Migalhas de Peso

A era Lochner

Compreensão da história do controle de constitucionalidade das leis, na Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

28/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Este é o terceiro, de uma série de seis artigos, voltados para oferecer uma melhor compreensão da história do controle de constitucionalidade das leis, na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, e tentar jogar, ainda que por via indireta, um pouco de luz no debate nacional a respeito do tema.

Com efeito, no artigo “Judicial review: O “Big Bang”¹, busquei revisitar as origens do judicial review of legislation, desde a Convenção da Filadélfia, até o caso Marbury v. Madison², de 1803, em que reconheceu a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, pela primeira vez, a possibilidade de o Judiciário declarar a inconstitucionalidade de lei federal, incompatível com a Constituição. Em especial, tentei demonstrar que, ao menos no marco zero, em nenhum momento o Chief Justice John Marshall teve “a intenção de fazer do Judiciário um poder superior aos demais e nem, muito menos, pretendia transformar o 'judicial review of legislation’ em prática comum no âmbito dos tribunais. Tanto assim que, nas décadas que se seguiram, a prática da Suprema Corte foi de quase absoluta deferência ao legislativo federal”³.

Ao passo que no artigo “Judicial review no século XIX: 100 anos (ou quase) de deferência4, a partir do caso Dred Scott5, a intenção foi a de pontuar que “muito diferentemente do que sugere o imaginário popular, a jurisdição constitucional norte-americana, em um momento inicial, de nada serviu para o fortalecimento da democracia ou para a proteção dos direitos humanos. Muito ao contrário, o controle judicial de constitucionalidade das leis foi utilizado como mecanismo de opressão, prestigiando os interesses de uma classe dominante, os brancos proprietários de escravos, em detrimento de uma minoria oprimida, os negros de ascendência africana6.

Pois bem: nos Estados Unidos da América, a expansão da autoridade judicial, em sede de controle de constitucionalidade, teve vez, apenas, ao final do século XIX, quando a mais alta corte americana começou a abandonar a sua postura de quase absoluta deferência ao Legislativo Federal, assumindo uma atitude marcadamente ativista. E fez isso, na maior parte das vezes, para invalidar políticas públicas, no ambiente econômico. Assim, no caso United States v. E.C. Knight Co., a Suprema Corte restringiu o alcance do Sherman Antitrust Act de 1890, permitindo a uma única indústria açucareira ter o controle de cerca de 98% da indústria de refino do setor, por entender que “produção” não se confundiria com “comércio”, não estando o Congresso autorizado a regular tal atividade7. Outrossim, no caso Pollock v. Farmer’s Loan and Trust Co., a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade do Income Tax Act, datado de 1894, na parte em que instituiu tributo sobre a renda oriunda de propriedade, ao argumento de que a lei extrapolava o poder de tributar assegurado ao Congresso Americano8.

Estas e outras decisões, relacionadas à regulação de atividades econômicas e ao poder de tributar do Estado, trouxeram a discussão a respeito dos limites do controle judicial de constitucionalidade das leis para o centro do debate político nas eleições de 1896. E, no calor da disputa presidencial, o Partido Democrata lançou mão, pela primeira vez, daquela que viria a ser principal crítica à jurisdição constitucional: que a Suprema Corte não teria legitimidade democrática para impor limites à atuação do Congresso. Diziam os democratas, com efeito, que o controle de constitucionalidade das leis é antidemocrático e contramajoritário, por permitir ao Judiciário derrubar políticas públicas aprovadas pelo Legislativo, em desrespeito à vontade da maioria. O Partido Democrata, contudo, perdeu as eleições e a Suprema Corte, ao final, saiu-se fortalecida, reafirmando o seu poder de dizer qual seria a interpretação correta das palavras contidas na Constituição9.

Nos anos seguintes, a mais alta corte dos Estados Unidos só fez expandir sua autoridade, declarando a inconstitucionalidade de uma série infindável de atos legislativos. A decisão mais famosa desse período da história constitucional americana é, certamente, aquela proferida em Lochner v. New York, datada de 1905, quando a Suprema Corte firmou orientação no sentido de que lei estadual não poderia limitar a jornada de trabalho dos padeiros a 10 horas por dia, porque isso importaria em ofensa à liberdade de contratar, implícita na cláusula do devido processo legal.10 Em voto divergente, o Justice Oliver Wendell Holmes asseverou que não era o papel do tribunal impedir o andar natural da opinião dominante na sociedade11. Segundo Holmes, a maioria democrática deveria ter o poder de decidir – e muitas vezes errar – a respeito de quais as políticas sociais e econômicas que deveriam ser adotadas pelo Poder Público. O Judiciário, por seu turno, deveria assumir uma postura de maior deferência à vontade popular.12

Calha recordar, aqui, que a Constituição dos Estados Unidos não é analítica e nem dirigente, como a Constituição do Brasil de 198813. Cuida-se de documento enxuto, com apenas sete artigos e vinte e sete emendas. Não há nele um capítulo referente à ordem econômica, mas apenas normas de organização dos poderes e normas definidoras de direitos14. É o que se convencionou chamar de constituição garantia15. Daí o caráter flagrantemente político e até mesmo antidemocrático das decisões proferidas pela Suprema Corte dos Estados Unidos, ao final do século XIX e início do século XX. Eram os juízes da mais alta corte do país, apoiados em suas próprias convicções pessoais e ideológicas, a pretexto de estarem aplicando a Constituição, ditando quais as políticas sociais e econômicas que poderiam ser implementadas pelos poderes Legislativo e Executivo.

