Migalhas de Peso

Precedentes obrigatórios e a remessa necessária no procedimento do mandado de segurança

O texto pretende analisar o cabimento de remessa necessária em mandado de segurança, nos casos em que a sentence é fundada em precedentes obrigatórios.

21/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O presente ensaio tem por objetivo analisar aspectos ligados aos precedentes obrigatórios e as orientações administrativas como exceções à remessa necessária no procedimento do mandado de segurança.

Já possuo textos e livros¹ publicados nos quais são enfrentados temas ligados à fazenda pública e sua posição processual, suas prerrogativas, o papel do ente e da autoridade pública no mandamus, a sistemática das multas, os meios para a efetivação das decisões judiciais, etc.

A questão a ser analisada neste momento é se as restrições à remessa necessária, previstas no art. 496, §4º, do CPC, são aplicáveis ao mandado de segurança.

Duas observações devem ser feitas, para a correta compreensão da temática: a) o art. 318, parágrafo único, do CPC, consagra a aplicação subsidiária do procedimento comum aos demais procedimentos especiais e ao processo de execução; b) a lei do mandado de segurança (12.016/09) - que é procedimento especial - prevê, no art. 14, §1º, que: “concedida a segurança, a sentença estará sujeita obrigatoriamente ao duplo grau de jurisdição”.

A lei Especial de 2009, portanto, trouxe a previsão genérica de duplo grau de jurisdição, sempre que houver a concessão da segurança (procedência do pedido). A remessa necessária, apesar de ser uma das prerrogativas processuais da fazenda pública neste procedimento, em regra não impede o cumprimento provisório da decisão contida no mandamus, exceto nos casos em que for vedada a concessão de liminar (art. 14, §3º, da lei 12.016/09).

Contudo, o legislador processual comum esvaziou as hipóteses de incidência da remessa necessária. A leitura do CPC indica dois critérios restritivos: quanto ao valor (§3º, do art. 496) e quanto àobrigatoriedade de aplicação dos precedentes e das orientações internas da administração (§4º, do art. 496)².

A pergunta a ser respondida é a seguinte: as disposições da legislação processual aplicam-se ao procedimento mandamental? Não se pretende discutir, neste momento, as restrições à remessa necessária pelo critério valorativo, mas apenas se o duplo grau é efetivamente obrigatório nos casos em que a decisão mandamental for fundada em precedentes obrigatórios e orientações internas.

O Superior Tribunal de Justiça possui julgados consagrando a remessa necessária no procedimento especial mandamental, levando em conta a existência de previsão genérica da remessa prevista na legislação específica. Este entendimento é pautado, em regra, em três pilares: a) procedimento especial do MS; b) inexistência de qualquer restrição no art. 14 da Lei 12.016/09; c) prevalência da lei especial sobre a geral³.

Vale citar alguns julgados da Corte da Cidadania, consagrando este entendimento majoritário4 (anteriores ao CPC/15 e voltados especificamente às hipóteses de limitação valorativa – mas já analisam bem a questão da aplicabilidade das restrições à remessa no MS):

“Processual civil. Recurso especial. Sujeição de sentença concessiva de mandado de segurança ao duplo grau de jurisdição obrigatório. Inaplicabilidade do art. 475 do CPC. Aplicação da regra especial da lei do mandado de segurança. 1. De acordo com a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, é inaplicável ao mandado de segurança o art. 475 do Código de Processo Civil, pois a regra especial contida no art. 12, parágrafo único, da lei 1.533/51, e reproduzida no art. 14, § 1º, da lei 12.016/09, prevalece sobre a disciplina genérica do Código de Processo Civil (art. 2º, § 2º, da LICC). 2. Recurso especial não provido” (REsp 1274066 / PR – Rel. Min. Mauro Campbell Marques – 2ª T – J. em 01/12/11 – DJe de 09/12/11).

“Processual civil. Mandado de segurança. Reexame necessário. Não incidência do art. 475, § 2º, do CPC, introduzido pela lei 10.352/01. Princípio da especialidade. Aplicação do art. 12 da lei 1.533/51. Precedentes. - Inaplicável o § 2º do art. 475 do CPC, que dispensa a remessa necessária da sentença quando sucumbir a Fazenda Pública e o direito ou valor controvertido for inferior a 60 salários-mínimos, por se tratar o feito de mandado de segurança que possui legislação própria, constante do art. 12 da lei 1.533/51, sendo aplicável o princípio da especialização. - Recurso especial conhecido, porém improvido” (REsp 786561 – 2ª T – Rel. Min. Peçanha Martins – DJ de 6/2/06).

