Migalhas de Peso

Impactos do homeschooling para o direito à educação inclusiva

O chamado “homeschooling” é palavra de origem inglesa que se traduz no português como ensino domiciliar.

19/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

“O senhor… mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão” (Guimarães Rosa)

Está na Câmara dos Deputados o PL 3.179/12 que visa alterar a lei de Diretrizes e Bases da Educação para regulamentar o ensino domiciliar. A Deputada Federal Luisa Canziani é a relatora e apresentou seu substitutivo na última sexta, quando fez mais uma audiência pública do ciclo de debates solicitado pela sociedade civil organizada, tratando, desta vez, das crianças e adolescentes com deficiência no país, foco da nossa reflexão.

O chamado “homeschooling” é palavra de origem inglesa que se traduz no português como ensino domiciliar. Com a pandemia da covid-19 que mais de 430 mil mortos já fez no país e que obrigou as famílias, em caráter de emergência e porquanto durar esta calamidade pública, a fazer o ensino domiciliar, temos uma experiência concreta para abordar que, apesar de não se confundir com a proposta em pauta na Casa Legislativa, é a razão para que esse projeto de lei ganhe uma maior dimensão no debate público. Ao mesmo tempo, é também o motivo pelo qual exaramos as nossas ponderações já que todo o país constatou o quão danoso o isolamento social é para o desenvolvimento das crianças e adolescentes, com e sem deficiência.

A possibilidade do ensino domiciliar em situações de emergência, como a que estamos vivendo, está prevista no ordenamento jurídico, mas não como forma alternativa permanente, justamente por ser dissociada do modelo de educação que a nossa Constituição prevê.

É que a Constituição Federal diz, em seu artigo 205, que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, e deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. É de se reconhecer a relevância e o papel da família na educação, mas é preciso desde já deixar claro que é uma responsabilidade compartilhada, da qual o Estado não pode se eximir.

Foi o que o Supremo Tribunal Federal afirmou expressamente no julgamento do Recurso Extraordinário RE 888 815 encerrado em 2018. A família não pode educar sozinha os seus filhos pois essa é também uma obrigação do Estado brasileiro. O direito público subjetivo à educação é das crianças e adolescentes e não das famílias. Este papel complementar das famílias e não substitutivo ao Estado é a base do posicionamento afirmado em Nota Técnica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva, composta por 45 entidades de luta no campo da educação, direitos da infância, direitos humanos e direitos das pessoas com deficiência¹.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no último censo de 2010, existem aproximadamente 45 milhões de pessoas no Brasil que vivem com deficiências sejam elas visuais, auditivas, físicas, intelectuais ou múltiplas. O impacto do homeschooling para essas pessoas com deficiência é enorme.

Desde 2008, contamos no Brasil com um marco constitucional importante que se soma ao texto da Carta Magna de 1988 - a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU). Ratificada com status de equivalência constitucional seguindo todos os trâmites da Emenda Constitucional 45 de 2004, a Convenção é, sem dúvidas, parâmetro de validade das normas no país.

E por que a ONU fez um tratado específico para pessoas com deficiência? Não já estariam as pessoas com deficiência previstas em todos os demais tratados de direitos humanos? A razão principal reside justamente nas especificidades das pessoas com deficiência, que não estavam sendo consideradas no todo.

É claro que as pessoas com deficiência também têm direito à educação assim como as demais, mas como deve ser garantido o direito à educação para as crianças e adolescentes com deficiência? O artigo 24 da Convenção dispõe sobre o sistema educacional e diz que ele deve ser inclusivo, em todas as modalidades de ensino. Diz ainda o tratado de direitos humanos que não se pode discriminar por motivo de deficiência. Essa garantia é a “porta de entrada e permanência” das pessoas com deficiência no sistema educacional para que possam conviver com as demais “em igualdade de oportunidades”. São questões importantes que orientam a análise das políticas públicas e regulamentações que impactam as pessoas com deficiência.

Pela Convenção, novos princípios e novos direitos foram previstos no nosso ordenamento jurídico adicionalmente ao direito à educação inclusiva, em especial, o direito à acessibilidade e à capacidade jurídica.

