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Linhas rasas e perdas profundas: O parecer 131.045/21 do CREMESP

O CREMESP declarou antiéticas vídeo-chamadas com pacientes internados. Em vez de orientar, reforça nos médicos da linha de frente o constante temor de um processo ético.

30/4/2021

Dentre suas consequências nefastas, a pandemia castigou a sociedade com a impossibilidade de se despedir adequadamente de familiares hospitalizados com covid-19.

Quando as mensagens detalhadas, mesmo com linguagem acessível, revelaram-se insuficientes para estabelecer uma conexão entre equipe médica, paciente e família, profissionais da saúde, tentando aliviar a angústia pela falta de notícias e humanizar o trato do paciente, encontraram nas chamadas de vídeo uma alternativa de acolhimento e de abrandar o sofrimento não só de quem estava dentro do hospital como também fora dele.

A aliança de novas tecnologias à promoção de cuidados de saúde é tendência em todo o mundo e a prática logo se consolidou nos principais hospitais de referência em tratamentos centrados no paciente.

Enquanto isso, no Brasil, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) – conselho de maior expressividade por conta da quantidade de profissionais registrados – publicou o Parecer 131.045/211 e o teor causou consternação por, além de ir na contramão do mundo, saltar aos olhos um quê de crueldade.

A origem do parecer foi o questionamento de um médico, considerando o momento de restrição de visitas hospitalares, sobre haver impedimento ético para realizar videochamadas de pacientes internados (conscientes ou não) a fim de permitir a interação com seus familiares. A resposta do CREMESP, em síntese, condenou a prática, entendendo possível somente quando autorizado pelo paciente, o que automaticamente exclui os inconscientes.

O parecer invoca dois aspectos basilares da relação médico-paciente: a privacidade e o sigilo médico. É certo que se trata de valores imprescindíveis, porém, é preciso medir quando aplicá-los, vez que não são espécie de salvo-conduto para isolar o paciente ante qualquer pretexto. Não obstante a particularidade de cada caso, a família faz parte da intimidade do paciente.

Para o Conselho, privacidade e sigilo médico só podem ser relativizados: a) pelo consentimento do paciente; b) por dever legal; ou c) por motivo justo, conforme o Código de Ética Médica (CEM), que, para o CREMESP, seria o interesse público.

Sobre o dever legal, de fato, não há lei que obrigue o médico a realizar videochamada. Mas pretender que haja uma é contrassenso, vez que a situação em debate é inédita e o Direito não acompanha a velocidade de evolução tecnológica. Tampouco há lei que o proíba de fazê-lo.

Ademais, a existência de lei é prescindível, pois, antes de considerar regras, o CREMESP precisa considerar valores, dado que a privacidade encontra limites quando anteposta a outros direitos do paciente. O tratamento humanizado é um deles.

Neste sentido, a medicina paliativa, alinhada com a doutrina de direitos humanos, pauta-se pela busca da qualidade de vida do paciente e de sua família, exercendo o cuidado ativo pela valorização do indivíduo em sua integralidade, ou seja, nos aspectos, físico, psíquico e espiritual, priorizando uma comunicação horizontalizada (ou dialógica, como explica Maria de Fátima Freire de Sá2) e transformando-o em protagonista de seu tratamento e sua biografia.

Assim, diante de doença ameaçadora da vida, como é a covid-19, o cuidado paliativo entra em cena, visando garantir, conforme seus princípios, afirmar a vida e considerar a morte um processo natural, melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente seu curso, integrar aspectos psicológicos e espirituais no cuidado do paciente, bem como auxiliar familiares por todo o curso da doença e no enfrentamento do luto.

Não por acaso, solidifica-se progressivamente a doutrina que entende os cuidados paliativos como direitos humanos, porquanto permitem a expressão de autonomia do sujeito de forma multifacetada, e não como mera externalização de uma vontade, aproximando-se, verdadeiramente, de seu ideal de vida e morte dignas.

É neste cenário que as videochamadas promovem o contato entre família e paciente, enquanto assegura o interesse público de salvaguardar a saúde e a vida pela não circulação de visitas nos hospitais.

