Migalhas de Peso

Como a mediação pode ajudar a recuperação de empresas em dificuldade

Por sua natureza, o emprego dos métodos extrajudiciais de solução de conflitos depende de acordo prévio das partes.

20/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Diz-se que o sistema de solução de conflitos no Brasil perdeu o caráter unidimensional. Até bem recentemente, o único caminho para a resolução de um litígio era o Judiciário. O cenário mudou significativamente nos últimos anos. A mudança, que se iniciara em 1996, com a aprovação da lei de Arbitragem (lei 9.307/96), ganhou força em 2015, com a edição do novo Código de Processo Civil (lei 13.015/15), e, sobretudo, com a entrada em vigor da Reforma da lei de Arbitragem (lei 13.129/15) e da lei de Mediação (lei 13.140/15). Hoje, são várias portas de entrada e, também, diferentes portas de saída. É nesse sentido que se fala em “Tribunal Multiportas” ou “Sistema Multiportas”. Conforme assinalam Antonio do Passo Cabral e Leonardo Carneiro da Cunha, é “como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas; a depender do problema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação; ou da conciliação; ou da arbitragem; ou da própria justiça estatal”¹.

Por sua natureza, o emprego dos métodos extrajudiciais de solução de conflitos depende de acordo prévio das partes. É escolha que deriva da autonomia da vontade e, por isso mesmo, não há a necessidade de que a via a ser utilizada esteja prevista em lei. Como explicitado no Enunciado 81 da I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, organizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), “a conciliação, a arbitragem e a mediação, previstas em lei, não excluem outras formas de resolução de conflitos que decorram da autonomia privada, desde que o objeto seja lícito e as partes sejam capazes”.

Existem inúmeras métodos de solução extrajudicial de conflitos. Não é em todos que a resolução do litígio ocorre de forma consensual. Na arbitragem, por exemplo, a controvérsia é equacionada por um terceiro (o árbitro), imparcial e especialista na temática controvertida, o qual, nos limites da convenção arbitral, de forma semelhante ao juiz estatal, decide quem tem razão, aplicando o direito ao caso concreto.

Já a mediação, a conciliação e a negociação são formas autocompositivas de resolução de conflitos. Nelas, as partes, com ou sem o auxílio de um terceiro, solucionam suas controvérsias consensualmente. Na negociação, as próprias partes, mediante diálogo e sem a intervenção de terceiro, buscam diretamente chegar a um termo quanto ao litígio. Enquanto isso, tanto na mediação quanto na conciliação, um terceiro (o mediador ou o conciliador), neutro e imparcial, auxilia as partes na composição do conflito.²

Mediação e conciliação, contudo, não se confundem. A distinção é sutil: enquanto na mediação³ o terceiro (mediador) deve levar as partes, elas próprias, a construir o caminho para o acordo, sem influir diretamente nas escolhas feitas, na conciliação permite-se que o conciliador exerça um papel mais ativo na condução do diálogo, apresentando sugestões às partes, na busca da solução consensual.

A doutrina4, de forma relativamente uniforme, costuma apontar as seguintes vantagens na adoção dos métodos não adversariais de solução de conflitos (sempre sob uma ótica comparativa com o processo judicial): (i) celeridade; (ii) significativa redução de custos com o litígio; (iii) minimização das incertezas quanto ao resultado; (iv) confidencialidade do procedimento; e (v) preservação do relacionamento das partes envolvidas no conflito. Reconhece-se, também, que a adesão a métodos consensuais de resolução de litígios gera uma boa imagem pública, pois passa uma importante mensagem para os consumidores de que a empresa com eles efetivamente se importa.

Como se vê, é tudo que uma empresa em situação de insolvência almeja: que os conflitos com os empregados, fornecedores, consumidores e parceiros comerciais sejam resolvidos com rapidez, ao menor custo possível, de forma confidencial, com a preservação do relacionamento existente e controlando-se minimamente o resultado da disputa.

É lembrar que, para a reestruturação da empresa em situação de dificuldade, é essencial o envolvimento tanto da sociedade empresária, quanto daqueles que com ela possuem vínculo relacional, seja empregatício ou comercial, como empregados, clientes e, também, fornecedores. Com efeito, não raramente há o interesse e a intenção, de parte a parte, de se preservar os vínculos já constituídos, em uma relação de mútua dependência, mas o desgaste, inclusive emocional, gerado pela inadimplência impede que soluções criativas possam ser empregadas. Em tais circunstâncias, a mediação pode contribuir, imensamente, na preservação das relações empresariais e trabalhistas existentes, facilitando o diálogo e permitindo que se identifiquem soluções econômico e financeiramente sustentáveis, que atendam aos interesses de todos os envolvidos, em benefício não apenas da empresa, mas daqueles que com ela se relacionam.

