Migalhas de Peso

O risco da advertência “milica” na nova lei de Licitações e Contratos

A nova lei Geral de Licitações e Contratos não previu o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório à aplicação da advertência. Você já parou para pensar como ela será compreendida por cada Ente federativo?

18/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A nova lei de Licitações e Contratos (NLLC), lei 14.133/21, alterou significativamente a sistemática de aplicação das sanções administrativas às licitantes e contratantes, estabelecendo, por exemplo, normas básicas para o Processo Administrativo de Responsabilização (PAR), rol taxativo de condutas infracionais, vinculação destas à incidência de sanções correspondentes, parâmetros à dosimetria entre estas1, prazos e requisitos de reabilitação ao impedimento e à declaração de inidoneidade para licitar e contratar, além da comunicação entre a apuração infracional da nova lei e da Lei Anticorrupção (lei 12.846/13).

Este artigo analisará a advertência na NLLC, a qual tenho dito que é “milica”, em virtude de que, a meu ver, mantém muitas características semelhantes à “admoestação” prevista nos regulamentos disciplinares militares. Ao se analisar a área topográfica sancionatória da lei 14.133/21, chama a atenção a ausência da previsão expressa do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório prévios a sua aplicação, que, a meu ver, não foi “esquecimento” do legislador.

A NLLC, no art. 156 da NLLC, prevê que “serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta lei as seguintes sanções: I - advertência; II - multa; III - impedimento de licitar e contratar; IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar”. Não há dúvidas, portanto, que a advertência é, formalmente, uma sanção administrativa.

O § 2º do referido art. 156 assentou que a advertência será aplicada exclusivamente quando o contratante der causa à inexecução parcial do contrato, que não cause grave dano à Administração, ao funcionamento dos serviços públicos ou ao interesse coletivo, pois, se isso ocorrer, necessariamente, incidirá sanção mais gravosa (impedimento ou declaração de inidoneidade para licitar e contratar), como decorre da inteligência combinada dos arts. 156, § 2º, com os incisos I e II do art. 155, ambos da NLLC.

Ainda que possa parecer óbvio, neste momento inaugural da lei, é necessário dizer que, pela aplicação combinada do caput e do inciso I do art. 155, a advertência não se aplica ao licitante, apenas ao contratado, uma vez que não há como aplica-la sem a relação contratual, a qual, na fase licitatória, todos sabemos que ainda inexiste.

Avançando no estudo do tema, no que tange especificamente ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, o legislador geral, intencionalmente, previu processualística diferenciada para as espécies de sanções, como será demonstrado abaixo.

À aplicação de multa, simplesmente haverá a intimação proporcionando a defesa prévia no prazo de 15 dias úteis (art. 157 da NLLC), em sistemática semelhante à imposição da multa de trânsito estabelecida no art. 281-A do CTB. Não há, portanto, qualquer afronta ao devido processo legal, que será proporcionado através do conhecido processo administrativo sumaríssimo.

Caso a arrolada apresente defesa prévia, esta deverá ser juntada aos autos, analisada e considerada por ocasião da decisão administrativa sancionatória. Proferida esta, a NLLC, no art. 166, prevê a possibilidade de interposição de recurso administrativo também no prazo de 15 dias úteis. Por força do art. 168, aplicado à luz do dever (não é poder) geral de cautela administrativa, a Administração ainda não poderá tornar efetiva a imposição da sanção, até o decurso in albis do prazo recursal ou sua apreciação e decisão, caso haja interposição acompanhada das razões recursais. Estará, assim, concluído o devido processo legal (sumaríssimo), que conterá poucas páginas.

À imposição das sanções de impedimento e declaração de inidoneidade para licitar e contratar, o legislador previu Processo Administrativo de Responsabilização (PAR), a ser conduzido por comissão composta por no mínimo dois membros, os quais deverão preencher os requisitos intrínsecos do art. 158 caput e seu § 1º, bem como os extrínsecos previstos no art. 7º, incisos II e III, da NLLC.2

Neste PAR, que segue o procedimento comum (ordinário) no âmbito administrativo, haverá defesa prévia a ser apresentada em 15 dias úteis (art. 158, caput) e, ocorrendo a instrução processual, abertura do mesmo prazo para apresentação de alegações finais (art. 158, § 2º). A norma geral não fixou prazo à conclusão do PAR, o que poderá ser estabelecido por legislação (inclusive ato infralegal) específica, atentando-se ao princípio da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88) e ao princípio da celeridade (art. 5º, da NLLC).

