1. A necessidade de controle sobre a representação adequada no IRDR
Em um processo selecionado como Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) sempre haverá em um dos polos do incidente um grande litigante justamente por se tratar de demandas repetitivas1. Já no outro polo do incidente haverá apenas a escolha de um caso-piloto, de uma das pessoas que demandam contra o grande litigante, que servirá de base para todos os demais. O processo escolhido irá representar os interesses de todas as outras pessoas que tenham ação ou vierem a ter ação contra o grande litigante, gerando o que Maureen Carroll denominou de “assimetria representacional”2.
Alguns problemas podem ser destacados diante do fato de que uma parte estará em juízo representando os interesses de centenas ou milhares de outros litigantes ausentes, que não terão oportunidade de influenciar na decisão, mas serão atingidos pelo resultado: 1) falta de qualificação jurídica do representante dos ausentes na defesa da tese; 2) falta de recursos financeiros para produção de pareceres sobre a questão discutida; 3) perda de prazo; 4) eventual falta de qualificação do advogado que representa os ausentes; 5) conflito de interesses entre o representante e os ausentes; 6) ausência de remuneração compatível com a dimensão do trabalho que será realizado pelo o advogado que representa os interesses dos ausentes.
Para Martin H. Redish e William J. Katt3 a representação adequada é um mal ocasionalmente necessário para a finalidade proposta e pode se traduzir em benefícios da eficiência na prestação jurisdicional, segundo Victor Petrescu4. A representação adequada passa pelas regras de governança5 e accountability6. Para Melina Faucz Kletemberg o papel do advogado na representação dos interesses dos ausentes é a chamada representação por responsabilização a posteriori (accountability view)7.
A previsão contida no § 2º, do art. 976/CPC que obriga a intervenção do Ministério Público no incidente, assumindo a titularidade em caso de desistência ou de abandono, não resolve o problema da representatividade adequada, até porque o Ministério Público pode defender tese contrária aos ausente, conforme ocorreu justamente no caso tratado neste artigo.
2. Desequilíbrio entre responsabilidade x remuneração no IRDR
Os grandes litigantes sempre serão representados por grandes advogados especializados e estes profissionais receberão remuneração compatível com a dimensão econômica global envolvida no incidente. Os grandes litigantes sabem que investir em uma excelente defesa no IRDR pode fazer a diferença entre vitória e derrota em larga escala, porque será aplicada a todos os casos. Por outro lado, não há nenhum retorno financeiro para o advogado que representa os ausentes, em que pese a dimensão da sua responsabilidade.
Para Maureen Carroll a coletivização dos casos com a remuneração implica em cria a viabilidade econômica para que o litígio valha o tempo do advogado que representa os ausentes8. Em tese a remuneração dos advogados de ambos os polos do IRDR deveria ser proporcional ao trabalho desenvolvido por eles. Contudo, não há os chamados “honorários contingentes” (contingency fee) aptos a remunerar o escritório de advocacia que representou os interesses dos ausentes no IRDR. Desta forma, há um desequilíbrio entre responsabilidade e remuneração na defesa dos interesses dos ausentes e isto pode se traduzir em desinteresse profissional.
3. Estudo do “Caso Planaltina”, o IRDR (NPU 0048736-24.2016.807.0000) do TJDF que não teve representante dos ausentes e foi transformado em recurso especial repetitivo sem contraditório
O “Caso Planaltina” se trata de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR, NPU 0048736-24.2016.807.00009, instaurado de ofício, pelo Excelentíssimo Senhor Juiz da Vara do Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do Distrito Federal10, pelo qual pede que seja dado o devido processamento ao IRDR perante o TJ/DF, a fim de ser firmada, de modo uniforme e vinculante, a tese jurídica relativamente à possibilidade de aquisição da propriedade sobre o imóvel particular cuja regularização penda de providências da exclusiva responsabilidade do poder público "competente", de modo a permitir-se o reconhecimento da propriedade dos moradores do Setor Tradicional de Planaltina11.
O incidente é recepcionado no TJ/DF e distribuído para a relatoria da Desembargadora Nídia Correa Lima. Na autuação do IRDR foi anotado que figura como requerente o “Juízo da Vara do Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do Distrito Federal” e como requerido a expressão “Não Há”. O Distrito Federal protocolou petição pedindo para ser admitido na qualidade de interessado para defender interesses contrários aos dos autores das ações de usucapião. O Ministério Público apresentou parecer 294/17 opinando por tese contrária aos interesses dos ausentes.
