Com o advento da lei 14.112/20, um novo procedimento de negociação, com intuito preventivo à insolvência ou ao processo de recuperação judicial do empresário em situação de crise, passou a ser disciplinado na lei 11.101/05.
Por meio da aludida reforma houve inclusão dos artigos 20-A a 20-D, na seção II-A, do capítulo II (que trata das disposições comuns à falência e recuperação judicial), da lei 11.101/05, que trouxe um novo regime preliminar de tentativa de reestruturação da empresa, no qual se busca garantir ambiente adequado à negociação entre credores e empresário devedor, antes de eventual decretação da quebra da empresa (pela consolidação da situação patrimonial de insolvência), ou antes do processamento de recuperação judicial.
Vale destacar que o intuito desta alteração era de prevenir a situação jurídica de insolvência da empresa, e que, especificamente quanto à recuperação judicial, este instrumento pode ser utilizado tanto para prevenir a sua instalação, quanto para antecedê-la.
Ocorre que, não obstante a importância destacada do instituto, em especial para evitar a quebra de empresas, o legislador foi omisso quanto à necessidade de manifestação do Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, e surge uma indagação quanto ao tema: instalado o procedimento de negociações previas junto aos CEJUSCs, antes da homologação judicial, nos termos do novo artigo 20-C, da lei 11.101/05, seria necessária a prévia intervenção e manifestação do Ministério Público sobre as aludidas negociações?
Acreditamos que a resposta à aludida indagação certamente passa por uma análise do tema sobre dois enfoques: primeiramente, por uma interpretação histórica da lei 11.101/05, tendo em vista que seu artigo 4º trazia um comando para o Ministério Público intervir e manifestar em todas as demandas e incidentes, dispositivo este que foi vetado; e, em segundo momento, por uma interpretação da lei 11.101/05, e suas alterações, à luz da Constituição Federal, em especial do artigo 127, que traz as atribuições institucionais do Ministério Público.
Em uma análise histórica, com o advento da lei 11.101/05, e com o veto ao artigo 4º, muita discussão surgiu na doutrina acerca da atuação do Ministério Público nos processos de falência e recuperação judicial de empresas. Para alguns, a atuação da instituição ficaria restrita às hipóteses taxativamente previstas na lei 11.101/05.¹
Por esta linha de interpretação, por conta da mera omissão normativa, a fiscalização do Ministério Público não seria necessária nas negociações prévias, submetidas à homologação judicial.
Contudo, atualmente, doutrina e jurisprudência, em uma leitura da lei 11.101/05 à luz da Constituição Federal, especificamente atento às funções institucionais do Ministério Público, passou a entender que o rol de dispositivos que exigem a atuação da instituição na lei 11.101/05 é meramente exemplificativo.
Passou-se a entender que, sendo o Ministério Público uma instituição constitucionalmente destinada à tutela de interesses sociais, sempre que se verificar a presença de interesse público, retratado na coletividade de credores da empresa em situação de crise, deve haver a intervenção da instituição para o exercício da função constitucional de fiscal da ordem jurídica, ainda que ausente previsão expressa na lei 11.101/05.
Vale advertir, contudo, que a empresa em processo de recuperação judicial não perde sua autonomia gerencial, decorrente da sua personalidade jurídica, que lhe é própria, e que lhe outorga autonomia de vontade para celebração de atos e negócios jurídicos necessários ao soerguimento da empresa.
Mas, sempre que houver repercussão jurídica destes atos e negócios jurídicos nos credores sujeitos ao plano de recuperação judicial, isto é, quando ultrapasse os meros interesses e direitos individuais dos sujeitos de uma específica relação jurídica mantida com a empresa em recuperação, deve haver a intervenção do Ministério Público, tendo em vista que sua função constitucional é tutelar os interesses sociais.
Desta forma, nesta leitura constitucional da lei 11.101/05, parece-nos clara a necessidade de intervenção do Ministério Público na demanda homologatória das negociações prévias, pois, inegável a presença do interesse social dos credores.
A necessidade torna ainda mais evidente quando as negociações prévias possuam um caráter antecedente ao pedido de recuperação judicial. Isto porque, nestes casos, adotada interpretação diversa, chegaríamos à conclusão de que parte dos credores, que serão igualmente submetidas ao plano de soerguimento da empresa, não estará sujeita à fiscalização do Ministério Público (especificamente aqueles que aderiram às negociações prévias), ao passo que outra parte dos credores será submetida à aludida fiscalização.
