Migalhas de Peso

Judicial review na quadra atual

O entrincheiramento partidário e ideológico na Suprema Corte dos EUA.

7/5/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Nunca, em mais de 200 anos de história constitucional, desde Marbury v. Madison, o judiciário norte-americano tivera participação relevante na escolha de qualquer Presidente dos Estados Unidos da América. A virada do milênio mudou tudo isso. Coube à Suprema Corte, no ano 2000, a definição de quem deveria ocupar o mais importante cargo do país, a Presidência da República.

Com efeito, encerrada a contagem dos votos na quase totalidade dos Estados norte-americanos, a escolha do Presidente dos Estados Unidos ficou condicionada ao resultado das eleições no Estado da Florida. Quem vencesse na Florida ficaria com a Presidência. A decisão proferida em Bush v Gore¹, muito mais do que um julgado meramente controvertido, é a representação cristalina de que a estratégia republicana de ter o controle da Suprema Corte fora bem-sucedida.

Al Gore, candidato do Partido Democrata à Presidência da República, por decisão apertada, havia obtido ordem judicial em seu favor, na mais alta corte da Florida, determinando a recontagem manual de todos os votos postados no Estado². Pretendia-se, com isso, afastar qualquer questionamento quanto à legitimidade do resultado das eleições presidenciais na Florida e assegurar o respeito à Equal Protection Clause. Por cinco votos a quatro, a Suprema Corte dos EUA reverteu a decisão prolatada pelo judiciário do Estado da Florida, entendendo que a recontagem dos votos não poderia prosseguir, e deu as eleições presidenciais por encerradas, confirmando a vitória do então candidato George W. Bush. Todos os cinco juízes que se opuseram ao prosseguimento da recontagem dos votos no Estado da Florida, em benefício da eleição de George W. Bush, tinham sido indicados pelo Partido Republicano.³

Os fatos que se seguiram são bem conhecidos. O atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, com a queda das torres gêmeas, afeta radicalmente a opinião pública norte-americana, sintonizando-a com a agenda perfilhada pela direita mais conservadora. E é nesse contexto que o Congresso dos Estados Unidos, liderado por uma maioria republicana, aprova o USA Patriot Act. O novo desenho constitucional que surge a partir do 11 de setembro não tem o colorido da versão romântica que ficara de legado da Corte do Chief Justice Warren. Cedem as liberdades civis, sobretudo os direitos à privacidade e ao devido processo legal; e ganha musculatura o Poder Executivo.

A reboque dos atentados terroristas de 11 de setembro, o Poder Executivo passa a adotar uma série de práticas bastante questionáveis, sempre sob a bandeira da “guerra ao terrorismo”, como o monitoramento eletrônico de dados de cidadãos norte-americanos e estrangeiros, bem como o aprisionamento de suspeitos, sem a observância do devido processo legal. A Base Naval de Guantánamo, em Cuba, estava no centro da maioria das discussões relacionadas com o desrespeito à cláusula do devido processo legal, prevista na 14ª Emenda da Constituição de 1787. O Governo George W. Bush não mediu esforços para tentar impedir o Judiciário e, especialmente, a Suprema Corte de impor limites às práticas adotadas sob o slogan da “Guerra ao Terrorismo4.

As denúncias contra o Governo Bush (o filho) eram as mais variadas possíveis e envolviam desde a proibição de impetração de habeas corpus, passando pela realização de julgamentos sigilosos, pela recusa aos suspeitos de ter acesso a um advogado, pelo aprisionamento deles por prazo indeterminado (sem direito a julgamento), etc. Tais questões não demoraram a desaguar no judiciário. E, por sucessivas decisões, a Suprema Corte enviou ao Poder Executivo a clara mensagem de que o Governo George W. Bush havia ido longe demais na guerra ao terror. A Justice Sandra Day O’Connor, em passagem antológica, bem delimitou a questão: “o estado de guerra não é um cheque em branco para o Presidente quando se trata de direitos dos cidadãos nacionais5-6.

O cerne da controvérsia jurídica havida com o Poder Executivo, em todos os casos, dizia respeito ao alcance da cláusula do devido processo legal. Como bem enfatizou a Justice Sandra Day O'Connor, por ocasião do julgamento do caso Hamdi v. Rumsfeld: “São nos momentos mais desafiadores e de maior incerteza que o compromisso da nossa nação com o devido processo legal é mais severamente testado; e são nestes momentos que temos que preservar o nosso compromisso doméstico com os princípios pelos quais lutamos no estrangeiro7.

Assim, em Rasul v. Bush8, a Suprema Corte firmou a orientação de que os atos do Poder Executivo, praticados em território sob o domínio de fato dos Estados Unidos da América, mesmo que fora dos limites territoriais do país, como era o caso da Base de Guantánamo, estavam subordinados à revisão judicial. Já em Hamdi v. Rumsfeld9, a mais alta corte dos EUA posicionou-se no sentido de que a cláusula do devido processo legal assegurava a Hamdi, na qualidade de cidadão americano, mesmo que declarado “combatente inimigo”, o direito de conhecer das acusações que pesavam contra ele, de se defender adequadamente (inclusive por meio de um advogado) e, sobretudo, de ser julgado por um tribunal imparcial.10 Por fim, em Boumediene v. Bush11 a Suprema Corte reafirmou o direito ao habeas corpus, estendendo-o aos cidadãos estrangeiros que estivessem sob a custódia do governo americano.

