Migalhas de Peso

TCU não observa jurisprudência do STF sobre prescrição

A pretensão punitiva do TCU pode ser compreendida como a apuração de infrações à legislação federal, que pode resultar na aplicação de multas e sanções.

20/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a prescrição de suas pretensões punitiva e de ressarcimento ao erário tem causado insegurança jurídica frente ao entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a matéria.

Embora o STF já tenha decidido que as pretensões de aplicar sanções e de determinar o ressarcimento ao erário via Tomada de Contas Especial (TCE) se submetem à prescrição quinquenal1, o TCU tem insistido em aplicar o prazo prescricional de dez anos para o exercício da pretensão punitiva2, bem como tem entendido ser imprescritível a pretensão de ressarcimento ao erário3.

A pretensão punitiva do TCU pode ser compreendida como a apuração de infrações à legislação federal, que pode resultar na aplicação de multas e sanções, como, por exemplo, a declaração de inidoneidade para participar de licitações promovidas pela Administração Pública Federal.

A prescrição quinquenal da pretensão punitiva é determinada pelo artigo 1º da lei 9.873/994, conforme já decidiu o STF em diversas decisões, em especial por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança 32.201/DF, quando a Primeira Turma da Suprema Corte entendeu que “a prescrição da pretensão punitiva do TCU é regulada integralmente pela lei 9.873/99, seja em razão da interpretação correta e da aplicação direta desta lei, seja por analogia5.

Por outro lado, a pretensão de ressarcimento ao erário visa a reparação de prejuízos causados ao patrimônio público por atos ilícitos.

Para o STF, que analisou a prescritibilidade de ações de ressarcimento ao erário no julgamento do Tema 897 da Repercussão Geral6, somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado pela lei 8.429/92. Significa dizer que prescreve a pretensão de ressarcimento ao erário em relação a todos os demais atos ilícitos, incluindo os atos de improbidade não dolosos, como já havia decidido o STF por meio do Tema 666 da Repercussão Geral7.

Em 2020, o STF enfrentou o Tema 899 da Repercussão Geral8, cujo objeto era a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas. No julgamento, concluiu-se que a imprescritibilidade reconhecida no Tema 897 em relação a atos de improbidade dolosos não se aplica aos julgamentos dos Tribunais de Contas, já que os processos de tomada de contas especial não perquirem a existência de dolo, limitando-se à análise técnica das contas.

Portanto, não há dúvidas de que é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão do TCU. E mais: se o STF reconhece a prescritibilidade da adoção de medidas executivas judiciais para levar a efeito imputações de débito promovidas pelos tribunais de contas, é evidente que também prescreve a pretensão dos tribunais de contas de instaurar e conduzir processos de tomada de contas especial para a apuração e imputação de deveres de ressarcimento ao erário.

Em relação ao prazo prescricional, o julgamento do Tema 899 definiu que deve ser aplicado o prazo quinquenal da lei de Execução Fiscal (lei 6.830/80) à pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos com base em acórdão de Tribunal de Contas.

Ainda assim, apesar de todo o esforço empenhado pelo Judiciário para uniformizar o entendimento a respeito dos prazos prescricionais, o TCU tem insistido no entendimento de que a pretensão punitiva prescreveria em dez anos9, com base no artigo 205 do Código Civil10, assim como tem insistido na tese de que seria imprescritível a pretensão de ressarcimento ao erário no âmbito da Corte de Contas11.

A inobservância do entendimento fixado pelo STF pode ser ilustrada pelos fatos que se sucederam ao julgamento do mandado de segurança 35.512/DF, relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski. Naqueles autos, a segurança fora concedida para declarar a ocorrência de prescrição da pretensão punitiva do TCU, em razão do transcurso do prazo de cinco anos previsto no artigo 1º da lei  9.873/9912.

Em seguida, o TCU entendeu que a prescrição declarada pelo STF atingiria tão somente a aplicação de sanções e determinou a instauração de processo apartado para a imputação de débito em decorrência de supostos danos ao erário.

Diante disso, a parte ajuizou reclamação que veio a ser julgada procedente pelo STF, que concluiu que a instauração de nova tomada de contas especial, destinada a apurar eventual responsabilização por danos ao erário, contrariou inequivocamente a autoridade da decisão proferida no MS 35.512/DF, motivo pelo qual se determinou o trancamento do novo processo relativo aos mesmos fatos já declarados anteriormente como prescritos13.

Ainda assim, de modo geral, o TCU segue aplicando nos processos de tomada de contas especial seu entendimento anterior14, que já foi afastado pelo Poder Judiciário em inúmeras ações, inclusive pelo STF em sede de repercussão geral.