Sobre o motivo justo, o CEM não exemplifica, mas, para o CREMESP, é o interesse público. Indaga-se: o risco de falecimento a qualquer momento não parece à ética do conselho motivo justo suficiente para relativizar a privacidade do paciente à família deste, em nome de princípios humanos – também éticos - que se sobrepõem à limitação de um código de conduta profissional?

Em suas conclusões, divididas em três pontos, o CREMESP interpreta a autonomia do paciente ao bel prazer do paternalismo médico.

Ponto um: é absolutamente proibida a exposição de pacientes sedados ou em coma, já que o consentimento é ato volitivo, impossível de ser realizado nestas condições. Também, seria inviável a pleiteada interação com familiares, haja vista o paciente estar desacordado.

Causa espanto tal apreciação reducionista. Pondere-se, por exemplo, o que acontece em alguns casos de inconsciência: se o paciente, incapaz de manifestar sua vontade, está sob iminente risco de morte, Conselho Federal e Conselhos Regionais, em uníssono ao CEM, declaram ser ético agir à revelia da vontade do paciente, indicando ao médico que deve proceder de todas as formas a salvá-lo, porquanto entendem pela eticidade de assumir o risco de ignorar a vontade do paciente e, eventualmente, causar-lhe dano.

Ou, ainda, conhecer a vontade declarada e, mesmo assim, justificando-se no risco de morte, desatendê-la, o que leva, por vezes, a questionar no que se baseia a ética flutuante do Conselho. Esta é outra manifestação de paternalismo, que infantiliza (no sentido de ver o indivíduo como alguém que não está apto a decidir o que é melhor para si) a figura do paciente ao ponto de presumir o que é benéfico para ele.

Ponto dois: pacientes em sala de emergência e UTI já estão devidamente abordados no Parecer CFM 05/163 e no Parecer CREMESP 18.692/174, sendo vedadas as filmagens ou fotos, nestas situações.

Ocorre que estes pareceres analisam situações e direitos distintos dos evidenciados na pandemia, que, pelo grau de disparidade, inviabilizam qualquer analogia. O momento atual não se refere a quaisquer filmagens. Está-se falando de comunicação com a família, cujo meio são filmagens. O foco não é a exposição do paciente, mas possibilitar-lhe dignidade, através da comunicação com familiares, pela única via possível, que, por acaso, requer sua exposição em alguma medida.

Partindo-se da premissa que a preocupação principal do CREMESP é evitar imagens de pacientes e profissionais veiculadas em redes sociais (um dos principais problema éticos do meio virtual), é possível questionar a ocorrência de “exposição”, neste sentido, considerando que a transmissão da imagem do paciente estará circunscrita ao seu âmbito familiar.

Mas há um ponto que se deve considerar. O Parecer CFM 05/16 diz que a forma ética de se proceder a quaisquer tipos de filmagens de pacientes é pela obtenção prévia de autorização destes, ou do responsável legal, de forma livre e esclarecida.

Do mesmo modo, Luciana Dadalto, em vídeo publicado em sua rede social no dia 15/4/215, assevera: os conselhos deveriam, então, engendrar esforços para incentivar e disciplinar o planejamento antecipado de cuidados assim que pacientes com covid-19 fossem admitidos nos hospitais, visto saberem se tratar de doença ameaçadora da vida, cuja possibilidade de agravamento e posterior incapacidade de manifestação de autonomia é grande.

Ponto três: com possibilidade de interação dos pacientes, é compreensível e possível o contato remoto, desde que autorizado pelo paciente, em intervalo de horários predeterminados, como ocorrem em as visitas, respeitada a privacidade dos demais pacientes, sobrepesando dificuldades operacionais para não gerar um fator a prejudicar as rotinas dos serviços.

Tal ponto é passível de concordância até a última vírgula. Isso porque a análise do conselho deve ser quanto à ética, que não está vinculada a dificuldades operacionais, mas à conduta do profissional cuja atividade regula. Além do mais, tratando-se de direito do paciente, é dever do hospital garantir seu cumprimento, de forma que a operacionalização de procedimentos é encargo que deve assumir, quando da prestação de serviço, enquanto garantidor dos direitos do paciente.

Por fim, em sua defesa, o CREMESP emitiu nota em seus canais oficiais negando a proibição das videochamadas (em que pese a contradição, pois, o item um diz “ser absolutamente proibida” a exposição), pois o parecer é apenas opinativo, com o intuito de orientar, não vinculando a conduta do médico.

