O direito brasileiro, forjado nos moldes do sistema romano-germânico, apresenta algumas características clássicas, como (i) a ultrapassada dicotomia entre direito público e privado; (ii) a função subsidiária dos costumes; (iii) a relevância da doutrina na aplicação prática e na formação dos profissionais, e; (iv) o apego à legislação escrita como fonte primária a ser utilizada pelos magistrados na resolução dos conflitos (subsunção do fato à norma como técnica preponderante da atividade jurisdicional).
Depreende-se, no entanto, um claro movimento de aproximação entre o sistema pátrio e aquele operado pelos países anglófonos, o Common Law. Os motores que vêm impulsionando essa aproximação são diversos, no entanto, sem desviarmos o foco do debate, podemos apontar (i) o maior protagonismo do juiz, que deixou de ser mero aplicador da lei (menos subsunção), para ser, a partir de interpretações de princípios e cláusulas gerais, construtor do direito ao lado do legislador (mais ponderação), e; (ii) a ampliação significativa do papel dos precedentes judiciais.
Sobre a relevância que o ordenamento pátrio vem dispensando aos precedentes, Marcus Vinicius Furtado Coêlho¹, membro da comissão que elaborou o projeto do atual Código de Processo Civil, observa que:
O novo diploma, inserido numa tendência global de aproximação entre os modelos da Civil Law e da Common Law, ampliou significativamente a observância dos juízes e tribunais brasileiros aos precedentes e enunciados de força vinculante. A relevância dos precedentes fica evidente no artigo 927 do CPC ao determinar que os Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente. Como uma das formas de garantir essa unificação, o CPC estabeleceu uma nova sistemática de julgamento de recursos repetitivos. Assim, sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, serão escolhidos por amostragem recursos representativos da controvérsia a fim de que sejam julgados, respectivamente, pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça visando à unificação da jurisprudência na questão objeto da discussão (art. 1.036, CPC).
Como visto, “Tema ou Recurso Repetitivo (RR)” se refere aos recursos em que o Tribunal² define uma tese que servirá como paradigma a ser aplicado aos processos em que é discutida idêntica questão de direito. O objetivo, portanto, é estabilizar a jurisprudência, conferindo maior celeridade aos processos congêneres, e, claro, garantindo maior segurança jurídica com a repulsa de entendimentos opostos sobre o mesmo tema.
A escolha3 desses recursos (dois ou mais) pode ser exercida pelo presidente ou vice-presidente do tribunal de origem, ou, diretamente, pelo próprio Relator no Tribunal Superior.
Dispõe o art. 1.037, do diploma processual que, após a seleção dos recursos, o ministro relator, constatando a multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, proferirá decisão de afetação, na qual: (i) identificará com precisão a questão a ser submetida a julgamento; (ii) determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional; (iii) poderá requisitar aos presidentes ou aos vice-presidentes dos tribunais de justiça ou dos tribunais regionais federais a remessa de um recurso representativo da controvérsia.
Nessa esteira de entendimento, o Ministro Marco Aurélio Bellizze, do Superior Tribunal de Justiça, após identificar a multiplicidade4 exigida pelo art. 1.037, do CPC, selecionou os Recursos Especiais 1.863.973, 1.872.441 e 1.877.113 como representativos da controvérsia descrita no Tema 1.085; havendo o colegiado determinado a suspensão de todos os processos pendentes com a mesma matéria, consoante determinação do inciso II, do supramencionado dispositivo.
A afetação desses recursos para julgamento na sistemática dos repetitivos tem por escopo definir se, no âmbito do contrato de mútuo bancário, em que há expressa autorização do mutuário-correntista para o desconto em conta corrente das prestações, aplica-se, analogamente, a limitação de 30% (trinta por cento) prevista na lei 10.820/03, que trata da autorização para desconto de prestação em folha de pagamento por empregado regido pela Consolidação das leis do Trabalho.
