Migalhas de Peso

Um papo sobre criptoativos com ***º§´**, meu amigo et árvore não dá dinheiro

Teríamos dois belos dias inteiros pela frente, se bem que o transcorrer do tempo por ali se dá em uma dimensão muito diferente daquela da física geral.

14/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Nestes dias tão difíceis em que estamos vivendo eu recebi um convite de ***º§'**, meu grande amigo ET¹, para, juntamente com a minha esposa, passarmos um fim de semana em sua casa, no planeta XPTO. Daqueles lados não faz diferença se estamos vacinados ou não, porque doenças não mais afetam o seu povo, bem como a comunidade galáctica em geral. Aceitamos o convite imediatamente e imediatamente fomos transportados para XPTO. Não vou dizer como porque vocês, leitores, não entenderiam, como também acontece comigo. Só sei dizer que ***º§'** usa um tipo de aplicativo em que carrega nossa identidade galáctica com o destino e a hora da viagem e chegamos lá sem sentimos qualquer sensação diferente. E nem preciso dizer que não precisávamos levar nada, pois tudo seria providenciado por ele e sua esposa, nossos anfitriões do outro mundo.

Uma vez instalados e tendo vestido a indumentária tão confortável e própria daquele planeta – que nos agasalha e nos dá conforto, qualquer que seja o ambiente em que estamos – conversamos sobre diversos assuntos de interesse comum, tomando uma bebida de sabor incomparável, acompanhada de uns petit fours que são incrivelmente mais saborosos dos que nossos. Teríamos dois belos dias inteiros pela frente, se bem que o transcorrer do tempo por ali se dá em uma dimensão muito diferente daquela da física geral.

Logo depois nossas esposas saíram para conversar sobre arte. Ambas são artistas, no sentido pleno do termo, cada uma à sua maneira. ***º%§'**, nossa amiga, também gosta de pintar e ela se dedica ao sistema clássico, ou seja, faz os seus quadros no modo físico, com pincéis e tintas de verdade, considerando que a maior parte dos artistas de XPTO constrói suas obras em suas mentes e depois as projeta para uma tela tridimensional virtual para ser vista por qualquer pessoa. E aquelas obras ficam arquivadas naquilo que poderia ser chamada de uma nuvem virtual interna no seu cérebro, cuja capacidade é ilimitada.

Acompanhando ***º§'**, dirigimo-nos para o seu jardim de inverno (que pode ser convertido em jardim de verão num átimo de segundo), onde nos acomodamos em confortáveis poltronas para saborearmos o melhor café e o melhor licor do universo, para depois iniciarmos nossa esperada conversa. Nossos encontros certamente me têm trazido muito mais enriquecimento do que acontece do lado dele. Isso porque eu sempre me valho do seu conhecimento inigualável para um terrestre, aprendendo com ele tudo o que posso, enquanto ele sabe tudo ou quase tudo. E o assunto que estava quase pulando fora da minha boca era o dos criptoativos. Então eu comecei.

Caro ***º§'**, certamente aqui no seu planeta vocês já tiveram experiências com os criptoativos ou alguma coisa semelhante.

- Sim, tivemos professor Verçosa. E da mesma forma como vocês, nós em nosso planeta e em todas as outras sociedades de todas as galáxias vivemos as mesmas experiências no campo dos meios de pagamento, já que jamais existiu uma sociedade que nasceu economicamente pronta, como se poderia dizer. Ou seja, em um passado longínquo evoluímos da economia da subsistência para a da troca direta; e da troca indireta por meio de algum tipo de bem duradouro no tempo para a troca indireta sofisticada, que se refere à criação da moeda. E esta, como em todo o lugar, apresenta a característica tríplice de meio de pagamento, moeda de conta e de reserva de valor.

- Caro ***º§'**, quando muito eu vejo os criptoativos como um bem intermediário para que as trocas sejam realizadas, considerando-se que lhes falta um dos elementos intrínsecos para ser considerados como moeda, ou seja, o curso forçado.

- Permita-me interromper, Prof. Verçosa para afirmar que é necessário antes de tudo identificarmos se estamos diante de um bem no sentido jurídico e de que natureza se trata. E isso vale para qualquer ordenamento, na sua galáxia e na minha. Para mim bem é todo o tipo de objeto do direito que possa ser avaliado em dinheiro. Nesse caso, sim, os criptoativos seriam bens.