Adentrando ao cerne do objeto deste artigo, quanto à processualística aplicável à advertência, intencionalmente, o legislador não previu o devido processo legal, a ampla defesa e contraditório prévios. Qual foi o seu animus ao não dispor sobre essas garantias? Não descarto que ele tenha se inspirado na “advertência milica”, conforme passo a explicar.

Com o advento da lei 14.133/21, conceitos até então construídos acerca de institutos que levam o mesmo nome, mas com “roupagem” diferente, poderão ser reconstruídos (veja a “nova” concorrência, que não mais é definida em razão do valor e poderá contemplar uma fase de lances, ou seja, absolutamente diferente daquela prevista na lei 8.666/93). Assim poderá ser com a advertência, pois vejo a possibilidade (ainda que eu não deseje) de ela ser compreendida de modo diverso pelos Entes federativos.

A advertência, na lei Geral de Licitações e Contratos, por não ser precedida do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, embora formalmente seja uma sanção administrativa, materialmente poderá não ser! A advertência, na nova lei, poderá ser vista como a “admoestação”, a tradicional “chamada de atenção” do cotidiano administrativo.

Entendo, inclusive, que, tal qual está na “lei geral”, poderá vir a ser aplicada verbalmente por alguns Entes federativos, no sentido de alerta, algo como “contratada, ajuste sua conduta para não sofrer consequências gravosas, considere-se advertida!”. Poderá ser um aviso, só! Essa advertência, como alerta de correção de conduta, não é desconhecida no direito administrativo disciplinar e, a meu ver, poderemos vir a ter regulamentações em que ela será aplicada diretamente pelo próprio encarregado pela fiscalização do contrato (art. 117, § 1º, da NLLC).

Agora, é necessário que o leitor preste atenção no paradoxo que o legislador geral nos colocou: a nova advertência, se dispensar garantias, não poderá trazer nenhum gravame à contratada, sendo apenas uma admoestação (até verbal). Todavia, ao mesmo tempo que não previu o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório prévios, ele estabeleceu, no art. 166, o cabimento de recurso administrativo no prazo de 15 dias úteis, contra sua aplicação, prevendo, ainda, efeito suspensivo automático (art. 168).

Então, diante disso, podemos descartar sua concepção como uma admoestação? A resposta mais fácil seria dizer que sim, pois como prever recurso para uma “chamada de atenção” que já ocorreu, não teria lógica, ainda mais se for verbal! Todavia, a pergunta não é tão fácil de ser respondida, como vou demonstrar ao longo do artigo.

A problemática criada pelo legislador geral terá reflexos práticos de difícil mensuração, pois cada Ente federativo poderá estabelecer de modo diferente o impacto que a advertência poderá ocasionar. Dito de outro modo: para um determinado município, a advertência poderá ser uma mera admoestação (até verbal), não sendo considerada para qualquer fim (o que, a meu ver, ocasionaria um esvaziamento material sancionatório). Para um segundo município, ela poderá ser aplicada de forma verbal e considerada para fins de desempenho anterior, sem que sejam proporcionadas as garantias constitucionais (afinal, a lei geral não as estabeleceu intencionalmente). Um terceiro município poderá estabelecer lei processual administrativa local específica (ou até se utilizar da sua lei geral de processo administrativo) prevendo tais garantias, aplicando-a por escrito, também considerando-a para fins de desempenho anterior. Um quarto município poderá utilizar o mesmo processo administrativo sumaríssimo previsto para a multa, aplicando-a por escrito, considerando-a, de igual modo, para fins de desempenho anterior. Um quinto município poderá aplicar o mesmo processo administrativo de responsabilização previsto para as sanções de impedimento ou declaração de inidoneidade para licitar e contratar, também a considerando para fins de desempenho anterior. Quais deles estão errados? 

Essa problemática é enfrentada com a “advertência milica” do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) há quase 20 anos. Quero mostrar alguns pontos deste regulamento e como se tenta, casuisticamente, resolver o problema, para, ao final, apontar possíveis soluções diante da NLLC, pois me parece que ambas as advertências foram pensadas de modo semelhante.

O RDE, regulamento disciplinar mais recente das Forças Armadas, instituído pelo decreto 4.346/02, prevê, no rol das sanções administrativas do art. 25, que a advertência é a forma mais branda de punir, consistindo em admoestação feita verbalmente ao transgressor, em caráter reservado ou ostensivo. Formalmente, a advertência do RDE, também é uma sanção disciplinar.

