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Correios: Sem privatização, sem desinformação e sem inconstitucionalidade

Na sistemática atualmente em vigor, os serviços postais previstos no art. 9º da lei 6.538/78 são explorados pela União, em regime de exclusividade (isto é, fora do regime competitivo de mercado), por intermédio da ECT.

13/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Nas últimas semanas, alguns importantes veículos de comunicação estamparam, em suas manchetes, a aprovação de regime de urgência para o processamento do projeto de lei 591/211, de iniciativa do Poder Executivo, que “dispõe sobre a organização e a manutenção do Sistema Nacional de Serviços Postais – SNSP”. Em sua imensa maioria, as reportagens enfatizam o avanço do processo de “privatização” da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT. Assim, matéria publicada no portal G1, de 20/4/21, ganhou o título “Câmara aprova urgência de projeto que abre caminho para privatizar os Correios2. Em sentido semelhante, dentre outras, é a manchete publicada no último dia 3/5/21, no portal da Isto É Dinheiro: “Privatização dos Correios deve sair até meio do ano, diz Lira3.

A oposição, capitaneada pelos partidos mais à esquerda do espectro ideológico, além de apontar supostos vícios de inconstitucionalidade no PL 591/21, tenta suspender a tramitação do aludido projeto de lei. Com esse objetivo e sob o argumento de uma alegada exorbitância no exercício do poder regulamentar pelo Poder Executivo, apresentou, inclusive, uma Proposta de Decreto Legislativo voltada para sustar “os efeitos do decreto 10.674, de 13 de abril de 2021, que dispõe sobre a inclusão da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos no Programa Nacional de Desestatização” (PDL 166/214).

Até pela sensibilidade política do tema, é preciso reconhecer que há muita desinformação (ainda que de boa-fé) circulando nos meios de comunicação e, sobretudo, nas redes sociais. Justamente em razão disso, nosso objetivo neste artigo é convidar o leitor a dar um passo atrás para explorarmos juntos os contornos jurídico-normativos do que efetivamente está proposto no PL 591/21 e a sua compatibilidade com o texto constitucional.

Qual é, então, a diferença do modelo atual para o novo desenho institucional proposto pelo Governo Federal? E ainda: há alguma inconstitucionalidade no PL 591/21?

Na sistemática atualmente em vigor, os serviços postais previstos no art. 9º5 da lei 6.538/78 são explorados pela União, em regime de exclusividade (isto é, fora do regime competitivo de mercado), por intermédio da ECT, instituída pelo decreto-lei 509/69.

Lembre-se que, no bojo da ADPF 466, postulou a Associação Brasileira de Empresas de Distribuição - ABRAED fosse reconhecida “a violação aos preceitos fundamentais da livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer trabalho”, declarando-se a “inconstitucionalidade da lei 6.538/78, especialmente sobre a questão do monopólio da entrega de correspondências”. Postulou-se, ainda, que o conceito de carta, para fins da lei de prestação do serviço postal, ficasse restrito “ao papel escrito, metido em envoltório fechado, selado, que se envia de uma parte a outra, com conteúdo único, para comunicação entre pessoas distantes, contendo assuntos de natureza pessoal e dirigido, produzido por meio intelectual e não mecânico, excluídos expressamente deste conceito as conhecidas correspondências de mala-direta, revistas, jornais e periódicos, encomendas, contas de luz, água e telefone e assemelhados, bem como objetos bancários como talões de cheque, cartões de crédito, etc”.7

Nada obstante, prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, o entendimento capitaneado pelo ministro Eros Grau, assim resumido na ementa do julgado:

“1. O serviço postal - conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado - não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público. 2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar. 3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X]. 4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1.969. 5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado. 6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal. 7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade. 8. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º desse ato normativo.”8

Pelo voto-condutor do ministro Eros Grau, o serviço postal, por ser serviço público (e não atividade econômica em sentido estrito), não estaria sujeito ao princípio da livre iniciativa e nem, muito menos, à livre concorrência, tal e qual previstos no art. 170, caput e inciso IV, da Constituição Federal9. Isso porque, no âmbito dos serviços públicos, não haveria que se falar em monopólio, expressão aplicável ao exercício de atividades econômicas em sentido estrito. Haveria aqui – isto sim – mero privilégio estatal, típico do exercício de suas competências, de prestar o serviço em regime de exclusividade.