Para as pessoas com deficiência terem acesso à escola, por exemplo, é preciso que os espaços e a comunicação sejam acessíveis, que os materiais e as metodologias utilizadas sejam acessíveis, que haja formação continuada dos professores e demais profissionais da educação. Por isso na nossa legislação temos diversas regras que tratam do tema, numa evolução histórica de garantia de direitos que vem desde o atendimento educacional especializado da Constituição de 88, passando pela definição do sistema educacional inclusivo por princípio na Convenção e culminando mais recentemente com o detalhamento contido na lei Brasileira de Inclusão – lei 13.146/15.

Se tivéssemos sido inclusivos desde os primórdios, pessoas com deficiência não teriam sido descartadas e alijadas de seus direitos durante tantas gerações. No sistema vigente, a legislação induz, por exemplo, que o recurso público não pode gerar mais exclusão (LBI, art. 54, III). É então proibido que projetos educacionais com recursos públicos – por execução orçamentária ou renúncia fiscal - não prevejam acessibilidade na origem ou que tenham que se transformar, se já existentes, em acessíveis.

Prover recursos de acessibilidade, nessa linha, é considerado um “direito ponte”, fundamental para que as pessoas com deficiência possam exercer outros direitos como o direito à educação.

Para aprofundar esse debate, importante trazer aqui também o tema da capacidade legal prevista no artigo 12. Diz a Convenção que as pessoas com deficiência gozam de capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas, em todos os aspectos da vida. No espírito do tratado, não há pessoa que não tenha condições de exercer suas escolhas, preferências e direitos.

Poderíamos aqui aclarar que a única pessoa que não consegue de fato expressar seus desejos é quem está em coma. As demais, por mais dificuldades que tenham de se expressar, de se comunicar, de andar, de escutar ou enxergar, tem direito a expressar suas vontades e de serem estimuladas enquanto crianças a se desenvolver em todas as dimensões da vida (cognitivas, sociais, físicas, psicológicas, de comunicação).

De novo, precisamos construir as “pontes” para que isso aconteça. A tomada de decisão apoiada, que se assemelha à ideia de comunidade plural de interpretações no melhor interesse da criança, aponta caminhos para apostarmos! 

Quando tiramos a criança ou o adolescente com deficiência da escola, estamos tolhendo a oportunidade de conviverem com outras crianças e adolescentes e de terem acesso ao conteúdo e às experiências que apenas a escola oportuniza.

O direito à educação inclusiva tem uma dimensão individual e outra coletiva. Inclui o direito à participação nos espaços educacionais, em igualdade de oportunidades, e deve ser exercido junto com as demais crianças e adolescentes, usufruindo de processos semelhantes de aprendizagem e de aquisição de conhecimentos, na construção da troca. É nesse sentido um direito recíproco do qual são titulares todas as crianças e adolescentes. Aprendemos no coletivo, com o grupo, com pares da mesma faixa etária, na interação.

A Constituição também fala sobre “igualdade de condições”. Entre os princípios nos quais o ensino deve ser ministrado no seu artigo 206, a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” prevista no inciso I deve ser observada. E de que igualdade estamos falando se for autorizado que famílias se desobriguem de levar as crianças e adolescentes para a escola e assumam o homeschooling permanente caso esse projeto seja aprovado?

O preconceito surge do desconhecido, do que temos medo, do que nos é diferente. A escola que representa a diversidade justamente proporciona a seus alunos a convivência com a diferença e nos forma de maneira mais humana e abrangente.

Como podemos saber das dificuldades e potencialidades de coleguinhas da escola se não os conhecermos? Como aprender a se comunicar com crianças que fazem uso da comunicação alternativa? Como entender as questões que envolvem uma pessoa surda, cega ou surdocega se nunca pudermos encontrar uma? Como compreender os comportamentos de uma pessoa autista, o que a irrita e o que a acalma? Para lidar e conhecer as pessoas que habitam todos os corpos independentemente de seus graus de funcionalidade precisamos ter a oportunidade de estar com elas em ambientes de natureza pública como são as escolas.

A aprendizagem vem justamente da interação e da possibilidade de críticas e discernimentos, obtidas com vivência. Não se pode assumir que os valores dos educandos serão formados apenas na esfera privada dissociada da esfera pública, pois as pessoas crescerão e terão que lidar com o mundo tal qual ele é.

A desresponsabilização do Estado para com a garantia de direitos de crianças e adolescentes com deficiência é um retorno a tempos medievais onde pessoas com deficiência em situação de maior vulnerabilidade não tinham direitos. Ao considerar que pessoas com deficiência podem ser excluídas do ambiente escolar em razão de sua condição clínica, ou seja, pela sua dificuldade de permanência na escola, e que neste sentido é melhor o “ensino domiciliar”, estamos de fato dando passos atrás em relação a conquistas históricas. Os esforços e as lutas nessa seara devem ser para que os direitos garantidos sejam colocados em prática e que não tenhamos mais tenhamos pessoas com deficiência excluídas em nossa sociedade.  