Mesmo sendo uma sanção, o § 2º do art. 25 do RDE estabelece que a advertência não constará das alterações do punido, devendo, entretanto, ser registrada, para fins de referência (memória), na ficha disciplinar individual.

Do mesmo modo, o art. 34 desse regulamento disciplinar prevê que a aplicação da punição disciplinar compreende, dentre outras fases, sua publicação em Boletim Interno (BI) da Organização Militar, exceto no caso de advertência, que é formalizada pela admoestação verbal ao transgressor (art. 34, § 4º, do RDE). Essa sanção administrativa também não é considerada para fins de classificação de comportamento militar (art. 51, § 5º, do RDE).

Até aqui, você está vendo que a “advertência milica” não traz nenhum gravame, nenhuma consequência jurídica, foi idealizada como uma forma de pronta intervenção, é um aviso, um alerta verbal para a correção de atitudes, que, caso não ocorra, poderá, futuramente, ensejar a aplicação de sanção mais gravosa.

Para esta advertência, pensada sem o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, tal qual a NLLC no seu art. 166, também foram previstos, no art. 52, reconsideração de ato e recurso administrativo, quando o militar se julgue, ou julgue subordinado seu, prejudicado, ofendido ou injustiçado por superior hierárquico.

Como efetivar o provimento de um recurso contra uma admoestação, que, sem um processo formal com ampla defesa e contraditório, já ocorreu? O Regulamento, tal como a NLLC, não explicou. Assim, a praxis se encarregou de, ao longo de quase 20 anos, estabelecer algo como uma espécie de retratação verbal, “um pedido de desculpas”, algo como “desculpe por ter chamado sua atenção, você tem razão”.

Efetivamente, levando em consideração o que está previsto na NLLC e, embora não queira aceitar, consigo ver tudo o que narrei aplicável nos mesmos termos à advertência trazida pela NLLC. O leitor, até este momento, deve estar pensando que fiz a analogia acima para demonstrar as razões pelas quais, assim como a advertência do RDE, a da NLLC não necessita de garantias constitucionais. Se engana! Embora a advertência deste regulamento militar tenha sido pensada e instituída sem a necessidade delas (tal qual a advertência da NLLC), no RDE, um único elemento, meio inciso de um artigo, as tornou, na praxis, indispensáveis.

O inciso III, do art. 20, do RDE, estabelece que são circunstâncias agravantes “a reincidência de transgressão, mesmo que a punição anterior tenha sido uma advertência;”. Veja, há uma consequência jurídica! A advertência será considerada para fins da dosimetria de sanção aplicada futuramente. Em virtude disso, ainda que tenha sido idealizada e estruturada sem garantias, para ser verbal (uma mera chamada de atenção), necessariamente ocasionou a observância do devido processo legal, com a concessão da ampla defesa e o contraditório prévios previstos às demais sanções administrativas (repreensão, detenção disciplinar, prisão disciplinar e licenciamento ou exclusão a bem da disciplina).

Sim, um simples resvalo, na parte in fini de um pequeno inciso, que formalmente poderia não significar nada, materialmente significou a imprescindibilidade das garantias constitucionais. Aquele meio inciso é o único gravame trazido pela “advertência milica”.

Todavia, em que pese o posicionamento exposto, a problemática em torno da aplicação da “advertência milica” subsiste até hoje, pois a inteireza do RDE foi pensada e preparada para a mesma advertência da NLLC (sem garantias) e, em muitos lugares “Brasil afora”, ela continua sendo aplicada tal qual concebida originariamente.

Ambas as advertências decorrem do poder disciplinar da Administração, que objetiva estabelecer uma relação interna corporis. Todavia, não raramente, sua aplicação traz efeitos externa corporis, que, naquele momento passado, da sua aplicação, jamais foram pensados. Já pensou como será considerada uma advertência aplicada por um município gaúcho, sem o devido processo legal, a uma empresa que participará de uma licitação do tipo melhor técnica ou técnica e preço que considerará o desempenho anterior, promovida pelo Estado de Minas Gerais? Como fica a relação interfederativa diante dessa ausência de uniformidade?

