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A necessidade de reafirmação da autonomia patrimonial da Pessoa Jurídica

O desprestígio com que os tribunais vêm tratando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica foi notado pelo legislador, que agiu para reavivar e reafirmar a separação do patrimônio da empresa de seus sócios.

7/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A “pessoa jurídica” é uma ficção.

Ou seja, é um ente imaginário e imaterial, criado pelos seres naturais, para representar o patrimônio (ativo e passivo) que foi destacado pelos seus sócios para criar uma nova entidade, que com eles não se confunde.

Com o desenvolver do direito comercial, que deságua no atual direito empresarial, criou-se a figura das pessoas jurídicas de responsabilidade limitada, que no Brasil hoje são representadas pelas Ltda.’s’, S.A.s, Eireli’s.

Por limitação da responsabilidade se entenda o fato de que as obrigações assumidas em nome da pessoa jurídica serão mandatoriamente observadas pelo seu próprio patrimônio, não se podendo alcançar o patrimônio dos sócios que elas integram e eventualmente representam.

Não são poucos os que reconhecem na pessoa jurídica um pilar básico do desenvolvimento da civilização humana, pois o empreendedor, ao destacar parte de seu patrimônio para fundar a pessoa jurídica, limita o risco que assume. Mesmo que todo o risco da atividade seja do empreendedor, seu risco fica limitado naquela exata porção de patrimônio que optou por destacar e, portanto, deixar de ser dono. A propriedade é da pessoa jurídica. Ou seja, é um estímulo do direito ao hoje chamado empreendedorismo.

O que se vê no Brasil, porém, é a quase total inobservância desta autonomia patrimonial por parte dos diversos tribunais.  A inadimplência somada a não localização de bens tem bastado para direcionar uma ação executiva aos sócios, como se a pessoa jurídica não existisse.

Nos bancos escolares aprendemos que este tipo de superação da personalidade jurídica toma o nome de “teoria maior” da desconsideração da personalidade jurídica, que não tem lugar formal no ordenamento jurídico, com parcas exceções.

O legislador aos poucos foi positivando a desconsideração da personalidade jurídica e reforçando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica: artigo 28 no código de defesa do consumidor, artigo 50 no Código Civil de 2002. Mais recentemente impôs a adoção de procedimento próprio e específico para se intentar contra o patrimônio dos sócios, com o advento dos artigos 133 e seguintes do CPC/15.

Em 2019, por sua vez, alterou-se o Código Civil para deixar cristalino o que já devia o ser a todos os operadores do direito, em especial aos julgadores:

Art. 49-A.  A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

A positivação, como observa da leitura dos artigos citados, tem o viés de regrar a forma como se pode superar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para atingir o patrimônio dos sócios ou administradores. Desde sempre houve requisitos que deveriam ser observados, e ano após ano, o legislador se viu cada vez mais obrigado a positivar a observância destes requisitos, como forma de prestigiar a construção humana milenar.

Isto porque, como dito, o descortinamento era imediato, bastando a mera inadimplência, em especial no âmbito da justiça do trabalho.

O advento do Código de Processo Civil de 2015 representou um grande passo neste sentido. Agora, com a edição e promulgação da lei 14.112/20, que promoveu profundas alterações no sistema de insolvência nacional, chegou-se muito perto de estabelecer as balizas definitivas ao assunto, impondo aos operadores do direito o respeito ao milenar instituto.

Se as disposições positivadas até então não eram suficientemente claras, com a reforma da legislação processual ficou claro que, para se atingir o patrimônio dos sócios, deve ser garantido o exercício da ampla defesa e do contraditório, através da instauração do incidente competente, bem como devem estar presentes os requisitos que há muito já foram delineados, mas cuja observância era solenemente ignorada.

Vejamos os seguintes artigos introduzidos com a mudança:

Art. 6º-C. É vedada atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reguladas por esta Lei. 

Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.

Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).   

O artigo 6º-C é cristalino. Não se atribui responsabilidade a terceiros pelo mero inadimplemento. A não ser que tenham assumido responsabilidade contratualmente, os sócios e/ou administradores não são terceiros garantidores em relação a dívida havida entre sua empresa e o credor.

Por sua vez, o artigo 82-A, expressamente rechaça a ideia de extensão de falência a sócios em casos de falência de sociedade com responsabilidade limitada.

A extensão da falência desde sempre foi impossível ao sócio de pessoa jurídica de responsabilidade limitada, pois se trata de instituto voltado a afetar pessoas jurídicas que eventualmente integrem um mesmo grupo econômico ou substituam a falida por sucessão.

Porém, inúmeros são os julgados que ignoram o conceito e estendiam a falência à pessoa natural nestes casos, erro crasso de desconhecimento do instituto.

Ao constatar essa posição o legislador, único legitimado a ditar as leis, exerceu seu papel, materializando conceitos jurídicos que quer ver observados. Resta agora acompanhar para ver se os tribunais de todas as matérias darão aplicação à lei, sob pena de continuarmos vendo o desrespeito ao estado de direito que escolhemos para viver.

Luiz Eduardo Vacção
Advogado e Administrador Judicial no Paraná. Sócio do escritório Vacção Carvalho Duck Advocacia e Vacção Carvalho Duck Administração.

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