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Correios: Privatização, informação e inconstitucionalidade do PL 591/20

Proposta do governo pretende sim burlar, por meio de lei, regramento constitucional dos serviços postais sem emenda à Constituição.

14/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Recente publicação eletrônica em importante informativo jurídico eletrônico1 defende que o projeto de lei 591/20 tanto não implica privatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, quanto não padece de inconsti- tucionalidade e, por isso, haveria “muita desinformação (ainda que de boa-fé) circulando nos meios de comunicação e, sobretudo, nas redes sociais”.

Em que pese o esforço argumentativo dos articulistas e, sem dúvida, seu comprometimento com a informação do meio jurídico em particular, mas também do público em geral, uma análise aprofundada das mesmas premissas por eles ado- tadas revela que o Congresso Nacional está, de fato, em vias de se debruçar sobre um projeto inconstitucional de privatização dos serviços postais.

Essa constatação, todavia, não é uma “oposição, capitaneada pelos partidos mais à esquerda do espectro ideológico”. Muito pelo contrário, trata-se de um juízo jurídico firme, ancorado em conceitos seguros, já consolidados na dogmática constitucional contemporânea e que, nessa medida, não se prestam a determinada orientação político-partidária.

No Estado Democrático de Direito, a legalidade em sentido amplo no que se incluem, portanto, as normas constitucionais não está à disposição dos intérpretes, no caso, nem a quem defenda ou não a desestatização dos serviços postais. Portanto, alegar que determina leitura constitucional é infundada a pretexto de que seja ideológica é recorrer ao arbítrio típico de práticas retóricas totalitárias.

A seguir, pretende-se demonstrar, ainda que em breves linhas, mas com a profundidade que a reflexão sobre a reforma do setor postal no país exige, o equívoco em manejar superficialmente categorias analíticas constitucionais e legais que delimitam a moldura dos limites de conformação do legislador ordinário na matéria e, via de consequência, do que pode ou não dispor.

PRIVATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS POSTAIS

Sustenta-se que “em nenhum momento o PL 591/21 trata de privatização da ECT, assim entendida a alienação do controle da empresa para o setor privado”. Essa afirmação, ainda que procedente afinal, a proposta do Governo é apenas de transformar os Correios de empresa pública em sociedade de economia mista acaba, em verdade, por mais confundir do que esclarecer.

É preciso deixar claro, desde logo, que não há definição legal do que seja privatização, sendo um conceito controverso até mesmo na doutrina jurídica2, a qual o tributa, em regra, a outras áreas de conhecimento, mas que, em linhas ge- rais, o traduz como a transferência, em sentido amplo, de uma atividade da iniciativa estatal para a privada.

Juridicamente, essa noção corresponde à de desestatização, que, nos termos da lei 9.491/97, pode se dar mediante alienação, pela União, de direitos sobre sociedades; através da transferência, para a iniciativa privada, da execução de serviços públicos explorados pela União, diretamente ou através de entidades controladas; ou, enfim, pela transferência ou outorga de direitos sobre bens móveis e imóveis da União3.

Assim, quando se fala, de modo coloquial, em privatização, mas, no sentido técnico, em desestatização, refere-se não necessariamente à venda de uma empresa estatal sociedade de economia mista, a exemplo da Petrobrás, ou empresa pú- blica, como os Correios –, mas também à eventual prestação indireta de serviços públicos, mediante concessão, autorização ou permissão (CF, art. 175).

Sem ainda nem mesmo perquirir a (im)possibilidade de tal prestação indireta ocorrer especificamente no caso dos serviços postais pelo menos não sem emenda à Constituição que altere ou revogue o inciso X do seu artigo 21, é fácil verificar que o PL 591/21 efetivamente propõe sim a privatização (leia-se: desestatização) dos serviços postais.