A resistência do TCU quanto à aplicação da jurisprudência do STF, contudo, não se justifica sob os pontos de vista jurídico e institucional. Revela desprestígio à função jurisdicional exercida pela mais alta Corte do país e à harmonia constitucionalmente imposta aos poderes da República.

___________

1. Nesse sentido: (i) MS 35940, Relator: Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 16/6/20, DJe 176, disponibilizado em 13/7/20 e publicado em 14/7/20; (ii) Rcl 39497 AgR, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 10/10/20, DJe 255, disponibilizado em 21/10/20 e publicado em 22/10/20; e (iii) RE 636886, Relator: Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 20/4/20, Repercussão Geral, DJe157, disponibilizado em 23/6/20 e publicado em 24/6/20.

2. Nesse sentido: TCU, Acórdão 679/20-Plenário, Tomada de Contas Especial (TCE), Processo 028.455/2008-0, Relator: Ministro Vital do Rêgo, data da sessão: 25/3/21, ata 9/2020 – Plenário.

3. Nesse sentido: TCU, Acórdão 1060/2021 – Plenário, Tomada de Contas Especial (TCE), Processo 019.375/2019-0, Relator: Ministro Augusto Sherman, data da sessão: 5/5/21, ata 15/21 – Plenário.

4. Lei 9.873/1999, Art. 1º: “Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado”.

5. STF. MS 32201, Relator(a): Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 21/03/17, DJe 173, Divulgado em 04.08.2017 e Publicado em 07/8/17).

6. STF. Tema 897 da Repercussão Geral. RE 852475, Relator: Ministro Alexandre de Moraes, Redator(a) para o Acórdão: Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 8/8/18, DJe 058, Divulgado em 22/3/19 e Publicado em 25/3/19).

7. STF. Tema 666 da Repercussão Geral. RE 669069, Relator: Ministro Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 3/2/16, DJe 082, Divulgado em 27/4/16 e Publicado em 28/4/16.

8. STF. Tema 899 da Repercussão Geral. RE 636886, Relator: Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 20/4/20, DJe 157, disponibilizado em 23/6/20 e publicado em 24/6/20.

9. Nesse sentido: “A prescrição da pretensão punitiva do TCU subordina-se ao prazo geral de prescrição disposto na Lei 10.406/2002 (Código Civil), dez anos, contado a partir da data da ocorrência da irregularidade e interrompido pelo ato que ordenar a citação, a audiência ou a oitiva da parte.” (TCU, Acórdão 67920-Plenário, Tomada de Contas Especial (TCE), Processo  028.455/2008-0, Relator: Ministro Vital do Rêgo, data da sessão: 25/3/21, ata 9/2020 – Plenário).

10. Código Civil: “Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.

11. Nesse sentido: “Vale ressaltar que a jurisprudência pacífica nesta Corte é no sentido da imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário (Súmula TCU 282). Dessa forma, identificado dano ao erário, deve-se instaurar e julgar o processo de tomada de contas especial para responsabilizar seus agentes causadores, respeitando o direito ao contraditório e à ampla defesa, independentemente de quando ocorreram os atos impugnados. [...]. Diante de todas as dúvidas ainda existentes sobre a decisão do STF no âmbito do RE 636.886, opto por aplicar ao caso em exame a jurisprudência do TCU então existente, que se fundamenta no art. 37, § 5º, da Constituição Federal, no que tange ao ressarcimento do prejuízo” (TCU, Acórdão  1060/2021 – Plenário, Tomada de Contas Especial (TCE), Processo 019.375/2019-0, Relator: Ministro Augusto Sherman, data da sessão: 05/5/21, ata nº 15/2021 – Plenário).

12. STF. MS 35512 AgR, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 04/6/19, DJe  135, disponibilizado em 19/6/19 e publicado em 21/619.

13. STF. Rcl 39497 AgR, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 10/10/20, DJe  255, disponibilizado em 21/10/20 e publicado em 22/10/20.

14. Recentemente, ao julgar TCE instaurada em razão de suposta omissão em prestação de contas de Convênio, o Plenário do TCU, em desacordo com o entendimento do STF, afastou a prescrição da pretensão punitiva e da pretensão ressarcitória, imputando débito e multa ao responsável, inclusive com a perquirição de dolo, sob o argumento de que o prazo prescricional da pretensão punitiva seria de dez anos, enquanto a pretensão de ressarcimento seria imprescritível: Acórdão 7652/2021-Segunda Câmara, Tomada de Contas Especial (TCE), Processo 033.345/2019-8, Relator: Ministro André de Carvalho, data da sessão: 11/5/21, ata 15/2021-Segunda Câmara.

Ricardo Barretto de Andrade
Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Sócio de Barretto & Rost Advogados.

Gabriel Silva Campos
Graduado em Direito pelo UniCEUB e advogado da Barretto & Rost Advogados.

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