A decisão prolatada no ano de 1954, em Brown v. Board of Education¹, sem dúvida, é um marco na história constitucional norte-americana e mundial. Conforme enfatiza Cass Sunstein, “o direito constitucional costuma a definir-se pela reação a alguns casos grandiosos. E o caso definidor das últimas décadas foi Brown v. Board of Education, um exemplo de reorganização social, no interesse de uma minoria racial, levada a efeito pelo judiciário”².
Com efeito, foi em Brown v. Board of Education que a Suprema Corte dos EUA, sob a presidência do Chief Justice Warren, baniu a segregação racial das escolas públicas americanas, revertendo precedente que se encontrava em vigor há mais de cinquenta anos, sob o argumento de que a doutrina do “separate but equal” (separados, mas iguais) violava o princípio da igualdade de todos perante a lei, consagrado na 14ª. Emenda.³
Nos anos que se seguiram, a Suprema Corte dos EUA aderiu a uma postura nitidamente ativista, mas o ativismo judicial, nesse período, dirigiu-se preponderantemente à proteção e à construção de novos direitos fundamentais4, como revela, em especial, a decisão em Roe v. Wade5, de 1973.
E assim foi até a nomeação de William Rehnquist para a Presidência da Suprema Corte dos EUA.
A verdade é que, ainda que em sintonia com os anseios da parcela substancial da sociedade americana, o ativismo da Suprema Corte não agradou a ala mais conservadora do eleitorado. Os Estados Unidos são, como sabido, um país moralmente dividido. E a agenda perfilhada pela extrema direita do Partido Republicano é bem conhecida: (i) reverter o precedente contido em Roe v. Wade, pondo um fim ao direito das mulheres ao aborto, proibir a implementação de ações afirmativas; (ii) recusar todo e qualquer direito às relações homossexuais; (iii) assegurar aos norte-americanos o direito de portar armas; (iv) ampliar os poderes do Poder Executivo, em especial em períodos de guerra (leia-se: guerra ao terrorismo); (v) e, em âmbito econômico, reduzir ao máximo a intervenção estatal na esfera privada.
A percepção de que tais questões são, ao final, equacionadas no âmbito do Poder Judiciário levou a direita ultraconservadora, a partir de um determinado momento, a organizar-se em torno de um único objetivo: assumir o controle do Judiciário, em especial da Suprema Corte dos Estados Unidos, mediante a nomeação de juízes que perfilhem de suas crenças e valores morais.
Paralelamente a isso, a extrema direita foi conquistando os seus adeptos no meio jurídico e ganhou solidez teórica com o originalismo de Robert Bork6 e Antonin Scalia7. Segundo a filosofia originalista, os juízes devem ater-se à intenção dos founding fathers, quando da elaboração da lei fundamental, sempre que instados a interpretá-la. Assim, ao examinar uma controvérsia de natureza constitucional, cabe ao juiz recorrer às atas da Convenção da Filadélfia e aos debates havidos no período de ratificação, bem como a outros documentos históricos, no intuito de tentar identificar a intenção original dos constituintes de 1787.8 Naturalmente, interpretar a Constituição de acordo a intenção da geração constituinte – no caso dos Estados Unidos, da geração de 1787 – importa em aprisionar as gerações futuras aos valores morais de seus antepassados9. E um regime como esse serve, apenas, aos interesses de uma minoria ultraconservadora e a ninguém mais.
Pois foi, exatamente, com o apoio decisivo desta direita ultraconservadora, ansiosa para controlar a Suprema Corte, que Ronald Reagan chegou à Presidência da República, em 1981. Ali tinha início uma transformação10 radical na composição do órgão de cúpula do judiciário americano, mudança essa que só veio a se aprofundar com os governos republicanos que se seguiram. É verdade que, na primeira oportunidade que teve, Reagan preferiu cumprir uma promessa de campanha, a atender aos anseios da extrema direita do Partido, nomeando a primeira mulher a sentar na mais alta corte do país: Sandra Day O’Connor. O’Connor era de direita, mas não era fundamentalista. Em seguida, o Presidente Reagan nomeou William Rehnquist para o cargo de Chief Justice, no lugar de Warren Burger. Nomeado por Richard Nixon, Rehnquist era Juiz Associado (Associate Justice) da Suprema Corte desde 1972. Extremamente conservador, não poucas vezes ficara vencido na Corte de Burger. Daí que foi a escolha perfeita para o cargo, na visão da ala mais radical do Partido Republicano.
Nos anos subseqüentes, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de uma série de atos legislativos, revertendo a orientação que vigia na Suprema Corte há mais de 50 anos, desde o New Deal, a respeito da extensão dos poderes atribuídos ao Congresso dos Estados Unidos pela Cláusula do Comércio (Commerce Clause), consagrada no artigo 1º da Constituição de 1787.11
Assim é que, sob a presidência de William Rehnquist, a Suprema Corte invalidou o Gun-Free School Zones Act (que tipificava como crime o porte de armas nas proximidades de escolas)12; parte do Violence Against Women Act (que autorizava a propositura, na Justiça Federal, de medida judicial baseada em atos de violência contra mulheres)13; parte do Low-Level Radioactive Waste Policy Act (que criava uma política, de âmbito nacional, para a eliminação de lixo radioativo)14, dentre tantos outros, sempre sob o argumento de que tais atos teriam extrapolado a competência atribuída ao Congresso dos Estados Unidos pela Cláusula do Comércio (Commerce Clause), não dizendo respeito a qualquer interesse econômico relevante, de repercussão nacional.15 Esclarece Larry Kramer, a esse propósito, que “a Corte [de Rehnquist] foi mais longe do que o ativismo da Corte de Warren e da Corte de Burger para simultaneamente descartar ou restringir as doutrinas e princípios que serviram, a partir de 1937, para limitar a sua própria autoridade”16
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1. Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954).