Em relação às negociações prévias que visam prevenir pedido de recuperação judicial, apesar de não haver a falta de isonomia supracitada entre os credores, também entendemos que deva haver a atuação do Ministério Público, pois o interesse social mantém-se presente. Tanto que a própria lei 11.101/05 destaca, por exemplo, ao tipificar as condutas de fraude², favorecimento de credores³ ou de desvio de bens4, que estes ilícitos podem ser verificados antes mesmo da decisão que conceder a recuperação judicial.
Deste modo, não obstante a ausência de previsão normativa, seguindo o atual entendimento da doutrina e jurisprudência, de que a lei 11.101/05 deva sofrer uma interpretação à luz do que dispõe a CF, em especial acerca das atribuições constitucional do Ministério Público (artigo 127), entendemos que, no requerimento de homologação das negociações prévias, possuam estas caráter antecedente ou não ao pedido de recuperação judicial, deverá haver a intervenção do Ministério Público, para o exercício da sua função constitucional de fiscal da ordem jurídica, antes da decisão homologatória.
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1. Consoante trabalho desenvolvido por Pedro Thomé de A. Neto e Andréa Bernardes de Carvalho, as previsões expressas de intervenções do Ministério Público são destacadas nos seguintes momentos: “(I) quando lhe é facultado impugnar a relação dos credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimidade, importância ou classificação de crédito relacionado (art. 8º), (II) quando lhe é autorizado pedir a exclusão, outra classificação ou retificação de qualquer crédito, na hipótese de falsidade, dolo, simulação, fraude, erro essencial ou documentos ignorados na época do julgamento do crédito ou inclusão no quadro-geral de credores (art. 19), (III) quando for necessário requerer a substituição do administrador judicial ou dos membros do comitê nomeados em desacordo com a lei (art. 30, § 2º), (IV) quando o juiz ordenar a intimação de decisão que deferir o processamento da recuperação judicial (art. 52, inciso V), (V) quando determinada a sua intimação de sentença que decretar a falência (art. 99, inciso XIII), (VI) quando lhe for permitida a propositura de ação revocatória no prazo de 3 (três) anos contados da decretação da quebra (art. 132), (VII) quando determinada a sua intimação em qualquer modalidade de alienação na falência (art. 142, § 7º), (VIII) quando puder apresentar impugnação, em qualquer modalidade de alienação do ativo (art. 143), (IX) quando determinada a sua intimação para se manifestar sobre as contas do administrador judicial (art. 154, § 3º), (X) quando a lei estabelece como crime de violação de impedimento a aquisição pelo seu representante de bens da massa, por si ou por pessoas interpostas (art. 177), (XI) quando,na falta de oferecimento de denúncia pelo representante do “Parquet”, decorrido o prazo previsto no artigo 187, § 1º, facultar a qualquer credor habilitado ou ao administrador judicial a ação penal privada subsidiária da pública (art. 184, parágrafo único), e (XII) quando determinada a sua intimação de sentença que decreta a falência ou que conceda a recuperação, para que possa, eventualmente, oferecer denúncia por crime previsto na legislação especial ou requisitar a abertura de inquérito policial (art. 187)” - NETO, Pedro Thomé de A.; CARVALHO, Andréa Bernardes de. A intervenção do Ministério Público no processo falimentar e de recuperação de empresas. B. Cient. ESMPU, Brasília, a. 6 – 24/25, p. 175-191 – jul./dez. 2007, p. 181-182.
2. Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem. Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. Disponível aqui. Acessado em 2/5/21.
3. Art. 172. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar plano de recuperação extrajudicial, ato de disposição ou oneração patrimonial ou gerador de obrigação, destinado a favorecer um ou mais credores em prejuízo dos demais: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. . Disponível aqui. Acessado em 2/5/21.
4. Art. 173. Apropriar-se, desviar ou ocultar bens pertencentes ao devedor sob recuperação judicial ou à massa falida, inclusive por meio da aquisição por interposta pessoa: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Disponível aqui. Acessado em 2/5/21.