Migalhas de Peso

A reforma administrativa e a independência das agências reguladoras

Ao possibilitar a extinção de autarquias e fundações por decreto, a PEC da reforma administrativa centraliza poderes e ameaça a independência das agências reguladoras.

17/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Naquele que é tido como um de seus mais sarcásticos e pessimistas Sermões, Padre Antônio Vieira (1608-1697) evoca imagens de variadas espécies de peixes para elogiar as virtudes humanas e denunciar os vícios da colonização portuguesa nas terras brasileiras. Assim, a certa altura, o Sermão de Santo Antônio (1654) alude à figura da “rêmora”, um “peixezinho tão pequeno no corpo, e tão grande na força e no poder” que, mesmo “não sendo maior que um palmo”, tem a capacidade de se prender “ao leme de uma nau” e, “apesar das velas, e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza”, continua preso à embarcação “mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante”.

Ao exaltar a principal virtude desse peixe – que não se deixa levar pela força das correntezas ou pelos ventos de ocasião –,Vieira destaca que a rêmora, “pegada ao leme da nau”, funciona como “freio da nau e leme do leme” e conclui seu raciocínio afirmando que se “o leme da natureza humana é o alvedrio, [e] o piloto é a razão”, e se apenas “poucas vezes” é que os “ímpetos precipitados do alvedrio” obedecem ao seu piloto, tem-se que as palavras de Santo Antônio aos fiéis seriam justamente a “rêmora”, capaz de “domar e parar a fúria das paixões humanas”, contendo-as e permitindo que os navegantes se pusessem no caminho correto.1

Tomando a liberdade de ressignificar essa metáfora, podemos dizer que,no conturbado ambiente regulatório brasileiro, a independência das agênciasreguladoras exerce o mesmo papel que as “rêmoras” para os navios no sermão de Vieira: sua função consiste justamente em “domar a fúria das paixões humanas”,restringindo o espaço de arbitrariedade dos agentes políticos e propiciando um espaço regulatório no qual a adequação técnica das decisões possa se sobrepor às pressões políticas de ocasião e aos interesses econômicos pontuais dos agentes regulados – evitando, assim, o risco da chamada “captura regulatória”.

Por isso mesmo, a independência dessas agências deve ser vista como uma importante conquista civilizatória e institucional, que, contribui para a tomada de decisões tecnicamente balizadas e possibilita o planejamento de longo prazo, garantindo aos cidadãos e aos agentes econômicos em geral um mínimo de certeza jurídica e previsibilidade regulatória.

Entre os economistas, é possível dizer que há certo consenso em torno das virtudes de um arranjo institucional capaz de assegurar a referida autonomia. Para Marcos Lisboa e Zeina Latif, por exemplo, a independência das agências se concretiza por meio da instituição de “mandatos e regras claras para a intervenção nos setores regulados”, limitando-se o chefe do Poder Executivo a nomear os reguladores e propor determinadas políticas públicas, “porém delegando sua execução às agências” – o que faz com que o próprio Poder Executivo possa se proteger “das pressões localizadas e dos interesses de curto prazo”.2 Marcos Mendes, ao tratar de modo mais específico do papel das agências reguladoras no setor de infraestrutura, assinala que elas devem atuar como “órgãos de Estado, e não de governo”, de modo a garantir “a estabilidade de regras” e dar “segurança” aos “contratos de longo prazo”.3

Entre os juristas, por outro lado, houve, durante algum tempo, certa controvérsia – sobretudo doutrinária – acerca dos benefícios que poderiam ser trazidos pela atribuição de independência às agências reguladoras. Atualmente, porém, a parte mais relevante da doutrina reconhece a importância dessa característica: Floriano de Azevedo Marques Neto, por exemplo, destaca que um dos aspectos centrais dessas agências está em serem caracterizadas por sua “independência” (e não só pela autonomia das autarquias em geral), o que é essencial para que o regulador “possa exercer suas funções de forma equidistante em relação aos interesses dos regulados (operadores econômicos), dos beneficiários da regulação (os usuários, consumidores, cidadãos) e ainda do próprio poder político, ficando protegido tanto dos interesses governamentais de ocasião quanto dos interesses estatais diretamente relacionados ao setor regulado4; para Dinorá Grotti, por sua vez, a principal justificativa por trás da autonomia das agências estaria em “impedir influências políticas sobre a regulação e disciplina de certas atividades administrativas”;5.

