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O risco de captura informacional no diálogo competitivo

O risco de captura informacional presente no diálogo competitivo, a nova modalidade licitatória, e os dispositivos aptos a inibir tal fenômeno na lei 14.133/21.

27/4/2021

Com o advento da lei 14.133/21, a nova “Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, está vigente em nosso ordenamento jurídico uma nova modalidade licitatória, qual seja, o diálogo competitivo. A nova ferramenta, oriunda do direito europeu1, traz flexibilidade e possibilidades de cooperação entre o setor público e o setor privado inexistentes até então2, razão pela qual, igualmente, traz riscos para o seu funcionamento em nosso país que, como sabemos, há anos, enfrenta imensuráveis problemas no âmbito das contratações públicas.

Certamente, o diálogo competitivo deverá ser motivo de estudo pela doutrina e jurisprudência pátria nos próximos anos, com o objetivo de melhor compreender o instrumento. Há parcela da doutrina que, desde já, não concorda com a inédita modalidade licitatória e a flexibilidade trazida para o âmbito das contratações públicas brasileiras3. O presente texto, então, analisando as disposições legais do instrumento na lei 14.133/21, tem o intuito de abordar apenas um dos perigos com a flexibilização trazida na nova modalidade licitatória: a captura informacional.

O diálogo competitivo é conceituado no inciso XLII do artigo 6º da lei 14.133/214, enquanto as hipóteses de utilização e o rito próprio a ser seguido estão estabelecidos no artigo 32 da referida lei. É certo que a nova modalidade licitatória não será destinada para toda e qualquer contratação de obras, serviços e compras da Administração Pública, ficando restrita a alguns casos que se encaixem nas previsões dos incisos I e II do artigo 32 da lei 14.133/215.

Muito similar ao que foi pensado na Diretiva de 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, bem como na de Diretiva de 2014/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, a ferramenta é destinada para contratação de objetos intrinsicamente complexos ou que a sua definição e identificação são complexas. Trata-se, em suma, de uma modalidade em que a Administração Pública busca solucionar um problema, mas não sabe a melhor forma de solucioná-lo, apesar de conhecer o setor6.

Nesse cenário, pois, a Administração convida o mercado privado para verdadeiras conversas até encontrar o objeto que satisfaça as suas necessidades. Após a identificação do objeto a ser contrato, abre-se novo prazo para que somente as partes que participaram da fase anterior façam suas propostas. Destaca-se, sobretudo, que essas fases ocorrem dentro de um único procedimento licitatório.

Verifica-se, nas fases sumariamente acima expostas, a existência de uma fase flexível, na qual há conversas e modelagem do objeto, e, posteriormente, uma fase mais rígida de apresentação de propostas referentes ao objeto agora já definido. É justamente na fase flexível onde há maior risco de ocorrência da captura informacional.

O fenômeno denominado de captura informacional pode ser compreendido como “uma estratégia empregada por agentes econômicos para que o agente público atue involuntariamente em favor de interesses privados”7. Tal preocupação, destaca-se, não é uma exclusividade do diálogo competitivo, podendo ser constatado em diversas outras ferramentas, como, por exemplo, no procedimento de manifestação de interesse, ora previsto no artigo 81 da lei 14.133/218.

Em que pese o risco seja inevitável, haja vista a existência de diálogo entre as partes, busca-se apresentar os principais dispositivos pensados pelo legislador pátrio, a fim de evitar tal problema. Importante registrar que apenas a previsão legal não trará efeitos, cabendo, ao fim e ao cabo, a vigilância constante e o desenvolvimento de valores culturais contrários às burlas sistemáticas, como vemos, há anos, nas contratações públicas.

Quanto aos aspectos preventivos, salienta-se, a princípio, a previsão de impossibilidade de a Administração tornar públicas as soluções e informações sigilosas comunicadas por um dos licitantes aos demais competidores, sem o seu consentimento (incisos III e IV do § 1º do artigo 32 da lei 14.133/219). Além disso, verifica-se a determinação de registro em ata e gravação de áudio e vídeo das reuniões com os licitantes pré-selecionados (inciso VI do § 1º artigo 3210). Em outro diapasão, ainda há a constatação de que a condução do diálogo competitivo será feita por uma comissão de contratação, composta de pelo menos 3 (três) servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração Pública (inciso XI do § 1º do artigo 32 da lei 14.133/2111).