É certo que, como dito linhas atrás, não há, até agora, iniciativa para alienação do controle societário dos Correios, mas há privatização sim, porque o PL 591/21 propõe a quebra do privilégio postal, através da chamada “celebração de contratos de concessão comum ou patrocinada4, ou, como advertiram os próprios articulistas, cuida-se de uma parceria público-privada.

Em resumo, por respeito ao leitor e com compromisso a verdade, tem-se que, em termos técnicos, independente da venda ou não dos Correios que, de fato, não está explicitada até o momento, o que o PL 591/21 propõe mesmo é a privatização (desestatização) dos serviços postais, o que é tão grave quanto seria a alienação do controle da estatal e que, de resto, é flagrantemente inconstitucional, como se demonstra a seguir.

Antes, porém, duas observações são importantes nesse contexto. A primeira delas é a de que a privatização dos serviços postais é condição sine qua non para a dos Correios, ou seja, sem aquela, não é possível vender a empresa, de maneira que a ausência de previsão para alienação do controle societários dos Correios no PL 591/21 é apenas um esconderijo semântico para facilitar a aprovação do texto.

Em recentes precedentes5, o Supremo Tribunal Federal – STF sedimentou o entendimento de que para a alienação do controle societário de estatais, como os Correios, basta sua inclusão no Plano Nacional de Desestatização (lei 9.491/97), mediante simples decreto do Presidente da República, independentemente de autorização legislativa específica do Congresso Nacional.

Essa providência, em relação aos Correios, aliás, já foi até mesmo adotada pelo Decreto 10.674/216. Significa, noutras palavras, que, em última análise, o PL 591/21 não configura apenas privatização do setor postal, mas, mais do que isso, já constitui a primeira etapa necessária para alienação dos Correios.

Em segundo lugar, restando claro que, no PL 591/21, com o que se de para é a privatização dos serviços postais e, no limite, a preparação também para a dos Correios, são, de todo modo, comuns a ambas os prejuízos à universalidade e à continuidade dos serviços, à modicidade tarifária e, sobretudo, a outros interesses constitucionais tutelados pelo serviço postal (dignidade da pessoa humana, soberania e coesão social, combate as assimetrias regionais)7.

INCONSTITUCIONALIDADE DO PL 591/21

No que diz respeito à inconstitucionalidade do PL 591/21, os articulistas defendem a ausência de qualquer vício na proposição recorrendo ao argumento de que a conformação infraconstitucional do serviço postal foi deferida pela Constituição ao legislador ordinário, evidenciando espaço de opção política.

Dizem, então, que “[a] forma pela qual os serviços postais vão ser disponibilizados à sociedade não está delimitada no texto constitucional. A escolha aqui é política. Não há um caminha pré-definido. Pode o legislador optar pela adoção do regime jurídico próprios dos serviços públicos, assim como pode aderir a um regime mais privatístico, via delegação, ficando para o Estado o papel regulador, nos termos do art. 174, da Constituição Federal.

Sem embargo do louvável exercício hermenêutico dos autores, afigura-se razoável guardar o dever de lealdade com o leitor, seja ele especializado os profissionais do Direito ou não o leigo, ainda mais quando se socorre de transcrição, ao encontro de sua compreensão, em citação do voto do relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 46, mas cujo entendimento ficou vencido.

Na ADPF 46, o Supremo discutiu profundamente o sentido do inciso X do artigo 20 da Constituição, que é a norma constitucional de referência para a legislação postal e, por consequência, também para o PL 591/21, segundo o qual, “[c]ompete à União manter o serviço postal e o correio aéreo nacional”. Formando-se, então, três correntes distintas dentre os posicionamentos dos Ministros do Tribunal.

Vencido, o relator, Ministro Marco Aurélio, votou pela não recepção da lei 6.538/78, entendendo que o serviço postal não consiste em serviço público, mas em atividade econômica. Caberia ao legislador, como ressaltado pelos articulistas a que nos contrapomos, promover uma escolha política de como a União disciplinar o mercado8.