Embora o STJ5 venha perfilhando, de forma maciça, o reconhecimento da licitude do desconto em conta corrente bancária comum, ainda que usada para recebimento de salário, das prestações de contrato de empréstimo bancário, não aplicando a limitação contida na lei 10.820/03 à espécie; os Tribunais inferiores, não raras vezes, acabam por aplicar o teto da referida lei que regulamenta o empréstimo consignado, por analogia, ao contrato de mútuo bancário, como é possível verificar na ementa transcrita a seguir:
AÇÃO DE INDNEIZAÇÃO - DÉBITOS NA CONTA CORRENTE EM QUE SÃO CREDITADOS OS VENCIMENTOS DA AUTORA - LIMITAÇÃO DOS DESCONTOS MENSAIS A 30% DESSES RENDIMENTOS - RETENÇÃO INTEGRAL DOS PROVENTOS - DANO MORAL CONFIGURADO - PRIMEIRO RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Estando em discussão a possibilidade de limitação dos descontos em conta bancária na qual são creditados os vencimentos da autora, deve-se aplicar, por analogia, as normas contidas no art. 1º, § 1º, da lei 10.820/03 e no art. 8º, do Decreto 6386/08, que limitam a 30% da remuneração disponível os descontos referentes a empréstimos, incidentes na folha de pagamento dos empregados e servidores públicos. Tais normas encontram sua razão maior no princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1º, III, da CR/88. Decorre de tal princípio a conclusão de que não se pode subtrair de ninguém os meios materiais necessários para garantia uma existência digna. Se, em razão desse princípio, limitaram-se os descontos em folha de pagamento a 30% dos vencimentos, a mesma solução jurídica deve ser aplicada, no caso de débitosa6 lançados em conta-corrente na qual são creditados os vencimentos/salários do titular. (...). Com tais considerações, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso para determinar à parte agravante que limite os descontos que vem efetuando na folha de pagamento do agravado, de forma que a soma dos descontos de todos os empréstimos efetuados na sua folha de pagamento não ultrapasse o percentual de 30% dos seus rendimentos líquidos, como tal entendida a remuneração bruta com abatimento dos descontos legais obrigatórios (imposto de renda e contribuição previdenciária). (TJ-PA - AI: 00029505920168140000 BELÉM, Relator: MARIA FILOMENA DE ALMEIDA BUARQUE, Data de Julgamento: 31/10/16, 3ª CÂMARA CÍVEL ISOLADA, Data de Publicação: 31/10/16).
Nota-se que o fundamento retro remanesceu na genérica tese de proteção da dignidade da pessoa humana. Trata-se, a bem da verdade, de efeito colateral6 daquilo que já foi citado no início deste artigo (maior protagonismo do juiz, que passou a ser construtor do direito a partir de interpretações e ponderações, que, por vezes, acabam desencadeando uma multiplicidade de decisões divergentes sobre o mesmo objeto).
Retomando a análise do Tema 1.085, é importante reconhecer a boa hora da sua discussão.
Em primeiro lugar, cite-se que o entendimento favorável à limitação de descontos das prestações em conta corrente, ao percentual de 30% dos valores líquidos percebidos (por analogia ao que dispõe a lei 10.820/03), viola (i) o princípio constitucional da legalidade (art. 5º, II, da Constituição Federal), na medida em que “não há supedâneo legal e razoabilidade na adoção da mesma limitação, referente a empréstimo para desconto em folha, para a prestação do mútuo firmado com a instituição financeira administradora da conta-corrente7”, e; (ii) a tripartição de poderes (art. 2º, da CF), vez que o legislador quis, deliberadamente, impor a limitação aos empréstimos consignados (lei 10.820/03), não abarcando os empréstimos pessoais, mormente em razão de a margem consignável ser diversa porque prevista para empréstimo com juros mais baixos (caso a margem seja comprometida, nada impede o consumidor de contratar um mútuo comum de acordo com a liberdade contratual).
Observe-se, nesse sentido, que a aplicação da lei 10.820/03, por analogia, só seria adequada se estivéssemos diante de lacuna normativa, consoante disposto no art. 4º, da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro8. Não podendo ser confundida a vontade do legislador (de não limitar a margem para desconto de parcelas de empréstimo comum em conta corrente) com ausência de norma a ser colmatada por analogia.