Assim foi instaurado de ofício um IRDR em que há falta de representação dos ausentes e não apenas defeito na representação. Pior do que isso, o Ministério Público que deveria assumir a titularidade representando os interesses da pluralidade de litigantes, nos termos do § 2º, do art. 976, do CPC12, fez justamente o contrário. O MP formalmente manifestou-se contrário aos interesses dos hipossuficientes ausentes.
O julgamento do IRDR foi favorável aos hipossuficientes declarando que para os cidadãos é “legal a aquisição de imóveis particulares, por usucapião, situados no Setor Tradicional de Planaltina/DF, ainda que pendente o procedimento de regularização urbanística”13.
O Ministério Público interpôs recurso especial contra o acórdão proferido no IRDR que foi admitido perante o STJ como recurso especial repetitivo (REsp 1.818.564/DF). No cadastro do STJ consta como recorrente “Ministério Público do Distrito Federal e Territórios”, e, como recorridos aparece a expressão: “Não Consta”! A Procuradoria-Geral da República se manifestou pela admissão do recurso como representativo da controvérsia, porém nada tratou sobre a completa ausência de contraditório.
Assim, por maioria de votos, a 2ª Seção do STJ afetou o recurso especial como representativo da controvérsia14, originário de um IRDR sem representação dos ausentes e sem contraditório, ficando vencido o ministro Villas Bôas Cueva que votou pela não afetação por ausência de contraditório prévio15.
Mesmo reconhecendo que na formação de precedente não há que se falar em representação adequada16, exige-se a abertura e o chamamento à participação dos legitimados à tutela dos terceiros que podem ser prejudicados pela decisão e, inclusive, do Ministério Público”17. Desta forma, na formação de precedente por meio de recurso especial repetitivo, a participação do amicus curiae deve ser vista como o contraponto num procedimento em que a Corte emite decisão que resolve recursos de terceiros que têm o direito de influenciá-la18.
Contudo, no caso concreto abordado neste artigo o Ministério Público é o recorrente, posicionando contra os interesses dos ausentes. Desta forma, para salvaguardar a constitucionalidade da decisão que será tomada pela Corte Superior entendemos que deve ocorrer o chamamento de instituições capazes de dar voz aos ausentes, sendo importante o deferimento da participação da Defensoria Pública da União, atendendo os anseios das populações menos favorecidas, trazendo subsídios ao julgador e pluralizando o debate19.
Não foi escopo deste artigo investigar os fundamentos da decisão do IRDR e nem analisar os fundamentos jurídicos utilizados pelo Ministério Público ao recorrer para o STJ. Aqui se limitou a demonstrar que não houve qualquer participação dos hipossuficientes em todo este processo, seja por meio de representante adequado no IRDR, seja por meio de amicus curiae quando o caso foi afetado como recurso especial representativo da controvérsia, o que demonstra a falta de percepção do problema.
Conclusão
Não há controle da representação adequada no incidente de resolução de demandas repetitivas. Há, também, um desequilíbrio entre responsabilidade e remuneração na defesa dos interesses dos ausentes.
No IRDR a coletividade deve estar representada em juízo por representante qualificado, que deverá abordar os pontos controvertidos com competência, diligência e vigor para que o debate democrático possa estar assegurado no interesse dos ausentes.
É evidente que para a formação de precedente não há que se falar em representação adequada. Contudo, no recurso especial repetitivo a participação do amicus curiae é fundamental para permitir a pluralidade de debates e uma análise mais profunda dos diversos fundamentos relevantes para a consolidação de uma tese jurídica sobre o tema afetado como repetitivo.
No estudo do “Caso Planaltina”, o IRDR (NPU 0048736-24.2016.807.0000) do TJ/DF, verificou-se que não houve preocupação com a representação adequada dos ausentes. Contudo, espera-se que seja admitida a Defensoria Pública da União na qualidade de amicus curiae para que a tese dos ausentes possa ser apresentada.
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1 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves considerações sobre o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e a racionalização da prestação da tutela jurisdicional. Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco, n. 12, 2020, p. 235.
2 CARROLL, Maureen. Aggregation for Me, but Not for Thee: The Rise of Common Claims in Non-Class Litigation. CARDozo L. REv., v. 36, p. 2017, 2014. Disponível clicando aqui acessado em 15/3/21.
3 Martin H. Redish & William J. Katt, Taylor v. Sturgell, Procedural Due Process, and the Day-in-Court Ideal: Resolving the Virtual Representation Dilemmas, 84 Notre Dame L. Rev. 1877 (2009). Available clicando aqui acessado em 24.03.2021.
4 Victor Petrescu, Crash and Burn: Taylor V. Sturgell's Radical Redefinition of The Virtual Representation Doctrine, 64 U. Miami L. Rev. 735 (2010) Available clicando aqui acessado em 24/3/21.