Eis, portanto, o regime jurídico aplicável aos serviços postais ainda hoje: um serviço público, fora do comércio, prestado por empresa pública com capital social integralmente pertencente à União, em regime de exclusividade. O privilégio estatal, entretanto, fica restrito às cartas, cartões postais e malotes, inclusive boletos de cobrança, não alcançando encomendas e nem revistas, jornais e periódicos.

O modelo proposto pelo PL 591/21 não interdita a prestação dos serviços postais à União. Ao contrário, o art. 5º do PL é categórico no sentido de que a “manutenção dos serviços postais pela União, na forma prevista no inciso X do caput do art. 21 da Constituição, se dará pela prestação do serviço postal universal”. Reforça o art. 9º do mesmo PL que caberá à União “garantir a prestação do serviço postal universal”, quer via empresa estatal já existente (a ECT), quer via contrato de concessão comum ou patrocinada (leia-se, Parceria Público-Privada). Sem prejuízo de outros a serem definidos em ato do Poder Executivo, incluem-se dentre os serviços postais, à luz do art. 6º, parágrafo único, do PL, as cartas, impressos, objetos postais sujeitos à universalização e os serviços de telegrama.

Também não há que se falar em privatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. De fato, em nenhum momento o PL 591/21 trata de privatização da ECT, assim entendida a alienação do controle da empresa para o setor privado, como caminhou o Brasil na década de 90 com diversas empresas estatais, a exemplo da VALE e da LIGHT. Muito diferente disso, o novo desenho institucional proposto envolve a transformação societária da ECT - de empresa pública para sociedade de economia mista -, com a preservação do controle da estatal nas mãos da União.

Isto é, poderá o Poder Executivo, se for o caso, conforme autoriza o art. 23 do PL, promover a transformação da ECT, que hoje é uma empresa pública, com capital social integralmente pertencente à União, em sociedade de economia mista, nos moldes do que já se dá com outras estatais, como é o caso da Petrobras ou do Banco do Brasil. Significa dizer que o capital social da ECT poderá ser aberto à participação de acionistas privados, preservando a União, nada obstante, o controle acionário da empresa, que continuará sendo estatal e regida de forma híbrida por normas de direito público e de direito privado.

Perceba-se, por relevante, que a potencial conversão da natureza jurídica da ECT de empresa pública em sociedade de economia mista, ao mesmo tempo em que em nada altera a sua responsabilidade objetiva10, a teor do art. 37, § 6º11, da Constituição Federal, permite um importante incremento na governança e no dinamismo da estatal, além de facilitar o acesso dela a capital privado para o atingimento de seus objetivos institucionais.

Cria o PL, outrossim, um órgão regulador na esfera dos serviços postais, mediante a ampliação das competências da atual Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), que passaria a se chamar “Agência Nacional de Telecomunicações e Serviços Postais”, a revelar intensa e dobrada atuação estatal na prestação dos aludidos serviços, quer mediante exploração direta de atividade econômica, quer mediante a regulação da atividade econômica.

Assim, muito diferente do que se está a alardear, a presença estatal na esfera dos serviços postais será intensificada, não reduzida, com particular enfoque no aumento de qualidade e maior controle social desses serviços.

Recorde-se que, atualmente, a ECT não é regulada por qualquer órgão de Estado, sendo apenas vinculada ao Ministério das Comunicações. Ao passo que, nos Estados Unidos, o U.S. Post Service (USPS - entidade congênere da ECT) é regulado pela Postal Regulatory Commission, uma Agência Reguladora independente, criada em 1970 pelo Postal Reorganization Act e que teve suas funções ampliadas em 2006, por meio do Postal Accountability and Enhancement Act.