“Processual civil. Mandado de segurança. Remessa necessária. Não incidência da regra do § 2º do art. 475 do CPC. Prequestionamento ocorrido. Questão estritamente jurídica. Não procede a alegação de falta de prequestionamento, pois os dispositivos invocados nas razões do Recurso Especial (arts. 12 da lei 1.533/51 e 475 do CPC) versam sobre o instituto da Remessa Necessária, justamente a questão decidida na origem. 2. Ademais, a matéria é eminentemente jurídica e dispensa análise de provas, motivo pelo qual não se aplica o óbice da Súmula 7/STJ. Com efeito, o cabimento de Remessa Necessária em Mandado de Segurança, sem incidência do limite traçado pelo § 2º do art. 475 do CPC, pressupõe apenas interpretação normativa. 3. A jurisprudência prevalecente no STJ é no sentido de que não se aplica ao Mandado de Segurança a regra do art. 475, § 2º, do CPC, por força de previsão específica na lei que disciplina o rito dessa Ação Constitucional (art. 12, parágrafo único, da revogada lei 1.533/1951 e art. 14, § 1º, da lei 12.016/09) (EREsp 687.216/SP, Rel. Ministro Castro Meira, Corte Especial, DJe 4/8/08; REsp 1.274.066/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 9/12/2011; REsp 1.047.540/MT, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 14/8/08). 4. Agravo Regimental não provido” (AgRg nos EDcl no AREsp 302656 SP 2013/0050046-2 - Relator(a) Ministro Herman Benjamin – 2ª Turma - J. em 15/8/13. DJE de DJe 16/9/13).

É importante indagar: qual o motivo para não se aplicar as restrições à remessa necessária ao MS, especialmente no caso em que a sentença é fundamentada em orientação administrativa do Ente Público ou mesmo em precedente obrigatório?

O Enunciado 312, do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), consagra que se aplica à dispensa da remessa necessária ao mandado de segurança nos casos do inciso IV, do §4º, do art. 496, do CPC/15, a saber: decisão judicial coincidente com orientação vinculante firmado no âmbito administrativo do ente público5.

Em verdade, o tema deste Enunciado do FPPC é mais amplo e discute o cabimento das restrições ao reexame necessário, advindas do CPC/15, também ao mandado de segurança.  Uma afirmação deve ser feita: o mandamus é impetrado, na maioria das vezes, visando o controle de atos administrativos oriundos do Poder Público.

Por tal razão, é correta a interpretação do Enunciado 312, do FPPC, quando consagra a possibilidade de dispensa de nova análise da decisão concessiva quando fundada em orientação administrativa no âmbito da própria administração.

Não se deve esquecer que, em verdade, o controle do ato administrativo deve inicialmente ser feito pela própria Administração, que detém o poder de rever aqueles eivados de vícios.6 A conduta do administrador deve ser pautada pela legalidade e ele, mais do que ninguém, controla a sua atividade e o atendimento ao sistema jurídico.

Contudo, não ocorrendo verificação interna da legalidade, esta deve ser exercida pelo Poder Judiciário, por meio dos vários instrumentos jurisdicionais de controle.

Nada impede, que sejam feitos os controles interno e externo simultaneamente, vindo a decretação de nulidade do ato pela própria administração refletir em demanda já em curso como ocorre, v.g, nos casos de aplicação do Enunciado 346 de Súmula da Jurisprudência dominante do STF, pelo administrador durante a tramitação do mandado de segurança, refletindo na futura extinção do mandamus sem resolução de mérito.

Ora, sendo impetrado o MS visando discutir ato administrativo, é acertado o entendimento de que não haverá a remessa necessária em caso de existência de entendimento administrativo vinculante que serviu de fundamento para a decisão judicial (art. 496, §4º, IV, do CPC/15).

Agora, quando a decisão estiver fundada em precedente obrigatório (art. 927 c/c art. 496, §4º, do CPC) oriundo do próprio Poder Judiciário, não vejo razão para não aplicação desta exceção ao procedimento mandamental7.

Ora, considerando que o mandamus, na grande maioria de vezes, visa impugnar ato administrativo oriundo do Poder Público, me parece claro que a discussão quanto à aplicação das restrições à remessa diz respeito aos precedentes obrigatórios. Logo, é possível afirmar que todas as hipóteses previstas no §4º, do art. 496, do CPC devem se aplicar ao mandado de segurança.