Entre os políticos, do ponto de vista meramente retórico, a autonomia das agências reguladoras costuma ter bastante apoio. A prática, porém, nem sempre corresponde ao discurso: embora quase todos eles concordem sobre a necessidade de que tais entes adotem decisões “técnicas”, não são raras as ocasiões em que se deixam levar pelo “ímpeto precipitado do alvedrio” de que falava Pe. Vieira, tentando interferir das mais diversas formas na tomada de decisões por parte dos agentes reguladores.6

No Brasil, a discussão sobre a autonomia das agências reguladoras ganhou maior relevância sobretudo a partir da década de 1990, quando se definiu que tais entidades teriam a natureza de “autarquias sob regime especial”, com maior independência em relação ao chefe do Poder Executivo. Naquele momento, o Estado brasileiro passava por uma relevante redefinição em seu papel: a tomada unilateral de decisões, a exploração direta e monopolística da atividade econômica e o entulho autoritário do regime militar cediam lugar à valorização da consensualidade, ao fortalecimento da regulação e da concorrência, à proteção dos direitos fundamentais, à democratização dos serviços públicos e à descentralização das estruturas de poder.

Em alguma medida, tratava-se de uma mudança que a própria Constituição de 88 já anunciara alguns anos antes, ao estabelecer que, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado deveria ser a exceção (e não a regra), somente justificável em razão de expressa disposição constitucional ou quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo (art. 173), e ao atribuir ao Estado a obrigação de prestar serviços públicos (art. 175) e exercer a função de “agente normativo e regulador” da atividade econômica (art. 174). Como forma de garantir a autonomia das autarquias em relação à Administração central, a redação original da Constituição – nesse ponto mantida mesmo após a EC 19/98 – reforçava também a necessidade de lei específica para criar e, pelo paralelismo das formas, também para extinguir as referidas entidades (art. 37, XIX, CF), levando parte da doutrina a asseverar que “a autarquia extrai a sua força, o seu ‘ser’, da própria lei, independendo da vontade do Executivo”.7

Embora, desde então, tenhamos avançado bastante na consolidação dos entes reguladores, estabelecendo bons marcos regulatórios para diversos setores, somos obrigados a constatar que a independência das agências reguladoras ainda não é integralmente garantida na realidade institucional brasileira. As nomeações de muitos diretores nem sempre atendem a todos os quesitos técnicos recomendáveis, havendo ainda relativa margem para o aparelhamento partidário ou corporativista; as “quarentenas”, cujo objetivo seria mitigar o risco de captura, acabam muitas vezes por não atender aos critérios internacionalmente recomendados, além de muitas agências sofrerem longas paralisias decisórias e sucessivos cortes orçamentários...

E quando achávamos que as agências reguladoras e outras autarquias efundações federais não poderiam ser mais fragilizadas, fomos surpreendidospor um dos trechos da proposta de Reforma Administrativa apresentada pelogoverno federal no início de setembro do ano passado (PEC 32/20) e queatualmente se encontra em discussão na CCJ da Câmara dos Deputados: emmeio a um cipoal de importantes alterações constitucionais, a proposta dá novaredação ao art. 84, inciso VI, da Constituição, permitindo ao Presidente daRepública extinguir autarquias e fundações mediante simples decreto – sem a necessidade de prévia autorização legislativa (alínea ‘d’).

Ora, se um dos elementos que assegura a autonomia e neutraliza o “déficit democrático” muitas vezes atribuído às entidades autárquicas – e, em especial, às agências reguladoras – é justamente a necessidade de que o Poder Legislativo atue na criação, extinção e delimitação das competências dessas entidades,8 somos obrigados a concluir que esse ponto específico da reforma contraria de modo flagrante qualquer parâmetro de razoabilidade, ameaçando o sistema de freios e contrapesos e abrindo margem para o total arbítrio dos exercentes do Poder Executivo de ocasião – que, de uma hora para outra, poderão extinguir abruptamente diversos entes públicos e colocar em risco, por exemplo, a política monetária (Banco Central), a defesa da concorrência (CADE), a proteção ambiental (Ibama), o desenvolvimento educacional (Inep) e as regulações setoriais (a exemplo da Anvisa, da Ancine e da Aneel).9

Assim, conforme assinala Alexandre Aragão ao tratar da comparação entre as agências reguladoras no Brasil e na Argentina, se tais entidades puderem ser extintas “a qualquer momento por ato (Decreto) do Poder Executivo”, fica “fora de dúvida a sua parca ou nenhuma autonomia”.10

