A importância da formação histórica dos Estados Unidos para a delimitação do conceito hodierno de Liberdade Religiosa é inquestionável: desde a Declaração de Direitos do bom povo da Virgínia, de 1776 – que preceitua que todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião –, passando pela Primeira Emenda à Constituição americana – que proíbe a produção legislativa para estabelecer religião ou proibir o exercício religioso – e chegando a formação jurisprudencial dos contornos da liberdade religiosa pela Suprema Corte.
A título exemplificativo, e sem pretensão de exaurir ou qualificar o tema, cita-se alguns pronunciamentos jurisprudenciais sobre o tema: possibilidade de restrição da atividade religiosa que configure ato ilegal como poligamia e uso de drogas ilícitas (caso Reynolds v. United States, 98 U.S. 145, em 1878); ilegitimidade de proibir "ataques contra uma doutrina religiosa particular" ou se determinar o que seja sacrilégio (caso Joseph Burstyn, Inc. v. Wilson, 343 U.S. 495, de 1952); proteção a lugares sagrados dos nativos americanos (caso Lyng v. Northwest Indian Cemetery Protective Ass’n, em 1988); proteção a minorias religiosas impopulares (caso Employment Division v. Smith, 494 U.S. 872, em 1990); e impossibilidade de coerção estatal para aderir a qualquer religião, que é inerente à esfera privada do indivíduo (caso Lee v. Weisman, 505 U.S. 577, de 1992).
Sobre o sistema judiciário americano é necessário destacar que sua Corte máxima, a chamada SCOTUS (a sigla de Supreme Court Of The United States), é composta de 9 juízes (o que dá mais peso, per capita, a cada cadeira, em relação à Suprema Corte brasileira, o STF, com 11 ministros). Assim, a cada mudança de cadeira, pode existir um impacto substancial nas deliberações da Corte.
E, durante o período de pandemia da covid-19 – decretada pela em 11 de março de 2020, pela Organização Mundial da Saúde (UNASUS, 2020) – a juíza progressista Ruth Bader Ginsburg, nomeada pelo presidente democrata Bill Clinton, faleceu em 18 de setembro de 2020 (BBC, 2020), tendo sido substituída pela juíza conservadora Amy Coney Barrett, em 26 de outubro de 2020, nomeado pelo presidente republicado Donald Trump (CNBC, 2020).
Aqui analisaremos sucintamente quatro casos da Suprema Corte para ilustrar a evolução do posicionamento jurisprudencial em relação ao tema Liberdade Religiosa, em diferentes momentos da pandemia, nos meses de maio/2020, julho/20, novembro/20 e abril/21.
Maio/20: South Bay United Pentecostal Church vs. Gavin Newsom, Governor of California
A Igreja Pentecostal Unida de South Bay questionou ordem executiva do governador da Califórnia que limitava a frequência em locais de culto a 25% da capacidade do templo ou, no máximo, 100 participantes.
A pedido foi negado, tendo a Corte entendido que as restrições seriam constitucionais, compatíveis com a primeira Emenda, pois imposições iguais ou mais restritivas foram impostas às atividades seculares.
Esse julgamento teve o placar de 5 a 4, com a divergência registrada dos juízes Clarence Tomas, Samuel Alito e Neil Gorsuch.
Julho/20: Calvary Chapel Dayton Valley vs. Steve Sisolak, Governor of Nevada
A Capela Calvário de Dayton Valley questionou as restrições impostadas pelo governador de Nevada, que limitava a presença em locais de cultos a 50 pessoas, porém permitia a algumas instalações, como cassinos, a lotação de 50% da capacidade, sem limite numérico de participantes.
O pedido foi também foi negado pelo Tribunal, mas por 6 x 3, com o voto contrário dos juízes Clarence Tomas, Samuel Alito e Brett Kavanaugh.
Novembro/20: Roman Catholic Diocese of Brooklyn vs. Andrew Cuomo, Governor of New York e Agudath Israel da América vs. Andrew Cuomo, Governor of New York
A Diocese Católica Romana do Brooklyn (20A87) e a Comunidade Judaica Agudath Israel da América (20A90) questionaram ordem executiva do governador de Nova York que limitava a lotação dos templos religiosos a 10 pessoas, nas chamadas zonas vermelhas, e a 25 participantes, nas zonas laranjas.
As entidades religiosas alegavam que operavam, anteriormente, com capacidade de 25% (1/4) ou 33% (1/3), cumprindo as orientações de saúde pública, e que não haviam tido um único surto de Covid-19 na respectiva comunidade.
A Suprema Corte entendeu que a ordem executiva violava o dever de neutralidade de tratamento do Estado para com a religião, isso porque, aos templos foram impostas restrições mais severas que aos estabelecimentos seculares.
Nas zonas vermelhas, as atividades tidas como essenciais – nessas incluídas atividades de acupuntura, áreas de acampamento, garagens, fábricas de produtos químicos e microeletrônicos e todas as instalações de transporte – tinham a permissão para admitir quantas pessoas quisessem. Já nas zonas amarelas, até os estabelecimentos não essenciais tinham a faculdade de decidir quantas pessoas poderiam admitir.