Em segundo, a referida limitação da margem consignável pela jurisprudência opera um entrave ao socorro econômico ao mutuário em um momento de grave crise econômica desencadeada pela pandemia da covid-19. A limitação, por certo, impõe evidente restrição na concessão do crédito.
Em terceiro, a manutenção da limitação acende um verdadeiro sinal verde do Judiciário para a violação ao princípio da boa-fé objetiva, especialmente no tocante à vedação do comportamento contraditório. Ora, uma vez celebrado o contrato de mútuo, de forma livre e assentida, obtendo-se, a partir da autorização de débito de parcelas em conta corrente, taxas mais favoráveis, não é lícito que o mutuário, em seguida, busque a revisão contratual com vistas à limitação do desconto ao patamar de 30% (trinta por cento), por analogia à lei 10.820/03.
Em quarto, não nos parece razoável que um sistema jurídico, que reclama sistematização e lógica, (i) permita, de um lado, que militares possam sofrer descontos referentes a parcelas de mútuo em até 70% (setenta por cento)9 da remuneração, mas; (ii) por outro lado, imponha margem consignável de até 30% (trinta por cento) aos contratos de mútuo bancário em que há expressa autorização do mutuário-correntista para o desconto em conta corrente das prestações.
Em quinto, a aplicação da limitação em comento consiste em um verdadeiro anacronismo ao ambiente normativo atual, em que se festeja (i) a lei 13.874/19, que instituiu a declaração de direitos de liberdade econômica, estabelecendo normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, dentre as quais destaca-se o recente parágrafo único do art. 421, do Código Civil, que impôs a prevalência do princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual nos contratos privados, e; (ii) a lei 14.131/21, que majorou, recentemente, a margem de consignado (passou a ser de 40%10).
Considerando a provável manutenção da jurisprudência atual, assentada na inaplicabilidade do limite de margem para desconto de parcelas de empréstimo em conta corrente, é prudente acreditar que, por ocasião do julgamento dos repetitivos, o STJ sepultará a insegurança jurídica que ronda a matéria (art. 927, III, do CPC), e, para além da estabilizar a jurisprudência dos tribunais inferiores, corrigirá as distorções legais enumeradas, exemplificativamente, acima.
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1 Disponível aqui.
3 Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.
§ 1º O presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso.(...)
§ 5º O relator em tribunal superior também poderá selecionar 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia para julgamento da questão de direito independentemente da iniciativa do presidente ou do vice-presidente do tribunal de origem.
§ 6º Somente podem ser selecionados recursos admissíveis que contenham abrangente argumentação e discussão a respeito da questão a ser decidida.
4 Há cerca de 500 decisões monocráticas na base de pesquisa jurisprudencial sobre o tema, entre outros acórdãos proferidos pelas Turmas integrantes da Segunda Seção do STJ.
5 Vide alguns arestos exemplificativos:
REsp 1.555.722/SP, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/08/18, DJe 25/09/18;
AgInt no REsp 1500846/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 12/12/218, DJe 01/03/19;
AgInt nos EAREsp 1305797/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/11/20, DJe 16/11/20;
AgInt no AREsp 1662754/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 28/09/20, DJe 01/10/20;
AgRg no REsp 1401659/RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 09/12/19, DJe 12/12/19;
REsp 1834231/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/20, DJe 18/12/20;
6 Sobre o assunto: Disponível aqui.
7 REsp 1586910/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 29/08/2017, DJe 03/10/17.
8 Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
9 A Medida Provisória 2.215-10/2001 apenas previu, no art.14, § 3º, que “o militar não pode receber quantia inferior a trinta por cento da sua remuneração ou proventos”.
10 Art. 1º Até 31 de dezembro de 2021, o percentual máximo de consignação nas hipóteses previstas no inciso VI docaputdo art. 115 da lei 8.213, de 24 de julho de 1991, no § 1º do art. 1º e no § 5º do art. 6º da lei 10.820, de 17 de dezembro de 2003, e no § 2º do art. 45 da lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, bem como em outras leis que vierem a sucedê-las no tratamento da matéria, será de 40% (quarenta por cento), dos quais 5% (cinco por cento) serão destinados exclusivamente para: I - amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito; ou II - utilização com finalidade de saque por meio do cartão de crédito. (...).