- A propósito, nossa Receita Federal os considera como ativos financeiros.

- Prof. Verçosa, essa é outra questão ligada ao nosso tema. Do ponto de vista de uma classificação geral os ativos são bens com outro nome. E eu pergunto, do ponto de vista jurídico, qual a diferença entre um ativo (simples) e um ativo financeiro. Segundo uma rápida pesquisa, os ativos seriam bens que poderiam gerar rendimentos. Por seu lado, um ativo financeiro seria um bem que consistiria tão somente em um direito econômico, muitos deles originados de contratos.

- Na verdade, essas classificações têm em vista a tributação desses bens, seja pela variação do seu preço, seja pelos rendimentos que eles produzem. Mas esse é um campo estranho às minhas preocupações neste momento, porque a racionalidade (ou irracionalidade) do direito tributário está em maximizar a receita, o que é um problema para o contribuinte, máxime em estados perdulários como é o exemplo, infelizmente, do meu país. Para mim a grande pergunta é saber se efetivamente os criptoativos podem ser considerados bens e se teriam mesmo a natureza de ativos financeiros.

- Compreendo a sua preocupação, Prof. Verçosa. Vamos ao criptoativo mais conhecido no seu planeta, o bitcoin. Ele não tem uma genealogia definida. Nasceu criado por alguém (ou alguma coisa, uma inteligência artificial), sem se saber quem é, de onde veio, a quem será imputada eventual responsabilidade por qualquer prejuízo ligado à sua emissão e autenticidade, e por aí vai.

- Isso mesmo, prezado ***º§'**. E mesmo assim ele mereceu a confiança progressiva de agentes do mercado que o têm adquirido e negociado, até mesmo tendo sido objeto de cotação em bolsas especializadas. Pela sua natureza ele não tem qualquer lastro que justifique o seu preço original e que possa garantir eventual demanda. Assim sendo, esse ativo está referenciado puramente no elemento confiança. Mas confiança em quem e no quê?

- Prof. Verçosa, falando especificamente em ativos financeiros como as moedas, sabemos que em sua origem mais recente elas eram emitidas com lastro em ouro. Ou seja, por exemplo, de posse de uma cédula de determinada moeda o portador poderia apresentar-se nas dependências do banco emitente e trocá-la pelo equivalente naquele metal, que era o seu lastro. Mas as moedas foram em determinado momento histórico desligadas de lastro de qualquer natureza e elas têm circulado com base na confiança do emitente, no sentido de que elas serão honradas para efeito da realização dos pagamentos que o titular necessitar fazer.

- Concordo que a confiança passou a ser o elemento que garante a aceitação das moedas e quando ela desaparece, o desastre está caracterizado, como acontece com a moeda da Venezuela no momento, situação, é claro derivada diretamente do caos econômico e político que aquele país atravessa há muitos anos. Podemos dizer que o Chaves escancarou as portas para essa situação.

- Há, há, Prof. Verçosa, como se diz em sua terra, uma piada um pouco infame. Mas vamos lá, seguindo o seu raciocínio. Uma cesta de ações devidamente instituída pode e é negociada em bolsas de valores, na forma de um índice. O seu valor de lançamento será o resultado da esperada lucratividade média que elas possam proporcionar em termos de dividendos. Dessa forma temos um bem imaterial, na qualidade de um ativo financeiro, que tem um lastro constituído pelas ações componentes daquela cesta. Então, há uma negociação baseada na confiança quanto aos resultados esperados e o lastro é meramente nominal, porque esse índice não é convertido proporcionalmente nas ações que formam a sua base quando do resgate das cotas correspondentes.

- Isso mesmo, prezado ***º§'**. Tomemos agora o dólar como exemplo. Ele não tem lastro e sua aceitação é fundada na confiança dos seus titulares, que se mantém mesmo que o governo americano tenha emitido recentemente bilhões e bilhões de unidades para fazer face às crises econômicas (como as de 2007 e 2001) e recentemente a da covid-19. Mas ninguém saiu correndo loucamente para trocar dólares por outro bem qualquer e isso para mim é o resultado direto da confiança que nele se mantém. Mas há um componente indireto que eu poderia chamar de lastro do dólar, que é o PIB norte-americano. Enquanto esse se mantiver no azul, a vida do dólar continuará normal, ainda que possa sofrer certo nível de desvalorização.

