Migalhas de Peso

Apreensão de smartphones e a (i)licitude da prova penal: Um necessário debate sobre o Direito à privacidade e à intimidade

Não é porque um determinado mecanismo parece essencial na descoberta da realidade histórica de um fato que ele deverá ser aceito e compor os elementos passíveis de valoração pelo julgador de modo absoluto.

29/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Recentemente, em uma matéria jornalística reproduzida no programa Fantástico, da Rede Globo, discutiu-se sobre as peculiaridades da colheita de dados de smartphones apreendidos em investigações criminais. No caso, a questão era relativa a materiais extraídos dos aparelhos encontrados com suspeitos de praticarem homicídio contra uma criança no Estado do Rio de Janeiro. O ponto alto da reportagem dizia respeito a uma ferramenta israelense que permite colher diversas informações de um aparelho celular, ainda que possam ter sido apagadas pelo investigado, como é o caso de e-mails antigos e mensagens trocadas em aplicativos de conversa. A ideia, aparentemente, era mostrar como o uso da tecnologia tem evoluído no sentido de otimizar as investigações criminais e possibilitar o acesso a informações mais precisas da realidade que se investiga. Ao menos é o que se pode extrair de toda a matéria.

Mas um ponto que não foi abordado durante a reportagem está justamente nos limites dessa colheita probatória e até que ponto se consegue enxergá-la adequada à regulação probatória trazida pela Constituição da República e o Código de Processo Penal.

Como se sabe, nenhum processo pode ser enxergado como absolutamente epistêmico. Ou seja, não é porque um determinado mecanismo parece essencial na descoberta da realidade histórica de um fato que ele deverá ser aceito e compor os elementos passíveis de valoração pelo julgador de modo absoluto. Ainda que a regra seja a admissão ao processo de tudo aquilo que possa ser importante na reconstrução de um fato, ao menos na perspectiva processual, isso não torna o processo penal imune a limites “antiespistêmicos”. É certo que em certos casos, por mais importante que uma prova possa se apresentar, existirão limites pautados em escolhas políticas, concretizados a partir da opção do constituinte em proteger determinadas esferas de direito da intromissão abusiva por parte do Estado como também por outros particulares.

O maior exemplo dessa limitação está no direito à privacidade e à intimidade.

Conforme se pode notar no artigo 5º, inciso XII, da Constituição da República, a privacidade e a intimidade possuem envergadura de direitos fundamentais e, por isso mesmo, devem ser vistos de modo cauteloso, não sendo lícita qualquer interferência estatal que atinja esses dois preceitos. E isso interfere na dinâmica da prova. Pois, como se pode imaginar, uma prova colhida sem o respeito dessas garantias fundamentais, por mais importante que possa se apresentar ao deslinde de um processo penal, não poderá ser aceita e deve ser considerada ilícita, vez que os limites da prova não estão calcados apenas em regras epistêmicas e devem também observar as escolhas políticas. Apesar disso, sabe-se que em certos casos, como a própria Constituição também prevê, é possível a colheita de uma prova a partir da relativização da privacidade, como ocorre, por exemplo, no caso de interceptações telefônicas.

Mas em que pese exista espaço à redução da incidência da privacidade e intimidade, isso não quer dizer que toda relativização é lícita. A prevalência do direito à prova sobre a privacidade e a intimidade é sempre a exceção, não a regra, e, por assim se constituir, deve seguir rigorosos requisitos. No caso das interceptações telefônicas – ou seja, quando se capta a conversa em tempo real sem que o agente seja um dos interlocutores –, a lei 9.296/96 impõe a demonstração de rígidas condições, como ser o crime punido com pena de reclusão, existir razoáveis indícios de autoria e participação e o esgotamento das “vias probatórias ordinárias”, constituindo-se o expediente em última ratio. Ademais, a medida somente é válida se praticada após ordem judicial minuciosamente fundamentada e indicativa da imprescindibilidade do itinerário. Tudo isso, claro, exigindo-se que a medida seja concretizada em prazo razoável de 15 dias prorrogáveis por uma única vez.

A legislação, como se nota, trata de modo cuidadoso a relativização da privacidade e da intimidade em caso de interceptações telefônicas, buscando construir um caminho seguro na avaliação de medidas invasivas dessa natureza. Porém, não há nada que trate com maior cuidado da questão dos smartphones e da extração dos dados neles contidos, existindo uma luminosa lacuna no ordenamento jurídico brasileiro. E aqui se tem uma omissão legislativa perigosa.

Como se sabe, é quase impossível se viver na sociedade atual sem que se recorra aos smartphones. Das transações mais complexas até as mais simples, tudo tem sido realizado por meio desses aparelhos, os quais, em grande medida, já substituem os computadores pessoais nas atividades cotidianas. E essa realidade, como se pode imaginar, acaba trazendo novos desafios ao direito e, claro, ao processo penal. Esses aparelhos hoje contêm uma infinidade de informações privadas e íntimas que centenas de milhares de documentos físicos não são capazes de armazenar. Desde décadas de trocas de mensagens, como documentos bancários, comprovantes de transações financeiras, fotografias, vídeos, áudios e inúmeros outros dados estão presentes nesses aparelhos. E isso se torna mais complicado quando se tem a possibilidade de armazenamento em “nuvem”, independentemente do aparelho fisicamente utilizado. O grau de “portabilidade” de informações equipamentos é imensa.