Foi, entretanto, apenas no segundo mandato de George W. Bush que a extrema direita do Partido Republicano teve a oportunidade de reformular por completo a composição da Suprema Corte. E ela não desperdiçou essa chance. Além de indicar John Roberts, um jovem conservador, para ocupar o cargo de Chief Justice, Bush nomeou ainda mais um originalista para a Corte: Samuel Alito. Com isso, dos nove membros da mais alta corte estadunidense, cinco foram nomeados por indicação do Partido Republicano12, sendo que três deles eram adeptos da filosofia originalista: Clarence Thomas, Samuel Alito e Antonin Scalia.

Em especial, o conservadorismo de Clarence Thomas, potencializado por seu método interpretativo originalista, torna muitos de seus posicionamentos na Corte extremamente curiosos, para não dizer outra coisa. No caso Hudson v. McMillian, a Suprema Corte entendeu, por maioria de sete votos a dois, que o uso excessivo de força física contra prisioneiros era incompatível com a Constituição, mesmo quando eles não sofressem lesões gravíssimas. Justice Thomas abriu divergência e foi acompanhado apenas por Scalia. Uma passagem, nas razões de seu voto, ao abordar a cláusula da 8ª Emenda (que expressamente veda a imposição de penas cruéis e incomuns) chama bastante a atenção. Nela, pontuou Thomas que o “uso da força que provoca danos insignificantes a um prisioneiro pode ser imoral, pode ser ilícito, pode ser criminoso e pode até ser remediável através de outras disposições da Constituição, mas não é punição cruel e incomum” 13.

O mesmo se pode dizer sobre Antonin Scalia. No caso Atkins v. Virginia14, a Suprema Corte decidiu, por maioria de seis votos a três, que a Constituição dos EUA não admitia a pena de morte para indivíduos relativamente incapazes. Scalia, em seu voto dissidente – igualmente acompanhado por Clarence Thomas – enfatizou que a opinião da maioria da Corte não tinha qualquer suporte no texto ou na história da 8ª Emenda, mas apenas refletia as preferências políticas e pessoais dos juízes que aderiram ao voto majoritário. Segundo ele, quando a 8ª Emenda foi adotada, apenas aqueles que eram absolutamente ou profundamente incapazes (“severely or profoundly retarded”) tinham direito a tratamento diferenciado pela justiça. Logo, executar alguém considerado relativamente incapaz não constituiria pena cruel ou incomum, nos termos da Constituição.

E a estratégia republicana não tardou a surtir efeitos. Um exemplo disso está na decisão proferida em District of Columbia v. Heller15. Nela, orientou-se a Suprema Corte no sentido de que a 2ª Emenda à Constituição de 1787 asseguraria aos indivíduos em geral o direito de portar armas e de utilizá-las para fins lícitos, em suas respectivas residências, para defesa pessoal. Prevaleceu na Suprema Corte dos EUA, por maioria de cinco votos a quatro, a interpretação originalista da 2ª Emenda feita por Antonin Scalia. Nas razões de seu voto, Scalia defendeu que a 2ª Emenda, ratificada em 1791, não assegurava apenas às milícias da época o uso de armas de fogo, mas teve por objetivo cristalizar na Constituição um “direito pré-existente” do cidadão de possuir e portar armas de fogo. Mais do que isso, a 2ª Emenda teria sido editada, precisamente, para impedir que a União, eventualmente, viesse a adotar medidas, de qualquer natureza, tendentes a desarmar os indivíduos. Assim, seriam inconstitucionais legislações estaduais que proibissem a posse e o porte de armas comumente utilizadas pelos cidadãos americanos ao longo da história, como revólveres e pistolas, admitindo-se a limitação de uso de outros tipos de armamento, como, por exemplo, o uso de armamento pesado.

Outro exemplo marcante de como o entrincheiramento partidário e ideológico pode afetar a atuação das cortes constitucionais está na decisão proferida pela Suprema Corte dos EUA no caso Citizens United v. Federal Election Comission16 (2010). Ali, em sintonia com os anseios do Partido Republicano, entendeu a mais alta corte estadunidense, por cinco votos a quatro, que o direito à liberdade de expressão, consagrado na 1ª Emenda à Constituição de 1787, encamparia o direito das corporações de aportar recursos em defesa de candidatos a cargos políticos. Em outras palavras: muito embora fosse proibido às empresas a doação de verbas diretamente para candidatos, poderiam elas perfeitamente usar dos recursos financeiros de que dispõem para defender a candidatura deles, tendo ampla liberdade para expressar suas opiniões políticas e, com isso, influenciar a corrida eleitoral. A referida decisão foi tão mal-recebida pelos Democratas que o Presidente Barack Obama, em seu discurso no State of Union, em 2010, afirmou: “Na semana passada, a Suprema Corte reverteu um século de Direito que eu acredito que irá abrir as portas para interesses especiais – incluindo os de empresas estrangeiras – poderem gastar sem limites nas nossas eleições”.17

Enfim, a história constitucional americana, como um todo, mostra que é uma ilusão achar que a atuação expansiva do Poder Judiciário trabalha, necessariamente, em favor do processo democrático e dos direitos fundamentais. Ao contrário, é mecanismo capaz de atender a diferentes finalidades – seja no sentido de promover direitos ou de restringi-los. A dinâmica da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, ao longo de sua história, indica claramente que, a depender de sua composição e das convicções morais e ideológicas de seus membros, uma corte constitucional pode atuar de maneira extremamente expansiva para regredir em matéria de direitos individuais.