Curiosamente, quando chamada a se manifestar na defesa das liberdades civis, a postura da Suprema Corte, naquele período, foi a de deferência aos atos dos demais poderes da República. O exemplo mais marcante, sem sombra de dúvida, é a decisão proferida no caso Plessy v. Ferguson16, datada de 1896, em que o órgão de cúpula do judiciário estadunidense chancelou a prática de segregação racial existente nos Estados Unidos, sobretudo nos estados sulistas, entendendo que as ferrovias poderiam oferecer acomodações em separado para brancos e negros, em seus vagões. Outro exemplo igualmente marcante é o julgado proferido em 1919, no caso Debs v. United States17, em que a Suprema Corte entendeu que o discurso proferido pelo líder socialista Eugene Debs em Canton, Ohio, contra a participação norte-americana na 1ª Guerra Mundial, caracterizava prática criminosa, na forma do Espionage Act de 1917, não estando protegido pela liberdade de expressão consagrada na 1ª Emenda à Constituição de 1787. Não se pode deixar de recordar, por fim, a decisão prolatada no caso Korematsu v. United States18, em que a Suprema Corte, por maioria de votos, confirmou a constitucionalidade de ato do Poder Executivo que havia determinado a imediata remoção de americanos descendentes de japoneses, durante a 2ª Guerra Mundial, para campos de detenção, sem a observância do devido processo legal.

E assim foi até a Grande Depressão, período esse no qual a Suprema Corte negligenciou, por completo, a defesa dos direitos humanos, servindo, unicamente, aos interesses ideológicos prevalentes na época.

Foi necessária uma profunda recessão econômica, iniciada com a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 29 de outubro de 1929, e que se irradiou pelo mundo, para criar as condições necessárias a permitir uma mudança na jurisprudência reinante na Suprema Corte dos EUA.

Com efeito, para vencer a recessão, o Presidente Franklin Roosevelt propôs um plano econômico que ficou conhecido, mundialmente, como o New Deal. O cerne do New Deal envolvia maior intervenção do governo norte-americano na economia, rompendo com uma tradição liberal que já perdurava mais de um século. Ocorre que, entre 1935 e 1936, nas dez principais controvérsias submetidas à Suprema Corte, versando sobre a constitucionalidade do New Deal, o governo federal saiu-se derrotado em oito19. A ideologia predominante no âmbito do mais importante tribunal dos Estados Unidos passou a ser o principal empecilho à recuperação econômica do país. O resultado natural disso foi uma crise institucional sem precedentes, pondo em confronto o Poder Executivo e o Poder Judiciário.

O Presidente Roosevelt, inconformado, apresentou ao Congresso Americano projeto de lei que previa a criação, na Suprema Corte, de um novo cargo para cada juiz com mais de 70 anos e meio. A ideia era permitir-lhe a nomeação de seis novos juízes e, com isso, alterar a orientação prevalente no Tribunal. O Senado Federal – é verdade - rejeitou a proposta apresentada pelo Poder Executivo, por entender que se tratava de um assalto à independência do judiciário. Ainda assim, a pressão política exercida sobre o judiciário foi o suficiente para acarretar a necessária mudança na jurisprudência reinante na Suprema Corte Americana20.

A virada jurisprudencial acontece, mais precisamente, em West Coast Hotel Co. v. Parrush21, em 1937. Ali, a Corte Suprema dos EUA rejeitou a ideia de que a liberdade de contratar teria caráter absoluto e confirmou a constitucionalidade de lei que fixava um salário mínimo no Estado de Washington, admitindo, na forma do voto do Chief Justice Hugues, a validade de restrições à liberdade contratual, desde que voltadas para a proteção do bem estar, da saúde, da segurança ou de grupos vulneráveis.

Como resultado, uma nova orientação pretoriana surgia na Suprema Corte, separando o campo da política da esfera do direito. Caberia à maioria, no campo democrático, pelos seus representantes eleitos, a definição das políticas públicas a serem perseguidas, ficando para o Judiciário um papel mais ativo na tutela dos direitos humanos. Políticas públicas (econômicas e sociais) ficariam a cargo do Executivo e do Legislativo, enquanto a proteção aos direitos das minorias permaneceria a cargo do Judiciário22.

