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Recuperação judicial e falência: Da impossibilidade da transmutação do contrato de depósito em mútuo para fins de inclusão forçada no quadro geral de credores

O contrato de depósito não pode ser transmutado em contrato de mútuo sob a égide do artigo 645 do Código Civil com o fito de beneficiar a depositária em recuperação judicial em prejuízo do proprietário dos bens.

12/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

É fato público e notório que o contrato de depósito não transfere a propriedade da coisa. Através deste tipo de contrato, o depositário fica com o bem até que o depositante o reclame nos termos do artigo 627 do Código Civil. Ocorre que, o próprio Código Civil, em seu artigo 645, estabelece que o depósito de bens fungíveis regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo, o que pode causar confusões, especialmente no que diz respeito à recuperação judicial e falência.

Quando a empresa está passando por recuperação judicial, presume-se que esta está passando por dificuldades financeiras, ainda que transitórias. No caso da falência, o caso é mais crítico, pois a recuperação mostra-se inviável. A verdade é que tanto a recuperação judicial quanto à falência costuma implicar em processos morosos, nos quais a regra consiste em uma imensa lista de credores e patrimônio aquém. Às vezes, este contexto pode implicar em conflitos, nos quais a empresa em recuperação tenta forçar que determinado valor seja incluído no quadro-geral de credores da recuperação.

Um dos exemplos é o caso de que trata o presente artigo. Imagine que uma empresa compra toneladas de um determinado produto, tais como a soja, o açúcar ou mesmo fertilizantes para plantação. No entanto, por motivos logísticos, a empresa não transportará todos os produtos de uma só vez. Assim, concomitantemente com a compra e venda desses produtos, é firmado um contrato de depósito, através do qual a empresa vendedora guardará estes produtos até que a empresa compradora os reclame.

Toda semana, a empresa compradora promove o levantamento de determinada quantidade do produto, até que em um determinado dia a empresa vendedora informa que não há mais produtos naquele galpão, que está passando por recuperação judicial e que eventual crédito deve ser pleiteado no quadro geral de credores.

Essa determinação mostra-se, no mínimo, ilógica. Na recuperação, a empresa recuperanda levanta todos os seus bens e, na medida do possível, paga os seus credores seguindo uma ordem de preferência estabelecida pela lei 11.101/05. No entanto, não faz qualquer sentido entrar na lista do quadro geral de credores para receber algo que é seu. Isso porque, aqueles bens comprados estavam apenas sob a guarda da empresa vendedora, mas estes não eram dela, sendo que a empresa sequer deveria tê-los vendido.

No entanto, em sua defesa, a empresa em recuperação costuma alegar o artigo 645 do Código Civil, senão vejamos:

Art. 645. O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo.

A definição de bens fungíveis, por sua vez, está no artigo 85 do mesmo Diploma Legal.

Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.

Pois bem, tendo em vista que os produtos supracitados podem ser substituídos por outros de mesma espécie, quantidade e qualidade, pode-se concluir que se tratam de bens móveis fungíveis. Por essa razão, a empresa vendedora alega que as disposições do mútuo devem ser aplicadas ao caso, transmutando o contrato de depósito. Essa transmutação é bastante benéfica à empresa em recuperação, pois de acordo com o artigo 587 do Código Civil, no mútuo há a transferência do domínio da coisa. Assim, se o banco empresar determinada quantia à determinada empresa e essa empresa entrar em recuperação judicial ou falência, o banco deverá pleitear seu crédito junto ao quadro geral de credores.

Ocorre que, de forma acertava, os Tribunais estão pacificando o entendimento de que não há que se falar em transmutação do contrato de depósito em mútuo para fins de inclusão forçada no quadro geral de credores. Por esse motivo, a empresa, ainda que em recuperação, deverá restituir os bens ao comprador e, caso não mais os tenha, deverá a empresa compradora receber o valor da avaliação do bem ou o respectivo preço.

A base legal para esta restituição está nos artigos 85 e 86 da Lei de Falências.

Art. 85. O proprietário de bem arrecadado no processo de falência ou que se encontre em poder do devedor na data da decretação da falência poderá pedir sua restituição.

Parágrafo único. Também pode ser pedida a restituição de coisa vendida a crédito e entregue ao devedor nos 15 (quinze) dias anteriores ao requerimento de sua falência, se ainda não alienada.

Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro:

I – se a coisa não mais existir ao tempo do pedido de restituição, hipótese em que o requerente receberá o valor da avaliação do bem, ou, no caso de ter ocorrido sua venda, o respectivo preço, em ambos os casos no valor atualizado;

Veja-se que a lei fala tão somente no caso da falência, mas os Tribunais entendem que, analogicamente, deve ser aplicado também no caso da recuperação judicial.

Por fim, segue uma jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça sobre o tema.

APELAÇÃO. Contrato de depósito. Pedido de restituição dos grãos depositados em armazém de propriedade das apelantes. Sentença de procedência. Recurso da ré. Deserção. Inocorrência. Empresa depositária que se encontra em recuperação judicial. Irrelevância. Bens objeto da ação que pertencem à sociedade depositante, não integrando, portanto, o seu patrimônio. Alegação de transmutação do contrato de depósito em mútuo. Descabimento. Questão que, ademais, já foi objeto de pronunciamento judicial, restando reconhecida a impossibilidade de conversão do direito de propriedade em crédito para fins de inclusão forçada do mesmo no quadro-geral de credores. Determinação de devolução da coisa depositada ao depositante nos termos da Lei Civil. Medida acertada. Recurso improvido neste particular. Honorários advocatícios. Valor da causa elevado. Redução para 11% do valor corrigido da causa. Apelo provido em parte para tal fim. (TJSP; Apelação Cível 1087575-98.2015.8.26.0100; Relator (a): Silveira Paulilo; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 3/9/18; Data de Registro: 10/9/18).

Pois bem, como se pode perceber, não há que se falar em inclusão da empresa compradora no quadro geral de credores, sendo que os seus bens, ainda que infungíveis, devem ser entregues desde logo e, caso estes não mais existam, deve ser restituído o valor da avaliação do bem devidamente atualizado em analogia à falência.

José Ronison Monteiro
Pós-graduando em Direito Civil e Direito Processual Civil. Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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