Com tais dispositivos, é crível asseverar que a incorporação da nova modalidade licitatória não menosprezou os riscos naturais que podem aparecer no decorrer do diálogo competitivo, incluindo a captura informacional. Nesse sentido, compreende-se que a institucionalização de uma ferramenta mais flexível veio acompanhada de dispositivos que têm a capacidade de se adequar a nossa realidade, fomentando a visibilidade, a competitividade, a eficiência e o tratamento isonômico.

De outra banda, o legislador pátrio estabeleceu métodos repressivos envolvendo a modalidade licitatória ora estudada. Isto é, para aqueles que frustrem o caráter competitivo ou a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública no diálogo competitivo fica prevista a pena de reclusão de 06 (seis) meses a 03 (três) anos, vide o artigo 337-O no Título XI da Parte Especial do Código Penal, conforme determinado pelo artigo 178 da lei 14.133/2112.

Com efeito, ressalta-se que não se pretende inferiorizar os perigos inerentes à flexibilização trazida pela nova modalidade licitatória, considerando o histórico brasileiro, e, inocentemente, achar que apenas a institucionalização dessa ferramenta será suficiente para evitar burlas ao sistema. Até porque, sabe-se que inexiste um “conjunto perfeito de mecanismos e ferramentas infalíveis para eliminar os desvios”13.

Por meio do presente artigo, buscou-se, ainda que singelamente, contribuir para o estudo do diálogo competitivo, trazendo à baila dispositivos existentes na lei 14.133/21 referentes ao novo instituto que, se bem compreendidos e seguidos, têm a capacidade de auxiliar na persecução do interesse público, diminuindo a possibilidade da captura informacional. Nesse sentido, por fim, coaduna-se com a doutrina que compreende que a nova modalidade “apresenta certo grau de informalidade e deverá ser realizada de forma muito transparente, para que não sirva de trampolim a direcionamentos, desvirtuando-se dos objetivos do processo”14

___________________

1 HAAB, Augusto Schreiner. O diálogo competitivo previsto no projeto de lei  4.253/20. Trabalho de conclusão de curso (Graduação). Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público, Curso de Direito, p. 13. Porto Alegre, RS, 20. Disponível clicando aqui. Acesso em: 25 abr. 21

2 Ibid., p. 54.

3 MARTINS, Marcondes Ricardo. Reforma da Lei de Licitações: como podemos piorar?. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), 2016. Disponível clicando aqui. Acesso em: 25 abr. 21.

4 BRASIL. Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF, 2021. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26 abr. 21.

5 Ibid.

6 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Os contratos públicos na União Europeia. Bruxelas: [s.n.], 11 de março de 1998, p. 08. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26 abr. 21.

7 SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados: da opacidade à visibilidade na administração pública. Dissertação (Doutorado em Direito). 2017. Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 127, 2017. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26 abr. 21.

8 BRASIL. Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF, 2021. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26 abr. 21.

9 BRASIL. Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF, 2021. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26 abr. 2021

10 Ibid.

11 Ibid.

12 BRASIL. Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF, 2021. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26 abr. 2021.

13 FORTINI, Cristiana; MOTTA, Fabrício. Corrupção nas licitações e contratações públicas: sinais de alerta segundo a Transparência Internacional. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, 2016, n. 64, p. 93-113, p. 111. 2016. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26 abr. 21.

14 TOURINHO, Rita. A Evolução do Processo Licitatório no Ordenamento Jurídico Brasileiro e Expectativas na Tramitação do projeto de lei 599/13. 50 Anos Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro 65, 2017, p. 158. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26 abr. 21.

Augusto Haab
Acadêmico do 10º semestre do curso de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS). Atualmente, estagiário da Borba, Pause & Perin - Advogados. ID Lattes: 5566288362126019.

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