2. SUNSTEIN, Cass R. Lochner’s legacy. In: Columbia Law Review 87, 1987, p. 873 (tradução livre). Para uma análise aprofundada da referida decisão, recomenda-se a leitura de BLACK Jr., Charles L. The Lawfulness of the Segregation Decisions. In: Yale Law Jornal 69, 1960, p. 421.
3. Extraem-se do voto do Chief Justice Warren as seguintes e esclarecedoras passagens: “Em cada um dos casos, menores da raça negra, por seus representantes legais, buscam remédio judicial para obter sua admissão em escolas públicas em bases não segregacionistas. Em cada instância, eles tiveram a matrícula negada em escolas frequentadas por crianças brancas com base em leis exigindo ou permitindo a segregação racial. Essa segregação alegadamente priva os demandantes da igualdade perante a lei, prevista na 14ª Emenda... Cabe concluirmos que no campo da educação pública a doutrina do “separados, mas iguais” não tem espaço. Em função disso, temos a opinião de que os demandantes e outros em situação similar estão sendo, por força da segregação que ora se contesta, privados da igualdade perante a lei, garantida pela 14ª Emenda...” . Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954) (tradução livre).
4. KRAMER, Larry D. The People themselves: popular constitutionalism and judicial review, New York: Oxford University Press, 2004, p. 220.
5. É lembrar que foi em Roe v. Wade, que a Suprema Corte, sob a presidência de Warren Burger, extraiu da Constituição o direito ao aborto, como corolário do direito da mulher à privacidade, contido na cláusula do devido processo legal substantivo. Vide: Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
6. BORK, Robert H. The tempting of America: the political seduction of the law, New York: Touchstone, 1991, p. 143/160.
7. SCALIA, Antonin. Originalism: the lesser evil. In: University of Cincinnati Law Review, 57, 1989, p. 849.
8. Adotando orientação ligeiramente distinta, o originalista Christopher Wolfe assevera que a Constituição “deveria ser compreendida não apenas à luz da intenção dos membros da assembléia constituinte, mas à luz daqueles para os quais a Constituição foi elaborada”. WOLFE, Christopher. How to read the Constitution? Originalism, constitutional interpretation and judicial power, 1984, p. 17 (tradução livre). Ou seja, a adequada compreensão do texto da Constituição deveria ter como parâmetro as convicções morais e ideológicas em vigor na época da edição da Constituição de 1787.
9. Em percuciente exame da questão, assevera o Ministro Luis Roberto Barroso que “nem mesmo o constituinte originário pode ter a pretensão de aprisionar o futuro. A patologia da interpretação histórica é o originalismo. A defesa da ideia de subordinação de todas as gerações futuras à vontade que aprovou a Constituição contrasta com a idéia de Jefferson, generalizadamente aceita, de que a Constituição deve ser reafirmada a cada geração, sendo, consequentemente, um patrimônio dos vivos” (BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 133/134).
10. Alguns autores atribuem a essas transformações tamanha relevância que as denominam de “revoluções constitucionais”. O termo expressa as mudanças ocorridas na Suprema Corte Americana por meio da lógica do “entrincheiramento partidário”. Ocorrem, mais comumente, quando as nomeações levadas a efeito pelo Presidente da República, no âmbito do Judiciário, sobretudo da Suprema Corte, têm motivação ideológica e partidária. É nesse sentido que se diz que o Partido Republicano, quando da Presidência de Ronald Reagan, promoveu uma verdadeira “revolução sem armas”. “Os primeiros sinais dessa mudança ocorreram em 1986, quando o Presidente Reagan promoveu o então Associate Justice da Suprema Corte William H. Rehnquist para Chief Justice, enquanto a vaga deixada pela aposentadoria do Chief Justice Earl Warren Burger, foi preenchida pelo substancialmente mais conservador Antonin Scalia. Mas a revolução realmente decolou em 1991, quando o Justice Clarence Thomas substituiu o Justice Thurgood Marshall” (BALKIN, Jack M. & LEVINSON, Sanford. Understanding the constitutional revolution, Faculty Scholarship Series, Paper 249, 2001, p.1051) (tradução livre).
11. Vide HUDSON, David L. The Rehnquist Court: understanding its impacts and legacy, Westport, CT: Praeger Publishers, 2007, p. 58/63.
14. New York v. United States, 505 U.S. 144 (1992).
15. HUDSON, David L, op. cit, p. 58/63.
16. KRAMER, Larry, op. cit., p. 225 (tradução livre).