____________

1. SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Judicial review: “O Big Bang”. Disponível em: Judicial review: O "Big Bang" - Migalhas. Acesso em: 26/4/21.

2. Marbury v. Madison, 5 U.S. 137 (1803).

3. SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Judicial review: “O Big Bang”. Disponível em: Judicial review: O "Big Bang" - Migalhas. Acesso em: 26/4/21.

4. SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Judicial review no século XIX: 100 anos (ou quase) de deferência. Disponível em: Judicial review no século XIX: 100 anos (ou quase) de deferência - Migalhas. Acesso: 26/4/21.

5. Dred Scott v. Sandford, 60 U.S. 393 (1857).

6. SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Judicial review no século XIX: 100 anos (ou quase) de deferência. Disponível em: Judicial review no século XIX: 100 anos (ou quase) de deferência - Migalhas. Acesso: 26/4/21.

7. United States v. E.C. Knight Co., 156 U.S. 1 (1895).

8. Pollock v. Farmers' Loan & Trust Co., 157 U.S. 429, aff'd on reh'g, 158 U.S. 601 (1895).

9. Veja-se, sobre o tema: WHITTINGTON. Keith E. Judicial supremacy in the Twentieth Century. In: GRABER, Michael A. & PERHAC, Michael. Marbury versus Madison: documents and commentary, Cq Press, 2002, p. 85.

11. Idem.

12. WHITTINGTON. Keith E., op. cit., p. 109.

13. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, 15ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 42.

14. Adota-se, aqui, a classificação do Ministro Luis Roberto Barroso, o qual divide as normas constitucionais em três categorias, quais sejam: i) normas constitucionais de organização; ii) normas constitucionais definidoras de direitos; e iii) normas constitucionais programáticas. Vale transcrever, pela clareza que lhe é peculiar, a lição do jurista da Escola de Direito Constitucional da UERJ: “tem-se que as normas constitucionais enquadram-se na seguinte tipologia: A. Normas constitucionais que têm por objeto organizar o exercício do poder político: NORMAS CONSTITUCIONAIS DE ORGANIZAÇÃO; B. Normas constitucionais que têm por objeto fixar os direitos fundamentais dos indivíduos: NORMAS CONSTITUCIONAIS DEFINIDORAS DE DIREITO; C. Normas constitucionais que têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado: NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS” (BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 92).

15. MORAES, Alexandre de, op. cit., p. 42.

16. Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896). Como observa Akhil Reed Amar, a Suprema Corte “nem sempre fez papel de herói na saga de reconhecimento dos direitos civis e políticos para os oprimidos. Brown foi precedido de Plessy; e Plessy, por sua vez, abençoou leis estaduais de segregação racial” (AMAR, Akhil Reed. America’s constitution: a biography, New York: Random House, 2006, p. 476) (tradução livre).

17. Debs v. Unites States, 249 U.S. 211 (1919).

18. Korematsu v. United States, 323 U.S. 214 (1944).

19. WHITTINGTON. Keith E., op. cit., p. 116.

20. Sobre o tema, vide: BUSSIERI, Elizabeth.Development of the welfare state. In: CLAYTON, Cornell W. & GILLMAN, Howard. Supreme Court decision-making: new institutionalist approaches, University of Chicago Press, 1999, p. 159. Cass Sunstein, muito embora se contraponha à decisão proferida em Lochner v. New York, sustenta que o referido precedente jamais chegou a ser inteiramente revogado pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Diz o jurista: “A Suprema Corte em Lochner exigia neutralidade governamental e era cética quanto à idéia de intervenção do governo... Se a Era Lochner for entendida menos como representando a idéia de ativismo judicial e mais como uma concepção específica de neutralidade e atitude, então não foi inteiramente revogada. Numerosas decisões modernas refletem essa compreensão. Casos que distinguem direitos “positivos” [direitos que demandam uma prestação positiva do Estado] e direitos “negativos” [direitos que demandam, apenas, um não fazer; uma abstenção estatal] são construídos com base em premissas iguais às do caso Lochner... Muito da jurisprudência em questões de discriminação racial podem ser compreendidas de forma similar... O ataque constitucional às políticas de ação afirmativa, e a própria expressão, sugerem que a distribuição corrente de bônus e ônus [de riquezas] está lá, simplesmente.” SUNSTEIN, Cass R. Lochner’s legacy. In: Columbia Law Review 87, 1987, p. 917/918 (tradução livre). Veja-se, ainda, do mesmo autor: SUNSTEIN, Cass R. Reply-Lochnering. In: Texas Law Review 82, 2003, p. 65.

21. West Coast Hotel Co. v. Parrush, 300 U.S. 379 (1937).

22. KRAMER, Larry D. The People themselves: popular constitutionalism and judicial review, New York: Oxford University Press, 2004, p. 220.

Gustavo da Rocha Schmidt
Professor da FGV Direito Rio e Presidente do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.

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