O gabinete do Ministério do Turismo comunicou ministros de outras pastas, por meio do ofício 88/21 datado de 13 de maio de 2021, sobre a minuta de um novo decreto que pretende alterar o decreto 8.771/16 e regulamentar a lei 12.965/14, conhecida como Marco Civil da Internet.
Sob a égide da liberdade de expressão e com o intento de regulamentar o capítulo dos direitos e garantias dos usuários da Internet, o decreto pretende, em suma, fixar como regra geral a necessidade de prolação de ordem judicial para a remoção de conteúdo e a suspensão de contas mantidas por usuários em plataformas de Internet. Essa regra comportaria exceções apenas para conteúdo que envolva crimes, nudez e outros ilícitos específicos.
Atualmente, embora os provedores de aplicações de Internet evidentemente já estejam sujeitos a remover conteúdo mediante determinação judicial, possuem também a liberdade de indisponibilizar material que viole os termos de uso de suas plataformas.
Nesse sentido, cumpre esclarecer que a vedação à incitação e prática de crimes e manifestações discriminatórias, assim como uma série de outros comportamentos ilícitos, já é contemplada nos termos de uso das principais redes sociais.
Com a disseminação do uso da Internet como forma de acesso à informação e interação entre usuários, as plataformas passaram a ser cobradas para atuarem na promoção de ambientes digitais saudáveis e no combate à desinformação. Assim, tendo em vista que a liberdade de expressão não compreende um direito absoluto, estão atualmente autorizadas a adotarem medidas restritivas a publicações que ofendam gratuitamente terceiros, divulguem conteúdo íntimo ou compreendam as chamadas fake news, além de uma série de outras condutas que possam violar os seus termos, sem que haja a necessidade de intervenção do Poder Judiciário sobre a questão.
Vale lembrar que a maioria das plataformas conta ainda com canais de denúncias que podem ser realizadas diretamente por qualquer usuário para apuração de violações aos termos de uso, ou normas especiais, como as que protegem a propriedade intelectual. Ainda, não se pode perder de vista que eventuais medidas restritivas aplicáveis pelas plataformas buscam precipuamente a proteção dos próprios usuários, não sendo somente aceitáveis, como também desejáveis.
A redação das regras e diretrizes que regem o uso das plataformas - pessoas jurídicas de direito privado - e a vinculação de seus usuários a elas compreendem contratos. Assim, devem ser regulados pela autonomia da vontade e pela liberdade contratual, que encontra amparo na Constituição Federal, como resultado da livre- iniciativa, fundamento da ordem econômica1 e da própria República2.
Quanto à suspensão e à exclusão de contas em redes sociais de usuários que descumpram as normas previstas nos respectivos termos de uso, tem-se que o Código Civil prevê, categoricamente, em seu artigo 474, a possibilidade de cláusula resolutiva expressa, que opera de pleno direito, portanto, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário.
Além disso, o decreto consiste em ato administrativo do Poder Executivo que se encontra hierarquicamente abaixo das leis ordinárias. Considerando as normas apontadas, seria necessário que a matéria fosse objeto de deliberação do Congresso Nacional, ou seja, do Poder Legislativo, uma vez que não apenas regulamenta lei existente, como efetivamente cria obrigações e restrições à atuação das plataformas de Internet.
O decreto prevê, ainda, a possibilidade de fiscalização das atividades dessas empresas e a aplicação de sanções pela Secretaria Nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, com ligação direta com o Poder Executivo. As penalidades incluem multas com base no faturamento dos respectivos grupos econômicos e medidas restritivas às atividades dos provedores de forma adicional às sanções passíveis de aplicação por outras autoridades regulatórias.
Nesse contexto, além de ilegal e inconstitucional, a assinatura do decreto representaria um retrocesso social e digital, contribuindo para a disseminação de conteúdo inverídico e discursos de ódio, sem falar no possível abarrotamento do Poder Judiciário com novas ações de ajuizamento obrigatório para a simples exclusão de conteúdo, atualmente, passível de análise e remoção pelas próprias plataformas, inclusive com a colaboração dinâmica de seus usuários diretamente no ambiente online.
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1 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
2 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. (...)”
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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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