5 COFFEE JR, John C. Jr., Litigation Governance: Taking Accountability Seriously, 110 COLUM. L. REV. 288 (2010). Available clicando aqui Acessado em 25/3/21.
6 COFFEE JR, John C. Class action accountability: Reconciling exit, voice, and loyalty in representative litigation. Colum. L. Rev., v. 100, p. 370, 2000. Disponível clicando aqui, acessado em 26/3/21.
7 KLETEMBERG, Melina Faucz. A representação adequada no incidente de resolução de demandas repetitivas. 2019. Disponível clicando aqui. acessado em 21/3/21. p. 82.: “Outra visão formalista de representação é a da representação por responsabilização a posteriori (accountability view), ou seja, pela necessidade de prestar contas ou ser responsável frente a alguém.”
8 CARROLL, Maureen. Class Action Myopia. Duke LJ, v. 65, p. 845, 2015. Disponível clicando aqui, acessado em 29/3/21. A autora esclarece também que o incentivo termina criando ações de classe cada vez maiores podendo levar a litígios com valores exorbitantes.
9 Para realização do estudo deste caso foi obtida cópia integral do processo. O acesso foi realizado pelo site do STJ e indicando o número do recurso especial vinculado ao IRDR. O download do processo foi realizado em 20.03.2021, contendo todos os andamentos processuais até a referida data. O acesso ao processo está disponível aqui e o número vinculado ao caso é o Recurso Especial nº 1.818.564/DF.
10 O ofício do Juízo da Vara do Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do Distrito Federal requerendo a instauração do IRDR foi protocolado no TJ/DF em 17/11/16.
11 Esta é a delimitação do requerimento que consta do pedido de instauração do IRDR.
12 Art. 976/CPC. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: § 2º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono.
13 Ementa do acórdão do IRDR: “DIREITO PROCESSUAL CIVIL. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS - IRDR. MÉRITO. AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMÓVEIS PARTICULARES SITUADOS NO SETOR TRADICIONAL DE PLANALTINA/DF. POSSIBILIDADE. FIXAÇÃO DE TESE JURÍDICA PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. 1. Diante da necessidade de se promover a unificação do entendimento jurisprudencial desta Corte de Justiça, quanto ao cabimento de Ação de Usucapião para o reconhecimento de domínio sobre os imóveis particulares situados no Setor Tradicional de Planaltina/DF, em razão da grande quantidade de demandas envolvendo o tema, bem como para assegurar o tratamento isonômico e a segurança jurídica, impõe-se estabelecer a tese jurídica a seguir disposta. 2. É cabível a aquisição de imóveis particulares situados no Setor Tradicional de Planaltina/DF, por usucapião, ainda que pendente o processo de regularização urbanística. 3. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas provido. Fixada a tese jurídica para fins de uniformização de jurisprudência.
14 Ementa do julgamento: PROPOSTA DE AFETAÇÃO. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO CONTRA ACÓRDÃO PROFERIDO NO JULGAMENTO DE IRDR. RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. AÇÃO DE USUCAPIÃO DE BEM IMÓVEL. REQUISITOS DE PROCEDIBILIDADE. AUSÊNCIA DE MATRÍCULA INDIVIDUAL. LOTEAMENTO NÃO AUTORIZADO. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO. 1. Delimitação da controvérsia: Cabimento de ação de usucapião tendo por objeto imóvel particular desprovido de registro, situado no Setor Tradicional de Planaltina-DF e inserido em loteamento que, embora consolidado há décadas, não foi autorizado nem regularizado pela Administração do Distrito Federal. 2. Recurso especial afetado ao rito do art. 1.036 NCPC, com suspensão dos processos pendentes.
15 Este foi o único momento em que a representação dos ausentes foi abordada em toda a tramitação do feito.
16 Marinoni, Luiz Guilherme. “O ‘PROBLEMA’ DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS” P.92. disponível clicando aqui, acessado em 30/3/21.
17 Marinoni, Luiz Guilherme. “O ‘PROBLEMA’ DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS” P.95. “A participação do amicus deve ser vista como o contraponto num procedimento em que a Corte emite decisão que resolve recursos de terceirosque têm o direito de influenciá-la”. Disponível clicando aqui, acessado em 30/3/21.
18 Marinoni, Luiz Guilherme. “O ‘PROBLEMA’ DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS” P.96. Disponível clicando aqui, acessado em 30/3/21.:
19 MOUTELLA, Mariana Rodrigues. A ampliação subjetiva do contraditório nos recursos especiais repetitivos e o papel exercido pelo amicus curiae. 2021, p. 154. Disponível clicando aqui. Acessado em 4/4/21.