O Tribunal americano entendeu que tais restrições poderiam causar danos irreparáveis, pois (SCOTUS, 2020c, p. 5, tradução livre):
[...] Se apenas 10 pessoas forem admitidas em cada serviço, a grande maioria daqueles que desejam assistir à missa no domingo ou serviços em uma sinagoga no Shabat serão barrados. E embora aqueles que estão excluídos possam, em alguns casos, assistir aos serviços na televisão, essa visão remota não é o mesmo que atendimento pessoal. Os católicos que assistem a uma missa em casa não podem receber a comunhão, e há importantes tradições religiosas na fé judaica ortodoxa que exigem assistência pessoal. [...]
Também a Corte entendeu que o Estado de Nova Iorque não demonstrou que a saúde pública estaria em perigo se medidas menos restritivas fossem impostas.
Por isso, proibiu a imposição das questionadas restrições mais gravosas impostas pelo governador aos serviços religiosos.
Nesse primeiro julgamento em que houve uma guinada jurisprudencial – destaca-se aqui que ocorreu logo após a posse da juíza Amy Coney Barrett, substituindo a falecida juíza Ruth Bader Ginsburg –, o resultado do julgamento se deu por 5x4, sendo favoráveis os juízes Clarence Tomas, Samuel Alito, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. E contrários, os juízes Stephen Breyer (relator), John Roberts, Sonia Sotomayor e Elena Kagan.
Abril/21: Ritesh Tandon vs. Gavin Newsom, Governor of California
Nessa ação, alguns pastores, dentre eles Ritesh Tandon, questionam medidas restritivas do governador da Califórnia a reuniões religiosas em casas dos próprios fiéis.
A Corte entendeu que o Estado estava tratando de forma diferente atividades seculares e religiosas, não inexistia de interesso público justificável para impor a restrição mais gravosa e ausente a comprovação de risco à saúde pública se empregasse medidas menos restritivas.
Nesse julgamento houve a manutenção do placar de 5x4.
Considerações finais
Observa-se que a Suprema Corte americana, seja pelo despontar do fim do período pandêmico nos Estados Unidos ou pela mudança na composição do Tribunal, com a substituição da juíza progressista Ruth Ginsburg pela conservadora Amy Barrett, passou de uma posição de não intervenção nas medidas restritivas impostas pelos governadores ao funcionamento de templos religiosos, no início da pandemia, para uma atuação mais garantista da liberdade religiosa, especialmente em relação a sua acepção de direito de reunião presencial, a partir do final do ano passado.
Vale destacar, que um fundamento que se mantém constante em todo esse período, é comparação das restrições entre as atividades seculares e atividades religiosas, a fim de se verificar se o ato estadual é mais restritivo quanto aos estabelecimentos religiosos, o que seria uma violação a cláusula da neutralidade.
Por fim, também necessário apontar as conclusões diversas da Corte americana – para a qual a limitação de cultos presenciais a 10 pessoas, nas zonas vermelhas, e a 25 nas zonas laranjas, no Estado de Nova Iorque, causaria um dano irreparável aos fiéis, pois uma celebração religiosa não presencial não se equivaleria a uma presencial (SCOTUS, 2020c) – e da Corte brasileira, que entendeu constitucional decreto estadual de São Paulo que proibia temporariamente a realização de cultos, ao fundamento de que tal proibição não fere o núcleo essencial da liberdade religiosa e que a prioridade do atual momento é a proteção à vida (STF, 2021).
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BBC. Morre Ruth Bader Ginsburg, juíza que virou ícone pop e segurou avanço conservador no Supremo dos EUA. 18 set. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 24 mai. 21.
CNBC. Amy Coney Barrett is sworn in, swinging Supreme Court further to the right. 26 out. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 24 mai. 21.
STF. STF mantém restrição temporária de atividades religiosas presenciais no Estado de São Paulo. Brasília, 8 abr. 2021. Disponível clicando aqui Acesso em: 24 mai. 21.
UNASUS. Organização Mundial de Saúde declara pandemia do novo Coronavírus. Brasília, 11 mar. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 24 mai. 21.
UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court. Injunctive Relief nº 19A1044. South Bay United Pentecostal Church vs. Gavin Newsom, Governor of California. Relator: Justice Roberts. Washington, 29 mai. 2020. Disponível em: clicando aqui. Acesso em: 16 abr. 21.
UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court. Injunctive Relief nº 19A1070. Calvary Chapel Dayton Valley vs. Steve Sisolak, Governor of Nevada. Relator: Justice Alito. Washington, 24 jul. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 abr. 21.
UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court. Injunctive Relief nº 20A87. Roman Catholic Diocese of Brooklyn vs. Andrew Cuomo, Governor of New York. Relator: Justice Breyer. Washington, 25 nov. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 abr. 21.
UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court. Injunctive Relief nº 20A151. Ritesh Tandon vs. Gavin Newsom, Governor of California. Relator: Justice Kagan. Washington, 9 abr. 2021. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 abr. 21.
UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court. Injunctive Relief nº 20A136. South Bay United Pentecostal Church vs. Gavin Newsom, Governor of California. Relator: Justice Roberts. Washington, 5 fev. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 24 mai. 21.
USP. Declaração de direitos do bom povo de Virgínia – 1776. Williamsburg, 12 jun. 1776. Disponível clicando aqui. Acesso em: 24 mar. 21.
U. S. SENATE. Constitution of the United States: Amendment I. 15 dez. 1791. Disponível clicando aqui. Acesso em: 24 mar. 21.