Mais do que isso, a facilitação do diálogo entre os sujeitos de uma empresa em recuperação (judicial ou extrajudicial) não se restringe às relações dela (devedora) com os seus credores, mas assume especial importância, igualmente, nas relações mantidas entre os próprios credores. Nesse sentido, a mediação pode também contribuir para que propostas sustentáveis sejam apresentadas pelo Comitê de Credores, constituído nos termos do disposto no §2º do art. 52 da lei 11.101/05, após o deferimento da recuperação judicial.

De fato, seja de forma antecedente à recuperação judicial, seja em caráter incidental ao procedimento recuperacional, a mediação pode contribuir, significativamente, para melhorar a comunicação entre as partes e para conferir maior celeridade ao processo. Pode contribuir, ainda, para a apresentação de um plano de recuperação judicial mais transparente, realístico e sustentável, que se adeque aos interesses dos credores, mas também às reais possibilidades da empresa em recuperação, aumentando o comprometimento de todos com o seu cumprimento, em sintonia com o princípio da preservação da empresa, insculpido no art. 47 da lei 11.101/05. O mediador, neste caso, atua como um facilitador do diálogo, em um ambiente sigiloso, conduzindo as partes a um estado de cooperação que propicie a aprovação do plano de reestruturação da empresa.5

É emblemático, a propósito do tema, o uso da mediação eletrônica na recuperação judicial6 da OI, conforme previsão contida no art. 467 da lei de Mediação. Conflitos intermináveis, com milhares de credores, foram prontamente resolvidos, via plataforma on-line8, com drástica redução de custos. Todos saíram ganhando.9

Houve, antes da edição da lei 14.112/20, no bojo do caso OI, relevante discussão a respeito da possibilidade de emprego da mediação no processo de recuperação judicial da empresa. Por maioria de votos, orientou-se a 8ª Câmara Cível do TJRJ, relatora a Des. Monica Maria Costa di Piero, no sentido de que seria possível a mediação, como revela trecho da ementa do julgado:

“6. Com efeito, a lei 11.101/05 não traz qualquer vedação à aplicabilidade da instauração do procedimento de mediação no curso de processos de Recuperação Judicial e Falência.

7. Assim, na forma do art.3º da lei 13.140/15, o qual disciplina "que pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação", não remanesce dúvidas sobre a sua aplicação aos processos de Recuperação Judicial e Falência.

8. Não se perde de vista, contudo, que embora a lei da Mediação (lei 13.140/15) seja a regra especial do instituto, sua interpretação deve se dar em harmonia com o ordenamento jurídico pátrio e, principalmente, no caso, com a lei de Recuperação Judicial.

9. Em se tratando de procedimento de mediação, a minuta elaborada pelas empresas recuperandas não pode ser de cunho vinculativo e não encerra "acordo de adesão", eis que, se assim o fosse, estaria divorciada da natureza jurídica do instituto proposto, o qual pressupõe a criação de um ambiente para que as partes sejam as protagonistas de uma solução conjunta para o seu impasse, a qual será alcançada, consensualmente, por intermédio de concessões mútuas.

10. Tendo em vista que a mediação não deve ser solução pronta, com a estipulação prévia de paradigmas por uma das partes, qualquer pretensão nesse sentido, ainda que sob as vestes de conferir legalidade e celeridade ao procedimento, iria de encontro ao próprio instituto”.10

Na sequência, na linha do decidido pela instância inferior, o Colendo STJ, por decisão monocrática do Ministro Marco Buzzi, no Pedido de Tutela de Urgência 1.049/RJ11, referendou a posição adotada pelo TJRJ, permitindo o uso da mediação no processo de recuperação judicial da OI.

Induvidosamente, a anterior aprovação do Enunciado 45 da I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, de 2016, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, teve papel preponderante no reconhecimento da possibilidade de utilização das soluções extrajudiciais de solução de conflitos no campo da recuperação de empresas em dificuldade. Ali, ficou assentado que “a mediação e conciliação são compatíveis com a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, bem como em casos de superendividamento, observadas as restrições legais12. Também o art. 3º, § 3º, do CPC/15 já sinalizava a importância de se incentivar, na esfera judicial e extrajudicial, a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos.