Igualmente vencido, o Ministro Gilmar Mendes, conquanto entendesse, à luz do inciso X do artigo 21 da Constituição, que o serviço postal seria serviço público, não atividade econômica, também concluiu que “a Constituição concedeu ao legis- lador ordinário alguma flexibilidade quanto à escolha adequada do modo pelo qual a Administração assegurará a prestação do serviço postal para toda a sociedade9.

Em comum a tais posições vencidas está a liberdade do legislador em determinar, inclusive mediante transpasse à iniciativa privada, a prestação do serviço postal. Sucede que a maioria formada no julgamento da ADPF 46, seguindo o voto do Ministro Eros Grau, entendeu que o inciso X do artigo 21 da Constituição exprime que o serviço postal é serviço público prestado em regime exclusivo da União.

A definição de que se trata de serviço público, significa, juridicamente, que os serviços postais não são atividade econômica em sentido estritoregida pelos princípios constitucionais da ordem econômica (CF, art. 170) e, logo, sua prestação pela União não constitui intervenção estatal excepcional, como a necessária ao imperativo de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (CF, art. 173).

De que se cuida de prestação em regime de privilégio exclusivo, quer dizer, tecnicamente, que tanto a titularidade quanto a prestação dos serviços postais são da União, ainda que de forma descentralizada, mediante outorga , através de esta- tal, atualmente, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT.

Da decisão da ADPF 46 se extrai razão de decidir translúcida e estruturante: enquanto serviço público em regime de privilégio exclusivo da União (CF, art. 20, X), o serviço postal é insuscetível de transpasse à iniciativa privada, nem mes- mo por prestação indireta de serviços públicos, como concessão, autorização e permissão (CF, art. 174).

Embora a decisão da ADPF 46 seja, sem dúvida, um mosaico de reflexões, como os articulistas bem lembraram a observação de Ana Paula de Barcellos10 fruto muito provavelmente do modelo de deliberação per seriatim adotado no Su- premo –, é indene de dúvidas que a maioria formada convergiu nessa premissa quanto a singularidade da prestação do serviço postal em regime de privilégio exclusivo da União.

Amostra disso, a propósito, é o voto dos vogais que acompanharam à época, o voto condutor, como o Ministro Ayres Britto: “Além dessa titularidade pública federal, parecem não ser passível de transpasse para a iniciativa privada, mediante os conhecidos institutos da autorização, da concessão ou da permissão, vale dizer até não estou exagerando ao assim asseverar que é o único serviço público não passível de transpasse para a iniciativa privada, mediante os citados institutos”.11

Esse entendimento da ADPF 46 vem sendo ratificado, na jurisdição constitucional, em sucessivos precedentes obrigatórios (RE 601.392-RG, 627.051-RG e 773.992-RG), de sorte que não cabe ao legislador ordinário subverter a interpretação autêntica de cláusula constitucional (CF, art. 20, X) conferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Assim, o PL 591/21, propondo permitir a privatização dos serviços pois tais mediante sua concessão à iniciativa privada, artificiosamente contrariando o privilégio postal da União (CF, art. 21, X), colide frontalmente com a jurisprudência constitucional (leis in your face), assumindo o risco de nascer com presunção iuris tantum de inconstitucionalidade12.

Não se está a dizer, obviamente, que a desestatização dos serviços postais é cláusula pétrea e, portanto, imutável, mas apenas que para que seja levada a efeito, ela depende de alteração ou até mesmo de revogação do inciso X do artigo 21 da Constituição, não sendo, pois, viável através de projeto de lei, como se almeja no PL 591/21.

Na vida institucional brasileira, aliás, há precedente dessa natureza. Para a privatização, mediante possibilidade de autorização, concessão ou permissão dos serviços de telecomunicações, foi necessária a aprovação da Emenda à Constitui- ção nº 8/1995, alterando o inciso XI do seu artigo 21, permitindo a prestação indireta de tais serviços públicos.