Por isso, sob o argumento retórico de “modernizar a Administração” e possibilitar a “redução do tamanho do Estado”, esse ponto da proposta simplesmente centraliza poderes e amesquinha os arranjos institucionais responsáveis por moldar os caminhos do desenvolvimento econômico e social, abrindo margem para que os “ímpetos precipitados do alvedrio” se sobreponham ao “comando da razão” e sendo corretamente classificado como verdadeira “aberração” por uma importante Senadora.11

Embora o modelo das agências reguladoras certamente precise ser aperfeiçoado, concordamos com Diogo Coutinho e Mario Shapiro quando estes afirmam que tal modelo não deve ser “enfraquecido ou minado”,uma vez que a efetividade da ação pública na economia não pode (...) prescindir de agências capazes de produzir decisões críveis, coerentes e controladas pela sociedade”.12

Assim, admitir que uma reforma administrativa é necessária não significa dizer que qualquer reforma administrativa deva ser aceita. A PEC 32/20 seguramente tem seus méritos, na medida em que amplia o debate sobre a redução de privilégios e de benefícios distorcidos, mas disso não decorre que todos os pontos da reforma devam ser aceitos sem maiores discussões.

Em um momento no qual a democracia passa por uma profunda crise em diversos países, com a ascensão de populistas sem maiores compromissos com a estabilidade das instituições, não é demais lembrar que, conforme nos tem alertado Yascha Mounk, um dos primeiros passos para subverter a democracia liberal consiste justamente na declaração de guerra contra instituições independentes”, como tribunais e órgãos burocráticos, que passam a ser classificados pelos governantes populistas como uma “deturpação ilegítima da vontade do povo” para, logo em seguida, “serem ‘reformadas’ ou abolidas”.13 No mesmo sentido, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt têm advertido que, quando a função das agências reguladoras passa a ser subvertida e os “árbitros neutros” responsáveis pelo controle do exercício do poder passam a ser cooptados, corre-se o risco de que tais agências sejam utilizadas para “blindagem contra questionamentos” e como “arma poderosa – e ‘legal” contra oponentes.14

Por isso mesmo, devemos sempre lembrar que os governantes passam, as instituições ficam e, se tudo correr bem, esse aspecto específico da reforma deverá ser prontamente recusado pelo Congresso Nacional, a fim deque a autonomia das autarquias e fundações e, em especial, a independênciadas agências reguladoras possam orientar o País em sua trajetória rumo aocrescimento econômico, à redução das desigualdades e a uma sociedade livre, justa e solidária (art.3º,I, II e III, CF).

Nesse sentido, é digno de aplausos o trecho do parecer do relator da PEC 32/20 na CCJ da Câmara dos Deputados, dep. Darci de Matos (PSD/SC), que sugeriu a supressão desse dispositivo da proposta por entender que ele é inadmissível “do ponto de vista constitucional” e “acarretaria grave alteração no sistema de pesos e contrapesos, ínsito ao modelo de separação de poderes e ao controle da Administração Pública pelo Poder Legislativo”.15

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1 VIEIRA, Pe. Antônio. Os Sermões. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1963, p. 339-341. 

2 LISBOA, Marcos; LATIF, Zeina. Democracia e crescimento no Brasil. In: SCHWARTZMAN, Simon (org.). A via democrática: como o desenvolvimento econômico e social ocorre no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 14, p. 57.

3 MENDES, Marcos. Por que o Brasil cresce pouco? Desigualdade, democracia e baixo crescimento no país do futuro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 129.

4 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Editora Fórum, 09, p. 68.

5 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. As agências reguladoras, RBDP, Belo Horizonte, a. 2, n. 4, jan/mar 04, p. 193.

6 Veja-se, por exemplo, a pressão política sobre a Anvisa em relação à aprovação das vacinas (clique aqui) e as ameaças à independência da Ancine (clique aqui).

7 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 24.ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 99.

8 BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras: constituição e transformações do Estado e legitimidade democrática, RDA, Rio de Janeiro, 229, jul. 2002, p. 309.

9 Esse aspecto deletério da proposta foi alvo de importante crítica formulada por Carlos Ari Sundfeld (clique aqui) e por Élida Graziane Pinto (clique aqui).

10 ARAGÃO, Alexandre. As agências reguladoras independentes – algumas desmistificações à luz do direito comparado, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a.39, n.155, jul/set 02, p. 312.

11 Disponível clicando aqui

12 Disponível clicando aqui.

13 MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 65.

14 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 84.

15 Disponível clicando aqui

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

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José Victor Pallis da Silva
Advogado. Associado de Pinheiro Neto Advogados. Assistente de Direito Constitucional na PUC-SP. Graduado em Direito pela PUC-SP.

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