A Postal Regulatory Commission exerce funções regulatórias, normativas e judicantes, inclusive a respeito de denúncias contra o USPS, o que ainda traz a externalidade positiva de reduzir o número de demandas que, no Brasil, por falta de uma entidade regulatória com competência em âmbito administrativo sobre a atividade, acabam sendo direcionadas ao Judiciário.

O PL 591/21, em compensação, põe um fim à exclusividade na prestação dos serviços postais conferida à União. Nesse sentido, estatui o art. 4º que “[o]s serviços prestados no âmbito do SNSP poderão ser explorados pela iniciativa privada, mediante atuação no regime privado”, o que vale, inclusive, para os serviços postais universais, conforme indica o respectivo § 1º. Em outras palavras, se houver interessado em prestar os serviços postais (mesmo os de caráter universal), no regime competitivo da livre iniciativa, poderá fazê-lo - e será regulado e fiscalizado pela ANATEL.

Nisso, não nos parece que haja qualquer vício de inconstitucionalidade. A forma pela qual os serviços postais vão ser disponibilizados à sociedade não está delimitada no texto constitucional. A escolha aqui é política. Não há um caminho pré-definido. Pode o legislador optar pela adoção do regime jurídico próprio dos serviços públicos, assim como pode aderir a um regime mais privatístico, via delegação, ficando para o Estado o papel regulador, nos termos do art. 17412, da Constituição Federal. É possível, inclusive, a adoção de um regime híbrido. Como bem enfatizou o Ministro Marco Aurélio, no julgamento da ADPF 46, em seu voto vencido, “[a] maneira como o serviço postal será prestado para a sociedade é, de fato, uma escolha política, cuja opção não compete ao Judiciário fazer: pode ser entendido como um serviço público não-exclusivo, de modo que os particulares sejam chamados para atuar em colaboração com o Estado; pode ser tido como atividade econômica em sentido estrito, de tal forma que a atuação provada seja regulada apenas pelas leis do mercado; pode ser considerada a dualidade de regimes, com prestação tanto no regime público – hipótese em que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos atuaria com a observância dos deveres de continuidade e universalidade – como no regime privado – quando empresas privadas operariam no mercado sujeitas à autorização por parte do Poder Público13.

De mais a mais, sempre que existirem interessados dispostos a prestar algum serviço “público”, em concorrência com o Estado, a livre iniciativa impede a adoção do regime de exclusividade estatal, salvo havendo alguma justificativa regulatória, de alta relevância constitucional, em sentido contrário. Não se pode ignorar, neste particular, que a regra mater em matéria de serviços públicos (qual seja, o art. 175 da Constituição) encontra-se inserida no capítulo atinente à Ordem Econômica e, como tal, subordina-se aos seus princípios gerais, em especial à livre iniciativa, fundamento da Ordem Econômica e da República Federativa do Brasil.

Ao fim e ao cabo, cabe à União, na forma do art. 21, IX, da Carta de 1988, a obrigação de assegurar que todos os brasileiros tenham acesso aos serviços postais (tal e qual preconiza o art. 5º do PL 591/21). É um dever estatal e um direito do cidadão. O direito – perceba-se - é do cidadão e não do Estado. Havendo competição possível, entre Estado e empresas privadas, a livre iniciativa impede que se institua, mesmo que por lei, regime de exclusividade em favor do Poder Público.14

Nem se pode extrair da posição majoritária do STF, no julgamento da ADPF 46, nada diferente disso. Conforme a atenta percepção da prof. Ana Paula Barcellos, “afora o entendimento acerca da recepção ou não da lei, que respondeu ao pedido formulado, não é fácil navegar o acórdão produzido pelo STF na ocasião. Cada um dos votos que formou a maioria traz suas próprias discussões e é um desafio apurar razões de decidir compartilhadas. De toda sorte, é razoável concluir o seguinte respeito do art. 21, X, da Constituição: as definições sobre como a União vai manter o serviço postal e o correio aéreo nacional cabem ao legislador, que pode inclusive decidir, como fez, por instituir monopólios estatais. No entanto, por outro lado, poderá também decidir de forma diversa no futuro15.