Apenas a título de exemplo dos efeitos externa corporis, lembrei de um caso que acompanhei aqui no Rio Grande do Sul, há pouco tempo, em 2018, que envolve exatamente a “advertência milica” do RDE, sem as garantias, e a relação interfederativa. Envolvia a reprovação de um ex-militar do Exército Brasileiro, em sindicância da vida pregressa, por ocasião de concurso público realizado pelo Estado do Rio Grande do Sul.

Naquele caso, levado ao Tribunal de Justiça Gaúcho por intermédio da Apelação Cível 70076716257, o TJ/RS, assim como o juízo de 1º grau, teve um olhar atento, observando que, pela ausência do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, a “advertência milica” não poderia ocasionar gravame (externa corporis) futuro:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. CONCURSO PÚBLICO. SUSEPE. AGENTE PENITENCIÁRIO. SINDICÂNCIA DA VIDA PREGRESSA. ELIMINAÇÃO COM BASE EM SANÇÃO DISCIPLINAR DE ADVERTÊNCIA VERBAL APLICADA PELO EXÉRCITO BRASILEIRO. INADMISSIBILIDADE. HIPÓTESE NÃO ALBERGADA NO EDITAL. VINCULAÇÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. 1. Hipótese em que a constatação da existência de sanção disciplinar de advertência VERBAL aplicada quando o candidato ocupou o cargo de Oficial Dentista Temporário junto ao Exército Brasileiro, sem que tenha respondido a processo administrativo que resultasse falta funcional, não tem o condão de desabonar ou incompatibilizar o candidato para o exercício da função pretendida e, assim, justificar a exclusão do candidato na fase de Sindicância de Vida Pregressa 2. Segurança concedida na origem. APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA, NOS TERMOS DO ART. 942, DO CPC/15. (Apelação Cível, 70076716257, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alexandre Mussoi Moreira, Julgado em: 14-12-18).

Sabendo desses gravames, como a ausência do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório para a “advertência milica” é, casuisticamente, suprida pelo administrador que compreende a inteireza do Direito? Aplica-se o mesmo processo administrativo, com a mesma ampla defesa e contraditório prévios, aplicáveis às demais sanções administrativas disciplinares militares, adotando-se o dever geral de cautela que deve estar presente na atuação disciplinar da autoridade administrativa.

Se não for adotada a mesma preocupação, a advertência da NLLC corre sério risco de esvaziamento. Apenas para exemplificar, separei alguns pontos que merecem atenção por ocasião da regulamentação (que ocorrerá por cada Ente federativo), pois estaremos diante de duas situações: 1) ou o esvaziamento material da advertência; 2) ou a necessidade do saneamento da ausência do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Ao regulamentar o § único do art. 161 da NLLC, o qual prevê que, para fins de aplicação das sanções administrativas do art. 156, o Poder Executivo estabelecerá a forma de cômputo e as consequências da soma das diversas sanções aplicadas a uma mesma empresa e derivadas de contratos distintos, a advertência não poderá ser considerada, sem a concessão das garantias constitucionais.

Do mesmo modo, ao regulamentar o desempenho pretérito de licitante para fins de julgamento utilizando-se o critério de melhor técnica, previsto no art. 36, § 3º, ou técnica e preço, previsto no art. 37, inciso III, ambos da NLLC, a administração não poderá considerar a advertência, sem a concessão das garantias constitucionais.

Também, sem a concessão das garantias constitucionais, a advertência não poderá ser considerada para fins do critério de desempate a que se refere o art. 60, inciso II, da NLLC, que se baseará na “avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta lei”.

Com isso, faço ao leitor outra pergunta: ela será lançada no registro cadastral da empresa, conforme estabelece o art. 88, § 3º, da NLLC? Este dispositivo prevê que “a atuação do contratado no cumprimento de obrigações assumidas será avaliada pelo contratante, que emitirá documento comprobatório da avaliação realizada, com menção ao seu desempenho na execução contratual, baseado em indicadores objetivamente definidos e aferidos, e a eventuais penalidades aplicadas, o que constará do registro cadastral em que a inscrição for realizada”.

Atualmente, todos sabemos que a advertência da lei 8.666/93 é lançada no registro cadastral. Sobre o lançamento da “nova advertência”, tenho duas considerações: Primeira, entendo que se for adotada a advertência como “admoestação”, sem a concessão das garantias constitucionais como previu a NLLC, a advertência não poderá ser lançada no registro cadastral, devendo, entretanto, ser anotada no registro de fiscalização do contrato (art. 117, § 1º, da NLLC), que servirá estritamente àquela relação contratual. Segunda, se ela for lançada no registro cadastral (como penso que deve ser), sendo considerada para fins de desempenho anterior ou até impedindo ou desabonando a contratada à obtenção do “documento comprobatório da avaliação realizada” (previsto no art. 88, § 3º, da NLLC), necessariamente deverá ser precedida do devido processo legal, com a concessão da ampla defesa e do contraditório.

