Por ser a responsabilidade civil do Estado objeto de análise por diversos operadores do Direito, não há a necessidade de se aprofundar na evolução histórica do instituto, partindo-se da premissa de que as concepções teóricas sobre a responsabilidade civil do Estado evoluíram para, no Direito Brasileiro, consolidarem a Teoria do Risco Administrativo, no bojo da qual é imprescindível a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta estatal e o evento danoso.
No campo da omissão, pacificou-se que, sendo ela específica, o Estado, que figura “na condição de garante (ou de guardião) e por omissão sua cria situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo"1, sujeitar-se-á às regras da responsabilidade civil objetiva.
O Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, ao julgar o RE 841.526/RS, de relatoria do Ministro Luiz Fux, entendeu, como regra, a responsabilidade civil objetiva do Estado por morte de detento, reconhecendo o dever estatal (na condição de garante) de assegurar a integridade física dos presos.
Por não ser o objetivo principal desta abordagem, dispensar-se-á a argumentação em tal sentido. Entretanto, o problema surge nos homicídios ocorridos no contexto de “guerra de facções” no interior das penitenciárias, cujo montante vem se intensificando. Os homicídios em tais estabelecimentos, majoritariamente, decorrem de conflitos entre facções que se encontram recolhidas em um mesmo espaço físico, como foi o caso, dentre outros, da chacina praticada em rebelião no Centro de Recuperação Regional de Altamira/PA, no ano de 20192.
Com esteio na doutrina, o sistema prisional brasileiro é falido3. Nele há um cenário de constante e reiterada violação aos direitos humanos, a ponto de, no julgamento da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal ter conceituado o sistema penitenciário como um Estado de Coisas Inconstitucional.
O Estado de Coisas Inconstitucional4 é configurado com a existência de violação generalizada e sistêmica de direitos humanos fundamentais, a qual é oriunda da omissão das autoridades públicas competentes que, caso atuassem como legalmente previsto, seriam capazes de suprimir a inconstitucionalidade da situação5, como ocorre no sistema brasileiro. O Ministro Marco Aurélio Mello, em seu voto, como relator da ADPF 347/DF, bem disse que “no sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica”6, ao passo em que o Ministro Edson Fachin reconheceu que o Estado, ao atrair para si a persecução penal, “atrai, conjuntamente, a responsabilidade de efetivamente resguardar a plenitude da dignidade daquele condenado sob sua tutela”7.
A partir de tais premissas e do conteúdo do art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, o qual assenta que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”8 (cuja base axiológica é o princípio basilar da dignidade da pessoa humana), a Corte Suprema conta com precedentes que reconhecem a existência de nexo de causalidade entre a omissão específica estatal e o evento danoso (morte do detento).
Na hipótese acima, o reconhecimento do nexo fica condicionado à possibilidade do Estado agir para evitar o resultado, sob pena de ser ele rompido, como bem destaca o Ministro Luiz Fux, quando da relatoria do RE 841.526/RS, ao dizer que com a ruptura do nexo haverá o afastamento da “responsabilidade do Poder Público, sob pena de adotar-se contra legem e a opinio doctorum a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional”9.
Diante do panorama apresentado, o que se busca examinar é se o Estado é civilmente responsável pela morte de detento em “guerra de facções”. O Estado poderia e deveria agir para evitar o resultado? Há nexo entre a omissão estatal e o evento morte?
Primeiramente, há de se destacar que o ônus probatório da ruptura do vínculo causal é do Poder Público, uma vez que ele tem o dever constitucional de assegurar a integridade física dos detentos, com base na Teoria do Risco Criado (Teoria da Culpa na Guarda10). Relevante, na solução da questão proposta, é o art. 83-B, III, da Lei de Execuções Penais, que diz: “indelegáveis as funções de direção, chefia e coordenação no âmbito do sistema penal, bem como todas as atividades que exijam o exercício do poder de polícia, e notadamente: (...) controle de rebeliões”11.
Sobre o referido dispositivo legal, Adilson Abreu Dallari afirma que “chama a atenção a previsão expressa da competência para lidar com rebeliões, deixando claro que esse é um risco sempre latente nos presídios. Não é um evento excepcional e completamente imprevisível”12.
Justamente por não configurar um evento completamente imprevisível é que não se poderá, como regra e seguindo o entendimento da Corte Suprema, eximir o Estado de sua responsabilidade civil decorrente da morte de detentos no contexto de “guerra de facções”.
Quando do ingresso do detento no sistema prisional, ele será classificado “segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal”13 (art. 5º, LEP). No mesmo sentido, as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela), na Regra 2.2, diz: “para que o princípio da não discriminação seja posto em prática, as administrações prisionais devem levar em conta as necessidades individuais dos presos, particularmente daqueles em situação de maior vulnerabilidade”14.
Diante das diretrizes para a execução da pena, devendo ser ela individualizada, exigindo-se uma classificação segundo a personalidade e os antecedentes, bem como considerando a condição de maior vulnerabilidade/periculosidade do membro de facção criminosa, ainda que se considere o risco de morte a que se encontra exposto quando solto, a partir do momento em que ingressa no sistema penitenciário, o Estado passa a ser garantidor de sua integridade física.