- Transplantando os seus argumentos para os criptoativos, eles estão fundados também na confiança, mas nem sequer apresentam algum lastro indireto. Confiança pura. Sob esse aspecto eu vejo um perigo potencial muito significativo no horizonte.

- Sei o que você quer dizer, caro ***º§'**. Apesar de oscilações periódicas das cotações desses ativos, pelo que eu sei elas têm se elevado de forma sistemática, como resultado de diversos fatores, um deles me parece ser o da procura continuada. E não há dúvida de que essa procura tenha por motivação pura e simples uma especulação com o objetivo de ganhos financeiros tanto no curto, como no médio e no longo prazo. O especulador, como se sabe em economia, tem a função de dar liquidez ao mercado. Se houver uma crise de confiança e eles desaparecerem, se desfazendo de suas posições na busca de ativos mais seguros, nós poderemos nos deparar com uma quebra sistêmica em larga escala, com o risco de contaminação de outros mercados e a demonstração de que se escondia, no fundo, uma sofisticada pirâmide financeira, devoradora dos incautos. E para mim esse risco está ligado à utilidade econômica efetiva desses criptoativos.

- Prof. Verçosa, veja bem, pelo que eu tenho lido a respeito desse assunto na literatura da terra é que esses criptoativos teriam sido criados com a alegada motivação da eliminação dos intermediários financeiros, gerando o barateamento e a velocidade na realização de pagamentos, principalmente os internacionais. Como sabemos, todos os países do seu planeta têm as suas próprias moedas para a realização de pagamentos com respaldo jurídico e as operações internacionais tradicionalmente são feitas por meio de operações de câmbio, algumas diretas (quando as duas moedas em jogo têm o caráter de divisa, ou seja, possuem aceitação internacional), outras indiretas, quando as moedas existentes nos dois países nos quais se situam os operadores têm de passar por uma intermediária, o que acontece com o dólar ou o euro quanto ao Brasil.

- Pois é, ***º§'**, essa questão do curso forçado está ligada à soberania dos Estados e acho que se tem visto que eles não farão fácil a vida dos criptoativos para funcionarem como moeda. Você deve estar a par da malogradíssima experiência da Argentina no final da década de noventa do século passado, quando a soberania do peso foi relativizada, tendo se feito uma paridade com o dólar. Eu estive em Buenos Aires em 1999 e toda a vez que eu pagava um motorista de taxa com dólares, sempre recebia pesos como troco, jamais na moeda local.

- Prof. Verçosa, você vivenciou a teoria segundo a qual “a moeda má expulsa do mercado a moeda boa”, segundo a conhecida lei de Gresham. Eu também estive lá para saborear a famosa parrilla. Os taxistas daquela cidade, bem como todos os que recebiam pagamentos em dólar entesouravam essa moeda e desovavam seus pesos o mais rapidamente que era possível. Aliás, a Argentina é galaticamente famosa por suas experiências erradas nesse campo tanto quanto, me perdoe dizer, o seu país com os estrambóticos diversos planos monetários aos quais muitos dos seus governantes recorreram, infelizmente. A piada agora é minha, alguém disse para os argentinos: Evita Peron, mas eles não evitaram.

- Tudo bem, você descontou a minha piada com juros, ***º§'**. Mas caro amigo, eu não gosto nem de pensar nisso, especialmente agora quando está pintando no horizonte uma nova onda de inflação no meu país. Mas você tem visto que diversos bancos centrais por todo o planeta terra têm se encaminhado para a criação de sua própria criptomoeda e para meios de pagamento mais eficientes em termos de custo e de velocidade nos pagamentos locais, como acontece com o PIX no Brasil e o equivalente em outros países. Dessa forma me parece, o apelo a criptoativos tende a diminuir, ficando marginalizado. Aliás, o inventor do bitcoin jamais terá imaginado essa saída dos governos na criação desses arranjos de pagamento e de suas criptomoedas, os quais tendem a enfraquecer de forma acentuada os criptoativos, na minha visão.