O que está por traz da prática de educar em casa e não ir à escola? São pais que amam seus filhos, querem educá-los e protegê-los da sociedade, que se apresenta como violenta e perigosa. São famílias que querem que seus filhos tenham como único contato a si próprios ou seus pares designados. Parte dos argumentos dos que defendem o ensino domiciliar envolve preferências religiosas e ideológicas dos pais responsáveis.

Não se trata de uma questão com resposta fácil. São muitas teorias da conspiração que propagam como terror uma suposta “ideologia de gênero” quando, na verdade, não é disso que se trata. A escola ensina sobretudo o respeito à diversidade, ao convívio, e à coexistência pacífica como caminhos para a tão sonhada liberdade, propagada pelos defensores do homeschooling. Só serão verdadeiramente livres e poderão escolher com consciência aqueles que conhecerem as opções que a vida oferece. E mais, sabemos que a liberdade de um começa onde termina a do outro. Seremos uma sociedade mais respeitosa e menos violenta na medida em que tivermos mais e mais cidadãos ciosos da necessidade de respeitar o direito alheio.  

Educação demanda didática, estudo, compartilhamento e colaboração entre educadores. Não há óbice de se escolher, entre as diversas opções existentes de escolas públicas e privadas no país, aquela que melhor coaduna com a visão dos pais. O que não podemos é privar as crianças e adolescentes do direito de conviver com outras crianças e com outros adultos que com elas também criam vínculos e são responsáveis pelo seu desenvolvimento tal qual previsto em nosso sistema constitucional.

Segundo o texto constitucional, “compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola”. Como atender a esse comando constitucional de frequência à escola em regime de ensino domiciliar? Há muitos desafios no estabelecimento de parâmetros e limites para conectar o ensino domiciliar com o sistema educacional brasileiro que podem não ser superados neste debate.

Os Estados Unidos são sempre citados como exemplo nas discussões sobre o tema por deter o maior número de famílias que praticam a educação em casa. São 2,5 milhões de alunos sendo ensinados dessa maneira num universo de 300 milhões de pessoas, o que é quase 1% da população. Em Portugal, os pedidos precisam ser justificados e tem regras bem rígidas. Desde a regulamentação há pouquíssimas solicitações - apenas 12 entre 2002 e 2009 em um universo aproximado de 1,3 milhão de alunos – conforme pesquisa relatada por Maria Celi Vasconcelos, da UERJ, cujos números foram apresentados em audiência pública na Câmara dos Deputados em 22 de abril último. Vale dizer que o ensino domiciliar é considerado crime em países desenvolvidos como Alemanha e Suécia, por exemplo. A conclusão que alertamos é que a legalização do modelo com a sua consequente regulamentação tem o condão de induzir ou de inibir o modelo, por isso nossa posição contrária ao projeto de lei em referência.

Uma sociedade verdadeiramente inclusiva começa no ambiente escolar. É urgente e necessário que o Estado priorize o sistema educacional público e envide esforços para impulsionar a educação inclusiva no país, nos moldes do que preconiza a Constituição e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Não há quem não se beneficie da educação inclusiva, mas não basta uma gramática de inclusão. É preciso ter investimentos e práticas de inclusão para mudar a realidade das crianças e adolescentes com deficiência no país, com formação de professores constante e o provimento de recursos de acessibilidade. Não será ficando em casa que se desenvolverão no seu mais alto potencial. A chave da inclusão é a convivência. As nossas crianças e adolescentes com deficiência devem ter prioridade absoluta e merecem uma resposta adequada do Estado Brasileiro.

___________

1. A Coalizão, em 28 de abril, se manifestou contrariamente à aprovação do PL 3.179/12. Disponível aqui. Acesso em 17/5/21.

Laís de Figueirêdo Lopes
Advogada, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP e Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Coordenação da Frente Jurídica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva. Foi Conselheira do Conade - Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência representando o Conselho Federal da OAB, de 2006 a 2011, e Ex-Assessora Especial do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, de 2011 a 2016. Participou do comitê ad hoc de elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU de 2005 a 2006, e do processo de ratificação no Brasil de 2007 a 2009.

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