Em tal contexto, o homicídio praticado contra o detento não pode ser considerado mero acidente ou mero evento imprevisível. O Estado deve empreender ações contínuas, sendo fundamental que exista um “monitoramento, constante e permanente, em toda a rede, em diversas unidades da federação e com a participação indispensável dos órgãos federais de segurança”15. Trata-se do dever específico do Estado em relação aos encarcerados que se encontram sob sua custódia.
O detento vítima de homicídio, ao integrar facção criminosa, em verdade, apenas exacerba o dever de cuidado do Estado de assegurar sua integridade física e a dos demais. Os riscos são assumidos pelo Poder Público. Há o dever de segurança em relação à todos os custodiados, rompendo-se o nexo entre este dever e o evento morte quando ela advém de situação absolutamente imprevisível.
Para que se rompa o nexo causal, exige-se a comprovação de que o Estado não possuiria a efetiva possibilidade de agir para evitar o dano (morte) ou, ainda, que seria inevitável a morte do detento, o que revela não ser tarefa das mais simples a ocorrência e comprovação da ruptura do nexo causal.
São as peculiaridades do caso concreto que fornecerão as evidências da ruptura do nexo, uma vez que não se adota a Teoria do Risco Integral, havendo de se perquirir, na realidade dos fatos, a possibilidade do Estado agir para evitar o evento danoso.
Ainda no campo do julgamento do RE 841.526/RS16, o Ministro Luiz Fux, quando foram ressalvadas hipóteses de exclusão do vínculo causal, bem concluiu:
Até mesmo no caso de homicídio, poderá haver situações em que não se poderá responsabilizar o Estado pela morte do detento. À guisa de exemplo, podemos aqui apontar a situação em que um preso mata o outro em legítima defesa. Nessa situação, é o falecido quem age de forma contrária à lei, atentando contra a vida de outro preso, que reage licitamente, matando-o.
No exemplo citado, sendo inevitável o resultado, o Estado não pode ser responsabilizado e, como bem destaca no mesmo julgamento o Ministro Edson Fachin, “desloca-se a discussão do plano puro da “presença de nexo causal”, para a verificação de efetiva infração a um dever específico de diligência estatal”17.
O que se conclui é que, em regra, seguindo uma interpretação crítica do entendimento da Corte Suprema, no caso de homicídio decorrente da “guerra de facções”, por se tratar de evento perfeitamente previsível e provável (em especial pelas condições pessoais do encarcerado), o Estado, na condição de garante, é responsável civilmente pelo evento.
Enfim, a regra geral é a responsabilidade civil do Estado, o que foi lembrado pelo Ministro Luiz Fux (RE 841.526/RS18), quando afirma que, “baseado no dever de custódia, eu estou afirmando que a morte de detento - como regra geral - gera responsabilidade civil do Estado. Essa é a primeira regra”, além de ressalvar que “para não adotar a teoria do risco integral, eu estou admitindo que o Estado possa demonstrar que, da sua omissão, não decorreu o dano”.
Desta forma, a regra aparente é que, mesmo sendo a vítima de homicídio membro de facção criminosa, restará configurado o nexo de causalidade, sem que se afaste a possibilidade de que o Estado demonstre excludentes de sua responsabilidade. Tanto é assim que, após debates, a Corte Suprema firmou a tese de que “em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte do detento”19.
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1 FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. 10ª Edição. São Paulo: Atlas, 2012. p. 268
2 Disponível no sítio eletrônico: clique aqui. Acesso em 30 de abril de 21.
3 Cf BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 5ª Edição rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2017.
4 O Estado de Coisas Inconstitucional é instituto com origem nas decisões da Corte Constitucional Colombiana, frente às contínuas e generalizadas violações aos direitos fundamentais, justificando intervenções judiciais para superar o quadro existente, haja vista serem consequências da omissão do poder público.
5 JUNIOR, Ronaldo Jorge Araújo Vieira. Separação de Poderes, Estado de Coisas Inconstitucional e Compromisso Significativo: novas balizas à atuação do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2015 (Texto para Discussão 186). Disponível clicando aqui. Acesso em 30 de abril de 21
6 STF - ADPF 347 MC, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 9/9/15, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-2-16. Disponível no sítio eletrônico: clique aqui. Acesso em 30 de abril de 21
7 Idem.
8 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1.988. Disponível em: <_http3a_ _www.planalto.gov.br2f_ccivil_032f_constituicao2f_constituicaocompilado.htm="">. Acesso em 30 de abril de 2021.
9 STF - RE 841.526, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 30/03/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 1-8-16. Disponível no sítio eletrônico: clique aqui. Acesso em 30 de abril de 2021.
10 GONÇALVES, Carlos Alberto. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 309.
11 BRASIL. Lei 7.210, de julho de 1984. Lei de Execuções Penais. Disponível clicando aqui. Acesso em 30 de abril de 21.
12 DALLARI, Adilson Abreu. Mortes em presídios impõem desafio na identificação de responsáveis civis.
13 BRASIL. Lei n.º 7.210, de julho de 1984. Lei de Execuções Penais. Disponível clicando aqui. Acesso em 30 de abril de 21.
14 Disponível no sítio eletrônico: clique aqui. Acesso em 30 de abril de 21.
15 DALLARI, Adilson Abreu. Mortes em presídios impõem desafio na identificação de responsáveis civis.
16 STF - RE 841526, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 30/3/16, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 1-8-16. Disponível no sítio eletrônico: clique aqui. Acesso em 30 de abril de 21.
17 Idem.
18 Idem.
19 Idem.