Mais recentemente, em 2019, foi editada a Recomendação 58, do Conselho Nacional de Justiça, incentivando “os magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de varas especializadas ou não, que promovam, sempre que possível, nos termos da lei 13.105/15 e da lei 13.140/15, o uso da mediação, de forma a auxiliar a resolução de todo e qualquer conflito entre o empresário/sociedade, em recuperação ou falidos, e seus credores, fornecedores, sócios, acionistas e terceiros interessados no processo13.

Sepultando qualquer controvérsia ainda existente sobre o assunto, o art. 20-A da lei de Recuperação de Empresas, nela introduzido pela lei 14.112/20, enfatiza que “a conciliação e a mediação deverão ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição, inclusive no âmbito de recursos em segundo grau de jurisdição e nos Tribunais Superiores”.

A mediação, sem sombra de dúvida, representa um importante instrumento para ajudar no soerguimento das empresas em dificuldades, contribuindo não apenas para a preservação de parcerias comerciais já existentes, mas também para a construção de soluções sustentáveis no tempo, não apenas para a empresa, mas também para aqueles que com ela se relacionam. E o melhor: existe hoje, no ordenamento jurídico, legislação moderna e suficiente a viabilizar o uso juridicamente seguro do instituto nos processos de recuperação judicial.

__________

1. CABRAL, Antonio do Passo & CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negociação direta ou resolução colaborativa de disputas (collaborative law); “Mediação sem mediador”. In: ZANETTI JR, Hermes & CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas: Mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2006, p. 710.

2. Veja-se, a respeito das diferenças entre negociação, mediação e conciliação: GARCEZ, José Maria Rossani. ADRS: Métodos alternativos de solução de conflitos: análise estrutural dos tipos, fundamentos e exemplos na prática nacional/internacional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 13-22 e 29-72.

3. Para uma definição de mediação, confira-se: VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. São Paulo: Editora Método, 2014, p.54. Vide, também: DALLA, Humberto & MAZZOLA, Marcelo. Manual de mediação e arbitragem, São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 50.

4. Por todos, vide: MERLO, Ana Karina França. Mediação, conciliação e celeridade processual. In: Âmbito jurídico, publicado em 01 de outubro de 2012. Disponível aqui.. Acesso em 03.03.2021.

5. Em sentido semelhante: VASCONCELOS, Ronaldo. A mediação na recuperação judicial: compatibilidade entre as leis 11.101/05, 13.105/15 e 13.140/15. In: CEREZETTI, Sheila Christina Neder & MAFFIOLETI, Emanuelle Urbano (coord.). Dez anos da lei 11.101/2005 – estudos sobre a lei de recuperação e falências, São Paulo: Almedina, 2015, p. 458.

6. TJRJ, 7ª Vara Empresarial, Processo 0203711-65.2016.8.19.0001, Juiz de Direito Fernando Viana.

7. “Art. 46. A mediação poderá ser feita pela internet ou por outro meio de comunicação que permita a transação à distância, desde que as partes estejam de acordo”.

8. Vide: Oi - Plataforma da Recuperação Judicial do Grupo Oi. Disponível aqui. Acesso em: 05.03.2021.

9. A propósito, confira-se a entrevista com a advogada Samantha M. Longo. In: Migalhas, 9 de abril de 2019. Disponível aqui. Acesso em 8/3/21.

10. TJRJ, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível no 0018957-54.2017.8.19.0000, Desembargadora Relator Monica Maria Costa di Piero, julgado em 29.08.2017, publicado em 13/9/17.

11. STJ, Tutela Provisória no 1.049/RJ, Ministro Marco Buzzi, 09/11/17.

12. Disponível aqui. Acesso em 8/3/21.

13. CNJ, Recomendação 58, de 22 de outubro de 2019. DJe de 30/10/19.

Gustavo da Rocha Schmidt
Professor da FGV Direito Rio. Presidente do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA e da Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution – RBADR. Doutorando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Master of Laws pela New York University of Law. Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Advogado. Sócio fundador de Schmidt, Lourenço & Kingston - Advogados Associados. Procurador do Município do Rio de Janeiro. É, ainda, Presidente da Comissão de Arbitragem dos BRICS da OAB Federal.

Juliana Bumachar
Advogada, Sócia de Bumachar Advogados Associados, Presidente da Comissão Especial de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência da OAB/RJ, Professora Convidada da Pós-Graduação Lato Senso da FGV Direito Rio, membro do Núcleo de Estudos em Direito Empresarial e Arbitragem da FGV Direito Rio, do Grupo de Trabalho do CNJ para modernização da atuação do Judiciário nos processos de recuperação e falência e do Conselho Administrativo do TMA Brasil.

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