Em resumo, a modernização regulatória do setor postal brasileiro é perfeitamente possível através do PL 591/21, mas a transmudação dos contornos constitucionais do privilégio postal prestado em regime exclusivo (CF, art. 21, X), definitivamente, não, sob pena de flagrante inconstitucionalidade da lei a ser promulgada.

CONCLUSÕES

No Estado Democrático de Direito é preciso respeitar, primeiro, a autoridade e a força normativa da Constituição. Isso nada tem a ver com espectros ideológico ou político-partidário, como sugeriram os autores em seu artigo, mas com a obser- vância dos dogmas centrais sobre os quais repousa a estabilidade do Constitucionalismo Contemporâneo.

Fora disso, qualquer proposta de modernização do setor postal que vise a sua desestatização deve passar por um filtro constitucional, em primeiro lugar, formal, suportando o ônus dessas respectivas escolhas políticas da maioria de ocasião, notadamente, se for o caso, o quórum qualificado e os turnos de votação para alteração da Constituição.

Do ponto de vista material, não foi por acaso que a Constituição estabeleceu que compete à União manter o serviço postal (CF, art. 21, X). O serviço postal num país de dimensões continentais como o Brasil cumpre funções constitucionais ou- tras além da simples comunicação epistolar ou telegráfica, o que confirma a correção da interpretação da jurisprudência constitucional de se tratar de um serviço público prestado em regime de privilégio exclusivo.

Com efeito, é que o serviço postal constitucional tutela, na verdade, todos os objetos postais sujeitos à universalização, que garantem a dignidade da pessoa humana, a continuidade do serviço, a coesão social e a soberania nacional das po- pulações ao longo de todos os rincões do país, não só das áreas onde à viabilidade de competição para a prestação ótima do serviço.

O PL 591/21 tem condições de equalizar essas necessidades e modernizar a legislação postalbrasileira,inclusive, com relação à organização societáriados Correios e à necessária regulação do setor de logística de serviços de courrier,como se propõe, mas sem que, para tanto, comprometa e ofenda o Estado de Direito e as garantias Constitucionais.

_______________

1 Disponível clicando aquiAcesso em 14/5/21.

2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. 12. ed. RiodeJaneiro, Forense, p. 4.

3 Lei 9.491,de 9 de setembro de1997, art.2º, §1º.

4 Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004.

5 ADIn 6.241, Rel.Min.Carmen Lúcia,Tribunal Pleno, julgado em 8/2/21.

6 Decreto 10.674, de 13 de abril de 21.

7 Nesse sentido, trecho do voto do Ministro Ayres Britto, no RE 601.392-RG:“De outra parte, sabemos que os Correios o Ministro Nelson Jobim lembrava isso são destinados a um atendimento de modo a alcançar todos os municípios brasileiros, distritos, as subdivisões geográficas territoriais desses municípios, em busca desse valor mais alto da integração nacional que Vossa Excelência, Ministro César Peluso, chamou de "coesão nacional" em uma das nossas discussões. Isso tudo obriga osCorreios e Telégrafos a adotar uma política tarifária de subsídios cruzados, ou seja,buscar obter lucro aqui para cobrir prejuízo certo ali. E como os Correios realizamtambém direitos fundamentais da pessoa humana, como a comunicação telegráfica etelefônica e o sigilo dessas comunicações, praticando uma política de modicidadetarifária, eles alcançam a maior parte da população carente, da população economicamentedébil.”

8 ADPF 46, Red. Min. Eros Grau,Tribunal Pleno,julgado em 5/8/9.

9 Idem.

10 Disponível clicando aqui. Acesso em 14/5/21.

11 ADPF 46, Red. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 5/8/9.

12 ADIn 5.105, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 1/10/15.

Lucas de Castro Rivas
Advogado. Mestre em Direito. Consultor da Associação dos Profissionais dos Correios – ADCAP.

Roberval Borges Correa
Advogado. Especialista em Administração Postal. Ex- Diretor Comercial dos Correios e Diretor Jurídico da Associação dos Profissionais dos Correios - ADCAP.

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