Este ano já está marcado na história pela pandemia da covid-19. Porém, inegavelmente, o levante da questão ambiental, impulsionado pelas discussões sobre o desmatamento e queimadas na Amazônia e Pantanal, e ainda, as controvérsias políticas, internas e externas, bem como pela própria pandemia, se constitui como um dos selos de 2020.
Neste passo, emergiram importantes temas que podem alavancar uma governança ambiental estruturada em políticas públicas e exigências de mercado que, a um só tempo, auxiliem na conservação ambiental e impulsionem o Brasil pelo seu incontroverso ativo ambiental e boas práticas de produção sustentável. Não por outro motivo, vimos o crescimento da implementação das práticas de ESG - Environmental, Social and Governance (Meio Ambiente, Social e Governança), o crescimento dos fundos de investimento verdes, a instituição de políticas públicas e privadas de PSA – Pagamento por Serviços Ambientais e créditos de carbono, que tendem a tornar a conservação ambiental em um importante gerador de valores sustentáveis, pautados na tríade clássica do ambientalmente correto, socialmente justo e economicamente viável.
Se por um lado existem reflexos positivos, por outro, temos uma grande onda de verdadeiro “revanchismo ambiental”, com o alargamento desarrazoado de interpretações jurisprudenciais, julgamentos antecipados da lide, aplicação dos princípios da precaução, prevenção e da vedação ao retrocesso ambiental, sem qualquer equilíbrio e em completa desarmonia com a Ordem Constitucional , bem como uma verdadeira enxurrada de decisões liminares e sentenças de 1º grau com comandos que extrapolam a realidade e profundidade da questão, denotando uma projeção indevida e muito perigosa do cenário político e ideológico no campo judicial.
Esta revanche, por vezes, em atenção à opinião pública, é estruturada principalmente na aplicação desarrazoada e imprópria dos princípios mais fundamentais de Direito Ambiental, notadamente o da prevenção, da precaução e da vedação ao retrocesso ambiental, sendo estes sucessivamente alargados com nítido divórcio do caso concreto, dos demais princípios constitucionais, bem como dos objetivos fundamentais da República, valendo citar o de garantir do desenvolvimento nacional e de erradicar a pobreza e marginalização (art, 3º, II e III, CF).
Um bom exemplo de tal situação é o recente julgado do STF nas ADPFs 747, 748 e 749, onde é incontroverso que não há na Resolução CONAMA 500/20, a qual revogou as Resoluções CONAMA 284/01, 302 e 303/02, qualquer objetivo retrocesso ambiental, já se tratando, inclusive, de questões pacificadas por diversos tribunais e colidindo com a jurisprudência do próprio STF, expressa nas ADIs e ADC que reconheceram a constitucionalidade do trato próprio das questões tratadas pelas citadas resoluções pelo Código Florestal de 2012 (lei Federal 12.651).
Não se vê tal cenário apenas na pauta do STF, mas também na aplicação seletiva de institutos dos mais basilares do Direito, tais como a presunção de legitimidade do ato administrativo, que é o pressuposto de que, até a apresentação de prova robusta em sentido contrário, os atos da Administração Pública, incluindo a Ambiental, são tidos como legítimos, corretos e vigentes. Ocorre que, no atual contexto, este pressuposto tem sido aplicado de forma seletiva, ou seja, se consagra tal postulado quando o ato em questão for punitivo ou constritivo – embargo, multas, interdições, apreensões – e o renega à posição de relativo, coadjuvante ou inexistente, quando se trata de autorizações e licenças emitidas, fazendo com que naufrague a segurança jurídica.
Expondo esta situação, o que aqui se provoca é uma necessária reflexão acerca do grande perigo que este revanchismo ambiental, ainda que na melhor das intenções, termina por gerar, na medida em que passamos ao ponto onde a segurança jurídica se fragiliza e autorizações ou licenças ambientais deixam de ser presumidas como corretas, com uma grave rotulagem de que aquele que percorreu todo o trâmite administrativo, ainda assim, será responsabilizado ou minimamente prejudicado pela paralisação de seu empreendimento, obra ou produção, de forma cada vez mais recorrente pela projeção do contexto político-ideológico ao caso e não por qualquer transgressão às normas ambientais.
Os princípios da prevenção, precaução e da vedação ao retrocesso ambiental, não autorizam o seu alargamento para uma aplicação indiscriminada ou que subverta os efeitos próprios de atos jurídicos, sobretudo, administrativo, não podendo ser aplicados de forma desassociada ao complexo ordenamento jurídico onde estão inseridos. A aplicação correta da principiologia particular do direito ambiental não autoriza o desequilíbrio da balança da justiça, nem poder aplicada de forma autônoma de modo a abandonar conceitos legais que leva a decisões dotadas de certa arbitrariedade.
Isso tem gravíssimas consequências, que vão desde o agravamento do maniqueísmo ambiental nacional, onde a produção é colocada como opositora à conservação ambiental, o fomento à deterioração da imagem do setor produtivo nacional e, principalmente, até o estímulo à clandestinidade e degradação predatória, uma vez que, em se subvertendo os entendimentos jurisprudenciais já consolidados e a presunção de legitimidade dos atos emitidos pela Administração Pública de forma praticamente automática, instaura-se a insegurança jurídica para quem percorre o devido processo legal administrativo, lançando para os degradadores e clandestinos a “vantagem” de contar com a ineficiência da fiscalização.
Este complexo enredo ainda é tracionado pela propagação de verdadeiras fake news, sobre ocorrências supostamente lesivas ao meio ambiente, porém com fortes doses de unilateralidade e nítido efeito de tisnar a realidade como forma de se equiparar aos mais lesivos atos à salvaguarda ambiental. Estas “notícias” têm forte potencial de indução no cenário atual, estimulando, inclusive, a equivocada percepção social e do próprio Judiciário.
Compete, com fundamental protagonismo, ao Judiciário, o papel de impedir que este levante ambiental se configure em um revanchismo perverso, no qual quem paga esta conta, seja justamente quem em nada contribui para ela. Urge a retomada da boa técnica e a fidelidade ao que de fato se enuncia por provas robustas, observando a dialética processual, paridade de armas e, sobretudo, a incessante busca pela verdade real, mesmo quando o clamor político-ideológico estampe o que lhe parece mais correto, que nem sempre é o mais justo e tampouco pautado na ordem jurídico-constitucional.