Pois bem, quais seriam as alternativas possíveis para solucionar a ausência da previsão dessas garantias na lei 14.133/21, impedindo-se o esvaziamento material da sanção de advertência, caso, nas regulamentações já apontadas, se deseje considera-la para qualquer circunstância que traga gravame ao licitante/contratante?  

Entendo e tenho apontado como fundamento para motivar a concessão das garantias na aplicação da “advertência milica” do RDE, que a norma processual administrativa deve ser sempre compreendida como “norma-piso” e jamais como “norma-teto”. Dito em outras palavras, embora a NLLC tenha sido pensada para a aplicação da advertência sem as garantias, ela não traz absolutamente nenhuma proibição a sua concessão.

Assim, vejo como plenamente possível que se lance mão de uma, dentre as várias soluções a seguir, todas objetivando o atendimento pro persona sem dispor do interesse público e da segurança jurídica: a) o administrador poderá instituir, de modo uniforme, no órgão ou entidade, o mesmo processo administrativo sumaríssimo previsto para a multa, concedendo prazo para defesa prévia em 15 dias úteis; b) o administrador poderá estabelecer, de modo uniforme, o mesmo processo administrativo de responsabilização previsto para as sanções de impedimento e declaração de inidoneidade para licitar e contratar3; c) o administrador poderá aplicar a lei do processo administrativo geral do Ente federativo (no caso da União, a lei 9.784/99); d) o administrador poderá editar ato infralegal estabelecendo processo administrativo próprio para a aplicação da sanção, que não suprima as garantias (como o prazo de defesa) previstas na lei geral de processo administrativo; e) o legislador local poderá estabelecer lei com processo administrativo próprio para a aplicação da sanção.

Em sede conclusiva, há de se dizer que a ausência do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório prévios à aplicação da sanção de advertência, na nova lei de Licitações e Contratos, ocasionará um problema prático que não terá fácil e uniforme resolução pelos Entes federativos. O legislador geral criou um problema ao administrador, ao menos até que sobrevenha uma reforma na NLLC, que ocasionará o esvaziamento material sancionatório da advertência ou a necessidade de realização de uma espécie de “gambiarra” normativa como modo de proporcionar as garantias constitucionais e utilizar a advertência com o propósito formal e material sancionatório.

__________________

1 O administrador, ao fazer o juízo de proporcionalidade, só poderá exercê-lo no grau da mesma sanção ou agravando para outra sanção mais severa. Dito de outro modo, se a conduta infracional sujeita a contratada à aplicação de impedimento de licitar e contratar, a proporcionalidade balizará o administrador na aplicação do prazo legal de 1 a 3 anos e na possibilidade de aplicar a declaração de inidoneidade, não havendo discricionariedade para abrandar a uma advertência, por exemplo (salvo desclassificação da conduta infracional).

2 Os requisitos extrínsecos do art. 7º, inciso I, aplicáveis aos membros da comissão processante, já são absorvidos pelos requisitos intrínsecos previstos no art. 158, caput, e seu § 1º.

3 Seguindo a mesma lógica, “norma-piso”, entendo ser possível, inclusive, aplicar este processo administrativo de responsabilização também aos casos de multa, uma vez ser, pro persona. Com isso, o administrador unificaria o mesmo processo administrativo para todas as sanções administrativas. Por outro lado, também compreendo que, indiscutivelmente, esse processo é mais moroso, o que poderia colocar em risco o próprio princípio da celeridade, da eficácia das contratações e do interesse público, ambos previstos no art. 5º da lei 14.133/21.

__________________

BRASIL. Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 maio 2021.

BRASIL. Decreto 4.346, de 26 de agosto de 2002. Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 maio 21.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70076716257, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alexandre Mussoi Moreira, Julgado em: 14-12-2018. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 maio 21.

Felipe Dalenogare Alves
Doutor, Mestre e Especialista em Direito. Bacharel em Direito e em Ciência Política. Professor de Direito Administrativo, Constitucional e Direitos Humanos. Autor e Palestrante.

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