Evidentemente, em um sistema em que a escolha dos juízes que compõem a corte constitucional passa pela chefia do Poder Executivo, assume-se o risco de entrincheiramento partidário no âmbito do Judiciário, sobretudo quando a classe política percebe que as questões de maior relevância para a sociedade são, ao final, equacionadas pela Suprema Corte. Disso sobressai que as cortes constitucionais podem perfeitamente servir de instrumento para atender a interesses políticos e ideológicos, como órgãos políticos que são.

É indispensável e inadiável, por isso mesmo, pensar em como aperfeiçoar as instituições judiciárias existentes, no sentido de minimizar os riscos que derivam do entrincheiramento partidário e ideológico, sobretudo nos países que seguem o modelo norte-americano, como é o caso do Brasil.

____________

1. Bush v Gore, 531 U.S. 98 (2000).

2. Gore v. Harris772 S2d 1243 (2000).

3. Foram eles: William Rehnquist, Antonin Scalia, Sandra Day O’Connor, Anthony Kennedy e Clarence Thomas. Para um relato mais detalhado das eleições norte-americanas de 2000 e do caso Bush v. Gore, vide BALKIN, Jack M. & LEVINSON, Sanford. Understanding the constitutional revolution, Faculty Scholarship Series, Paper 249, 2001, p. 1051. É emblemático (e fala por si só) o seguinte trecho da referida obra: “Em outras palavras, um golpe constitucional ocorreu no ano passado”. Idem, p. 1050 (tradução livre).

4. UROFSKY, Melvin I. Supreme decisions: great constitutional cases and their impact. Boulder, CO: Westview Press, 2012.

5. Hamdi v. Rumsfeld, 542 U.S. 507 (2004) (tradução livre).

6. É digno de nota que nessas três decisões os originalistas Antonin Scalia e Clarence Thomas (além de Samuel Alito, em duas delas) divergiram da maioria, sempre afinados com a tese defendida pelo Poder Executivo, bem exemplificando como o entrincheiramento partidário e ideológico tende a impactar nas decisões das cortes superiores.

7. Hamdi v. Rumsfeld, 542 U.S. 507 (2004) (tradução livre).

8. Rasul v Bush, 542 U.S. 466 (2004).

9. Hamdi v. Rumsfeld, 542 U.S. 507 (2004).

10. É verdade que, quando do julgamento do caso pela Suprema Corte, Hamdi teve acesso a um advogado e, em função disso, a ênfase dada ao assunto se deu de forma secundária, como se extrai do seguinte trecho do voto da Justice O’Connor: “Hamdi nos pede que se reconheça que o Quarto Circuito errou ao denegar a ele acesso imediato a um advogado por ocasião da sua detenção e por ter examinado o caso sem permitir a ele ter acesso ao seu advogado... Desde que o caso foi por nós recebido, Hamdi teve assegurado um advogado, com o qual ele se encontrou para consulta em diversas ocasiões, e com quem a ele tem sido assegurado encontros não monitorados. Ele inquestionavelmente tem direito a um advogado em conexão com os procedimentos em análise. Nenhuma consideração adicional em relação a essa questão se faz necessária no estágio atual deste caso”. Idem (tradução livre).

11. Boumediene v. Bush, 553 U.S. 723 (2008).

12. Trump, como sabido, só fez ampliar a diferença, em favor dos republicanos, que hoje é de seis votos a três. Vide: Disponível aqui. Acesso em: 26.03.2021.

13. Hudson v. McMillian, 503 U.S. 1 (1992) (tradução livre).

14. Veja-se: Atkins v. Virginia, 536 U.S. 304 (2002).

15. District of Columbia v. Heller, 554 U.S. 570 (2008).

16. Citizens United v. Federal Election Commission, 558 U.S. 310 (2010).

17. A referida passagem pode ser encontrada com facilidade na internet. Vide: “Gloves come off after Obama rips Supreme Court ruling”, extraída do site da CNN. Disponível aqui. Acesso em: 29/3/21.

Gustavo da Rocha Schmidt
Professor da FGV Direito Rio. Presidente do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA e da Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution – RBADR. Doutorando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Master of Laws pela New York University of Law. Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Advogado. Sócio fundador de Schmidt, Lourenço & Kingston - Advogados Associados. Procurador do Município do Rio de Janeiro. É, ainda, Presidente da Comissão de Arbitragem dos BRICS da OAB Federal.

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