Ocorre que, mesmo que pareceres não tenham poder legal para proibir, como alegou o CREMESP, em vez de orientar, o Parecer 131.045/21 confunde, gera insegurança aos profissionais da linha de frente e desencoraja a realização das videochamadas, porquanto reforça nos médicos o velho temor de um processo ético.

Se o propósito do CREMESP é velar pela autonomia e pelo direito de escolha do paciente impossibilitado de consentir, há formas mais coesas de fazê-lo, a exemplo de priorizar o incentivo ao planejamento antecipado de cuidados, como apontou Luciana Dadalto e como indicado pelo CFM no próprio Parecer 05/16.

Assim, resta evidenciada a magnitude da imprecisão do juízo feito pelo CREMESP, cujo olhar sobre o paciente reflete uma ótica isolada e destoada de princípios bioéticos, paliativistas e de direitos humanos. Desampara não apenas o direito à morte digna, mas a própria dignidade da pessoa humana.

Por fim, é alarmante que um órgão de classe da magnitude do CREMESP pareça desconectado da realidade atual. A tecnicidade rasa ousa dedicar parcas linhas à questão profunda e intrincada, verdadeiro “calcanhar de Aquiles” dos dilemas éticos: as decisões que devem ser tomadas em momentos de incapacidade de manifestação do paciente.

Mas foi exatamente o que o CREMESP fez. Colou a figurinha redonda do dilema concreto no espaço quadrado do álbum “Código de Ética Médica”.

____________________

1 CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SÃO PAULO. Parecer 131.045, de 11 de março de 2021. 1 - Pacientes sedados ou em coma, entendemos ser absolutamente proibida a sua exposição; 2 - Pacientes em sala de emergência e UTI - ver Parecer CFM no 05/2016 e Consulta CREMESP no 18.692/2016; 3 - Nas demais hipóteses, com possibilidade de interação dos pacientes, entendemos que seria compreensível e possível este contato remoto, desde que autorizado pelo paciente e em intervalo de horários predeterminados. Relator: Cons. Mario Jorge Tsuchiya. Disponível em: clicando aqui. Acesso em: 28 abr. 21.

2 SÁ, Maria de Fátima Freire de. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Cuidados paliativos: entre autonomia e solidariedade. Revista Novos Assuntos Jurídicos – Eletrônica, v. 23, n. 1, p. 240-258, jan-abr 2018. Disponível em: clicando aqui. Acesso em: 29 abr. 21.

3 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Parecer 05, de 21 de janeiro de 2016. É vedada a instalação de câmeras filmadoras nas salas de atendimento a pacientes nos serviços de emergência. Relator: Cons. José Albertino Souza. Disponível clicando aqui. Acesso em: 28 abr. 21.

4 CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SÃO PAULO. Parecer n.º 18.692, de 07 de fevereiro de 2016. 1) Fotografar ou gravar com celular exame de ultrassonografia viola por completo o direito do paciente ao sigilo de seus dados médicos. A atitude a ser tomada é proibir na entrada do acompanhante o porte de filmadora ou celular ou pedir a paciente que autorize por escrito as fotos ou filmagens do seu exame, uma vez que é ela paciente a detentora do direito ao sigilo e só ela pode autorizar a sua quebra. 2) A Portaria 116, do MTPS, que normatiza os exames toxicológicos está absolutamente correta em prever o Médico Revisor que equivale ao 2º perito nas perícias médico-legais e o exame toxicológico nada mais é que uma perícia médico-legal. Relator: Cons. Antônio Pereira Filho. Disponível em: clicando aqui. Acesso em: 28 abr. 21.

5 DADALTO, Luciana. Novas considerações sobre o Parecer n131.045/2020 do CREMESP, 2021, 19 min 31 seg, son., color. Disponível clicando aqui. Acesso em: 27 abr. 21.

Fernanda Moura
Advogada formada pelo Centro Universitário do Pará - CESUPA (2014). Especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito - EPD (2020). Membro da Comissão de Direito Médico e de Saúde - OAB/SP. Consultoria jurídica. Orientação preventiva. Compliance na área da saúde, defesas administrativas e judiciais.

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