Apesar desse contexto, o tratamento que se tem dado na prática forense a esses equipamentos é severamente pernicioso, muito pela falta de regulamentação específica e pela falta de cautela do poder judiciário com a delicadeza das informações. O que se tem visto comumente é a confusão entre a portabilidade das informações constantes no aparelho e a apreensibilidade física do equipamento. É dizer: toda a complexidade do problema tem sido simplificada ao regulamento da busca e apreensão, ignorando-se a natureza das informações e dados presentes no smartphone.

Conforme se infere em diversas decisões judiciais – a “Operação Lava-Jato” foi rica em exemplos –, ao se autorizar uma busca e apreensão, a autoridade judicial já insere no âmbito de abrangência do mandado a possibilidade de apreensão dos aparelhos smartphones, inclusive com a autorização de extração dos dados que tenham relação com o delito em investigação. Essas decisões, porém, não apresentam maiores cautelas na análise dos limites de acesso aos dados. Costuma-se autorizar de modo irrestrito o acesso integral às informações do smartphone, possibilitando às autoridades conhecer tudo o quanto possa estar armazenado ali, mesmo que as informações sejam de uma década atrás ou sejam severamente sensíveis. A lógica dos fundamentos tradicionalmente usados pelos julgadores reside na equiparação entre a apreensão de documentos físicos e apreensão de documentos eletrônicos armazenados em smartphones, como se fossem equivalentes.

Mas essa equivalência, obviamente, não existe.

É certo que o smartphone não é o mesmo que um arquivo de documentos em formato eletrônico. Em tempos hodiernos, se apresenta como ferramenta essencial no desenvolvimento das atividades mais básicas da vida cotidiana. E em tempos de pandemia isso se tornou mais evidente. Essa realidade nos insta a pensar que não se pode tornar equivalente uma simples busca e apreensão de documentos e uma devassa irrestrita de informações das mais variadas possíveis que são armazenadas em um aparelho celular. Esses dados devem ser lidos, em primeiro plano, sob a ótica da proteção da privacidade e da intimidade, não apenas sob os requisitos da busca e apreensão, que são menos rígidos.

Veja-se que em casos de interceptação telefônica, em que a abrangência da medida é bem menos grave do que a extração de dados de um smartphone, a lei é extremamente rigorosa e exige uma fundamentação minuciosa e cautelosa. Nesse ponto, seria verdadeiro contrassenso pensar que a proteção da privacidade e da intimidade é menor quando se trata da devassa de um equipamento que possui um nível de portabilidade inúmeras vezes maior do que uma conversa telefônica em tempo real. É impossível imaginar que o monitoramento da linha telefônica de alguém por 15 dias tenha o mesmo grau de informação que décadas de armazenamento de dados. Mas, a despeito disso, ainda se insiste em equiparar a extração de dados de smartphones a uma simplória busca e apreensão.

É patente que não se trata de uma simples busca e apreensão, mas sim de uma medida capaz de vulnerar toda a proteção constitucional da privacidade e da intimidade sem maiores cautelas.

Ora, não se quer aqui construir uma teoria que imunize os dados contidos em aparelhos smartphones da dinâmica probatória. Longe disso. Todavia, é certo que o regulamento da busca e apreensão não pode ser visto como fundamento único da medida de acesso aos dados. Não é uma autorização genérica e sem maiores fundamentos que pode permitir, após a apreensão física do aparelho, a extração integral do que ali conste. O grau de portabilidade das informações exige que a medida seja lida sob os limites da proteção da privacidade e da intimidade. Se em casos de interceptação telefônica os requisitos são rígidos, em hipóteses de acesso a smartphones eles o devem ser mais ainda. No mínimo, é preciso que se fundamente a necessidade e proporcionalidade da medida e, obviamente, o grau de alcance em patamares razoáveis. Autorizar de modo irrestrito a devassa de décadas de dados não parece se adequar aos preceitos protetivos da Carta Constitucional.

O problema não é simples, com certeza. Mas é preciso que se olhe com mais cuidado a figura dos smartphones na dinâmica probatória brasileira, sob pena de se criar espaços de violação de garantias constitucionais fundamentais gravíssimos.

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BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019.

GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Sílvio. Interceptação telefônica e das comunicações de dados e telemática: comentários à Lei 9.296/96. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.

GLOECKNER, Ricardo Jacosen; EILBERG, Daniela Dora. Busca e apreensão de dados em telefones celulares: novos desafios diante dos avanços tecnológicos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 156, a. 27, p. 353-393, jun./2019.

Douglas Rodrigues da Silva
Mestre em Direito pelo UNICURITIBA. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo UNICURITIBA. Professor de Direito Penal Econômico das Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais. Advogado Criminal do escritório Antonietto & Guedes de Castro Advogados Associados.

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