É, portanto, hora de desmistificar e informar: o PL 591/21 não trata de privatização, mas sim de verdadeira reestruturação dos serviços postais brasileiros. A ECT, em qualquer circunstância, continuará sendo uma empresa estatal, com a maioria do capital votante sob a titularidade da União Federal, à qual caberá garantir os serviços postais universais, seja diretamente por meio da própria ECT, seja via a celebração de contratos de concessão (comum ou patrocinada) com parceiros privados, nos exatos termos dos arts. 21, X e 175, da Constituição Federal. E a sociedade ainda contará com um órgão de Estado independente para fiscalizar e regular a atuação da própria ECT e de qualquer outro agente privado que vier a atuar no setor. Mais do que isso, o PL 591/21 não traz nele qualquer vício de inconstitucionalidade e se traduz em legítima opção política de organização do Estado brasileiro.

__________

1 Disponível clicando aqui. Acesso em: 11/5/21.

2 Disponível clicando aqui. Acesso em: 11/5/21.

3 Disponível clicando aqui. Acesso em: 11/5/21.

4 Disponível clicando aqui. Acesso em: 11/5/21.

5 “Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais: I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal; II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada: III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal.”

6 STF, Tribunal Pleno, ADPF 46, relator ministro Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão Ministro Eros Grau, julgado em 5/8/09, DJe de 26/2/10.

7 Idem.

8 Idem.

9 A propósito, asseverou o Ministro Eros Grau: “o que tenho afirmado, inclusive em trabalho acadêmico, é que o serviço postal é serviço público. Portanto, a premissa de que parte o arguente é equívoca. O serviço postal não consubstancia atividade econômica em sentido estrito, a ser explorada por empresa privada. Por isso é que a argumentação em torno da livre iniciativa e da livre concorrência acaba caindo no vazio, perde o sentido.” Idem.

10 Como bem assevera Irene Nohora: “[a]demais, conforme dito, de acordo com o art. 37, §6º, da Constituição, elas acabam se submetendo à responsabilidade objetiva pelos danos que seus agentes causarem, uma vez que o dispositivo abarca “pessoas jurídicas de direito privado prestadores de serviços públicos”, sejam elas concessionárias, permissionárias, empresas públicas ou sociedades de economia mista.” NOHARA, Irene. Direito administrativo. 7ª edição, São Paulo: Ed. Atlas, p. 635.

11 § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

12 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

13 Idem.

14 Sobre o tema, confira-se: SCHMIDT, Gustavo da Rocha. O conceito constitucional de serviço público. In: Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, ano 14 – n. 53, abril/junho 2016, Belo Horizonte: Fórum, p. 87/99. Vide, ainda: SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Uma proposta de releitura da Ordem Econômica na Constituição de 1988. In: GUERRA, Sergio (org.). Teoria do estado regulador, Curitiba: Juruá, 2015, p. 227/231.

15 BARCELLOS, Ana Paula. Privatização dos correios e a Constituição. Disponível em: Privatização dos Correios e a Constituição (jusbrasil.com.br). Acesso em: 11/5/21.

Gustavo da Rocha Schmidt
Professor da FGV Direito Rio e Presidente do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.

Fernando Villela de Andrade Vianna
Sócio advogado da prática de Direito Público, Regulação e Infraestrutura do Vella Pugliese Buosi e Guidoni. Master of Laws pela New York University. Membro da Comissão de Direito Público da OAB/RJ. Vice-presidente de Direito Aeroportuário e Árbitro do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.

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