- Prof. Verçosa, uma vantagem que restaria seria a eliminação do custo das transferências internacionais e do risco cambial. Mas isso pode ser precificado antecipadamente pelas partes nos seus negócios, utilizando-se o hedge. Como meios de pagamento esses criptoativos apresentam diversos problemas, coisa que uma infinidade de planetas já viu acontecer na história das galáxias. Veja o seguinte, Prof. Verçosa, para funcionar como um ativo a ser utilizado para fins de pagamento, não tendo curso forçado, ainda assim será necessário que possam ser considerados como uma reserva de valor e como moeda de conta e merecerem respaldo legal.

- Prezado ***º§'**, não dá para ter confiança nem em uma coisa nem em outra. O que se tem notado é que existem cotações desses criptoativos cujos patamares oscilam de forma bastante acentuada como já disse há pouco. Dessa maneira, um empresário que pretende fazer um pagamento em tempo futuro e outro que receberá o correspondente podem ficar afetados enormemente em suas expectativas e serem prejudicados nos seus negócios, uma hora um, outra hora outro. No fim, prejuízo para o mercado desses bens como um todo. Assim eles não são adequados como meio de pagamento e como moeda de conta.

- Outra coisa, Prof. Verçosa, minha experiência galática é de que nenhum Estado aceitará pacificamente a perda de receita tributária e daí serão tomadas as medidas para cercar essa brecha. E falando em utilidade, depois da criação das moedas digitais pelos Estados, da disseminação de meios de pagamento baratos e eficientes para os usuários na terra (como o PIX e outros baseados em aplicativos) o grande apelo para as criptomoedas será o da marginalidade, como o do contrabando, o tráfico de armas, de drogas e de pessoas. E isso não interessa aos Estados. Aos sérios, evidentemente, porque sempre haverá Estados cujos líderes os conduzam para a ilegitimidade com o fim da realização dos seus objetivos pessoais e, mesmo fundados em alegadas razões de Estado, no seu enfrentamento a outros considerados inimigos, o que é uma questão de establishment, de ordem ideológica.

- Isso é muito sério, prezado ***º§'**.

- Veja um exemplo que a nossa comunidade galáctica enfrentou há tempos. Um determinado planeta distante é constituído basicamente por um mineral muito raro e estratégico que vocês não conhecem na terra. A par de uma exploração concertada desse minério pela Comunidade Econômica das Galáxias Unidas (a CEGU) logo apareceram contrabandistas que, valendo-se da grande dificuldade de fiscalização, invadiram certas áreas remotas onde passaram a fazer a exploração ilegal daquele minério, utilizando-se de um tipo de criptomoeda para a realização de suas operações. E o que é pior, sequestravam pessoas de outros planetas para trabalharem como escravos na extração e transporte daquele minério.

- O que medidas vocês tomaram contra isso?

- Além das de natureza policial, foi obstado o acesso a qualquer tipo de instituição financeira das galáxias unidas. Você sabe bem, Prof. Verçosa, que mesmo fazendo os contrabandistas operações em um ambiente fechado com a utilização de um criptoativo, em algum momento precisavam recorrer ao sistema financeiro estatal para algum fim. Nesse momento, pesquisada a origem dos recursos e comprovada a sua ilegalidade, medidas jurídicas severas foram tomadas, especialmente as relativas à não concessão de acesso a qualquer direito previsto nos ordenamentos jurídicos envolvidos, o que acarretou àqueles contrabandistas a situação de párias, inclusive pela proibição de aportarem em qualquer dos planetas da nossa comunidade.

- Vocês agiram bem, caro ***º§'**.

- E assim esses criptoativos perderam a maior parte da sua utilização, seja pelo recurso dos interessados a meios estatais baratos e eficientes, seja pela plena perseguição da ilegalidade.  Mas vamos chamar nossas esposas para irmos jantar. Há muitos bons restaurantes em diversos dos planetas próximos. Eu por mim aconselho que você experimente uma massa com frutos do mar de um planeta na região de Antares.

E assim foi feito.

___________

1. Lembram-se os leitores de outros encontros que tive com***º§'** neste mesmo espaço, a exemplo de “Entrevista com um ET sobre arbitragem”, edição de 13/2/19.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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