma etc.).

5.5. A situação de contrato em que as metas atuais não estão sendo observadas

O aditamento de contrato de concessão para o atingimento das metas do Novo Marco é possível mesmo no caso de contratos de concessão cujas metas atuais não estejam sendo observadas.

Primeiro, porque o não atingimento das metas atuais pode decorrer de uma série de fatores e dificuldades não controláveis pelas partes contratantes. Por exemplo, em municípios que estruturaram mal as suas concessões ou que possuem problemas crônicos relacionados à própria adesão da população à rede de saneamento, muitas vezes o atingimento das metas torna-se dificultoso mesmo com todos os esforços do concessionário e do titular do serviço. No entanto, isso não é motivo para deixar de aditar um contrato que esteja enfrentando esse tipo de dificuldade.

Segundo, porque uma questão é o cumprimento do contrato e outra é a sua adequação para viabilizar o atingimento das metas do Novo Marco. Se houver descumprimento injustificável do contrato pelo concessionário, caberá a sua responsabilização pelas vias próprias, observando-se o contraditório e a ampla defesa. Mas isso não impossibilita o aditamento do contrato se essa for a solução mais vantajosa em comparação com as demais previstas no Novo Marco e na legislação como um todo.

É evidente que a definição pelo aditamento deverá passar por uma avaliação criteriosa acerca da confiabilidade de que o concessionário será capaz de cumprir com os seus novos encargos. Este é um dos motivos pelos quais o art. 10-B da lei 11.445, com a redação dada pela lei 14.026, estabelece que contratos, aditivos e renovações “estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, por recursos próprios ou por contratação de dívida, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços na área licitada até 31 de dezembro de 2033”. Mas o simples fato de metas anteriores às do Novo Marco não estarem em dia não impossibilita que se adote a solução prevista no art. 11-B, §2º, inciso III, da lei 11.445. Em tese, é até possível que o concessionário que esteja com as metas em dia não tenha condições econômicas de cumprir com as metas do Novo Marco. Cada caso deverá ser avaliado individualmente.

6. Conclusão

O aditamento aos contratos de concessão atuais de saneamento é uma medida útil à consecução das metas de universalização e de qualidade impostas pelo Novo Marco. Pode inclusive ser uma solução mais rápida e eficiente do que as demais. Essa possibilidade tem aplicação ampla. As cautelas cabíveis para a sua adoção são necessárias, mas não se deve ter uma intepretação restrita sobre o cabimento dessa solução.

____________

1. A rigor, o terceiro instrumento (aditamento de contratos já licitados – art. 11-B, §2º, inciso III) também pode ser uma solução externa à concessão em vigor, uma vez que é possível interpretá-lo no sentido de abranger outros contratos em vigor (de execução de obras, por exemplo) que possam comportar aditivos para viabilizar a execução de investimentos necessários à consecução das metas legais de universalização e de qualidade.

2. O autor já tratou mais detalhadamente do tema em: SCHWIND, Rafael Wallbach. Prorrogação dos contratos de arrendamento portuário. In: PEREIRA, Cesar; SCHWIND, Rafael Wallbach (coord.). Direito Portuário Brasileiro. 3.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 497-521.

Rafael Wallbach Schwind
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela USP. Visiting scholar na Universidade de Nottingham. Sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini Advogados Associados.

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