Esta é a conclusão a ser feita neste breve ensaio: se é cabível a improcedência liminar em sede mandamental (art. 332, do CPC)8, quando o autor demandar em sentido contrário à precedente obrigatório, também deve ser consagrada a dispensa de remessa necessária quando decisão estiver fundada em precedente também obrigatório contrário à Fazenda Pública ou em consonância com orientação administrativa interna (art. 927 c/c art. 496, §4º, I a IV, do CPC).

___________

1. No tema, ver Mandado de Segurança. 8ª edição. Salvador: Juspodivm, 2021 e O sistema de cumprimento das decisões judiciais contrárias à fazenda pública: a importância do verbo principal. DIDIER JR, Fredie; DA CUNHA, Leonardo Carneiro; BASTOS, Antônio Adonias. Execução e cautelar – estudos em homenagem a José de Moura Rocha. Salvador: Juspodivm, 2012, pp. 283-292.

2. O Enunciado 18, do Fórum Nacional do Poder Público (FNPP) consagra, com acerto, que: “(art. 496, §§ 3º e 4º, Lei 13.105/15) A dispensa da remessa necessária prevista no art. 496, §§ 3º e 4º, CPC, depende de expressa referência na sentença”.

3. Neste tema, bem observa Leonardo Carneiro da Cunha: “segundo entende o STJ, as hipóteses de dispensa de remessa necessária não se aplicam ao mandado de segurança, ao argumento de que há de prevalecer a norma especial em detrimento da geral”. Comentários ao art. 496, do CPC/15. In Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 3ª edição. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coords). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1402.

4. Existem precedentes em sentido contrário, como se pode observar nesta passagem: “2. A exceção imposta pelo § 2º do art. 475, quanto ao cabimento do reexame necessário, aplica-se às sentenças em mandado de segurança. Precedente: Resp 687216/SP, Primeira Turma, Min. José Delgado, DJ de 18.04.2005 (...)” REsp 704677 / SP – Rel. Min. Teori Albino Zavascki – 1ª T – J. em 20/10/2005 – DJ de DJ 07/11/2005 p. 116).

5. E. 312 do FPPC: “(art. 496) O inciso IV do §4º do art. 496 do CPC aplica-se ao procedimento do mandado de segurança”.

6Sobre o tema poder da Administração de rever seus próprios atos, ver os Enunciados 346 e 473 de Súmulas da jurisprudência dominante do STF, além dos julgados a seguir:“O Supremo Tribunal já assentou que diante de indícios de ilegalidade, a Administração deve exercer seu poder-dever de anular seus próprios atos, sem que isso importe em contrariedade ao princípio da segurança jurídica. Nesse sentido, as súmulas 346 e 473 deste Supremo Tribunal:'A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos' (Súmula 346).'A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial' (Súmula 473)." (AO 1483, Relatora Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgamento em 20.5.2014, DJe de 3.6.2014)."É cediço o entendimento desta Suprema Corte de que, diante de suspeitas de ilegalidade no ato de declaração de condição de anistiado, a Administração há de exercer seu poder-dever de anular seus próprios atos, sem que isso importe em desrespeito ao princípio da segurança jurídica ou da confiança. Súmulas 346 e 473 do STF." (RMS 27998 AgR, Relator Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, julgamento em 28.8.2012, DJe de 21.9.2012). 

7. No mesmo sentido, escreve Leonardo Carneiro da Cunha: “a previsão constitucional do mandado de segurança, ao fixar como requisito de sua admissibilidade o direito líquido e certo, pressupõe e exige um procedimento célere e expedito para o controle dos atos públicos. Daí por que se afina com a envergadura constitucional do mandado de segurança entender que os §§3º e 4º do CPC/2015 a ele se aplicam, de sorte que, naqueles casos, não há reexame necessário”. Comentários ao art. 496, do CPC/15. In Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 3ª edição. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coords). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1402.

8. Enunciado 291, do FPPC: “Aplicam-se ao procedimento do mandado de segurança os arts. 331 e parágrafos e 332, §3º do CPC”. Enunciado 15, do FNPP: 15: “(art. 332, Lei 13.105/15). Aplica-se ao mandado de segurança o julgamento de improcedência liminar do pedido”.

José Henrique Mouta
Doutor e mestre em direito (UFPA), pós-doutor em direito (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), professor do Cesupa (PA) e IDP (DF), procurador do Estado do Pará e advogado. www.henriquemouta.com.br

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