Conforme plasmado pelo art. 617 do Código de Processo Penal, “o tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença”.
Trata-se de princípio inerente à teoria geral dos recursos, denominado proibição da reformatio in pejus que, nas palavras de André Nicolitti (2020, p. 1101) vem a ser “a diferença para pior entre a decisão da qual a defesa recorre e a decisão que a substitui em razão do recurso”.
Conquanto tenha a apelação efeito devolutivo pleno (tantum appellatum quantum devolutum) a razão de ser do princípio em voga, foi brilhantemente sintetizada por Hélio Tornaghi (1990, p. 338) que ao questionar se deveria se admitir a possibilidade de reforma para pior em desfavor da parte apelou, trouxe ao arremate que: a) o inocente, injustiçado por uma sentença condenatória, poderia renunciar à apelação, ou melhor um novo processo; b) a apelação voltaria ao tempo em que propiciava a completa restauração do processo, ou melhor, um novo processo; c) agravando a situação do apelante, sem que a outra parte houvesse recorrido, o tribunal estaria agindo de ofício; d) a apelação se converteria numa caixa de surpresas (ainda maior do que já é...).
É oportuno sublinhar ainda, que a proibição da reformatio in pejus cinge-se em duas vertentes, quais sejam; a direta e a indireta.
A direta, remonta à exegese normativa do art. 617 do CPP, porquanto é vedado ao Tribunal o agravamento da situação jurídica do imputado em caso de recurso exclusivo da defesa. À guisa de elucidação, imagine-se que determinado réu foi condenado por furto simples (art. 155, caput do CP) à uma pena de 01 (um) ano de reclusão. Irresignado, interpõe recurso de apelação, ao passo que o Ministério Público queda-se inerte. Nesta situação, não pode o Tribunal quando do julgamento do apelo, exasperar a pena aplicada pelo juízo sentenciante.
Já a proibição da reformatio in pejus indireta, incide nos casos em que o Tribunal ao julgar o recurso manejado pelo réu, anula a sentença de primeiro grau, remetendo os autos à origem para que outra decisão seja proferida.
Visualizando a questão posta, basta pensar na hipótese de réu condenado por crime diverso daquele constante na denúncia. Veja-se: determinado sujeito é processado por crime contra a Administração Ambiental (arts. 66 e seguintes da lei 9.605/98). No ato sentencial, o juiz absolve o réu do crime imputado na exordial acusatória, todavia, vislumbra o cometimento de crime contra a Administração Pública (arts. 312 e seguintes do CP) e por ele o condena.
Há aqui, clara violação ao princípio da congruência, posto que a sentença penal é uma decisãoextra petita. É pois, uma sentença nula.
Inconformados com o provimento jurisdicional, Ministério Público e acusado recorrem. O primeiro, busca a condenação do réu no crime descrito na denúncia, o segundo, busca a anulação da sentença por ser manifestamente incongruente.
Neste flanco, volta-se a indagação que nomeia o presente ensaio: se provido o apelo defensivo (anulando-se a sentença incongruente e remetendo os autos ao juízo de origem para decisão ulterior) declarando ainda, como prejudicado o recurso ministerial, poderia a situação jurídica do imputado ser piorada?
Dito de outra forma: o Ministério Público, poderia se beneficiar do provimento de um recurso defensivo?
A doutrina clássica, capitaneada por Grinover, Gomes Filho e Scarance Fernandes (1998, p. 46) entendem que sim, pois segundo os autores (contrários à tese da reformatio in pejus indireta, é bom que se diga): “tecnicamente não parece correta a posição, ante a falta de texto expresso. Para que a reformatio in pejus se verifique, deve haver diferença para pior entre a decisão recorrida e a decisão do recurso. Sob o ponto de vista prático, a aplicação da tese pode levar a resultados aberrantes: à decisão anulada, proferida por exemplo, por juiz incompetente, suspeito ou impedido, conferir-se-ia a força de impedir que o verdadeiro julgador possa solucionar a controvérsia legalmente e com justiça. E, em qualquer caso, haverá sempre a anomalia de se reconhecer a influência de uma sentença nula sobre a válida”.
O mesmo entendimento é perfilhado por Mirabete (2004, p. 714), para quem "não há falar-se em reformatio in pejus na decisão mais gravosa para o réu se, havendo apelado o Ministério Público, ficou prejudicado seu recurso em razão de provimento daquele interposto pelo réu quanto à questão preliminar. Isso porque a sentença não transitou em julgado para a acusação e, se apreciado o seu apelo, a situação do condenado poderia ter sido agravada."
Com efeito, Denilson Feitoza (2008, p. 921) apregoa que “se o Ministério Público também interpôs recurso pleiteando a anulação não haverá impedimento de que a pena posterior seja agravada”.
A jurisprudência parece caminhar de igual modo, conforme se verifica do disposto nos seguintes excertos “Não há que se falar em reformatio in pejus e, portanto, em decisão mais gravosa ao réu se, havendo apelado o Ministério Público, ficou prejudicado seu recurso em razão de provimento do recurso interposto pelo réu quanto à questão preliminar”. (TJMG - Emb Infring e de Nulidade 1.0024.15.045757-0/003, Relator(a): Des.(a) Kárin Emmerich , 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 02/03/21, publicação da súmula em 10/03/21); Descabe falar na incidência do disposto no artigo 617 do Código de Processo Penal quando, contra a sentença, deu-se a interposição, também, de recurso pela acusação e que restou declarado prejudicado em face do acolhimento de incompetência articulada pela defesa. Remetidos os autos ao Juízo competente, atuará este sem limite quanto à apenação” (RHC 72175, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 28/04/99, DJ 18-08-2000 PP-00097 EMENT VOL-02000-01 PP-00121); Não há falar-se em reformatio in pejus na decisão mais gravosa para o acusado se, havendo apelado o Ministério Público, ficou prejudicado seu recurso em razão de provimento daquele interposto pelo réu quanto à questão preliminar” (HC 371.739/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 6/12/16, DJe 2/2/17) – grifos nosso.
Vênia concessa, ousamos divergir.
Primeiramente, sabe-se que a proibição da reformatio in pejus deriva do axioma regente intitulado favor rei, de modo que com Rogério Schietti Cruz (2013, p. 95) relembramos que “o favor rei também funciona como um princípio inspirador da interpretação, em razão do que a decisão judicial deverá pender para a solução mais benigna sempre que o julgador não lograr identificar, com certeza, a vontade da lei”.
A inexistência de previsão legal da proibição da reformatio in pejus indireta nunca foi óbice ao seu acolhimento (vide jurisprudência remansosa dos Tribunais Superiores) e sua gênese transcende a existência ou não de recurso apresentado por parte do órgão acusador.
Temos que, a vedação da reforma para pior, está intrinsicamente ligado à impossibilidade do réu ser prejudicado pelo provimento de um recurso interposto e provido em seu favor.
Lembremo-nos o que avivamos há algumas linhas com Hélio Tornaghi: a vingar a tese arguida pelos Tribunais Pátrios, o réu, injustiçado por uma sentença nula, irá renunciar seu direito ao recurso, haja vista a patente possibilidade de ter sua reprimenda majorada. E mais, a apelação seria deveras uma caixinha de surpresas... indigestas ao réu, certamente.
Haveria ainda, clara violação ao princípio da segurança jurídica (art. 5º, inciso XXXVI, CR/88), pois como conviver de forma harmoniosa em um sistema que chancela a possibilidade de condenação e/ou majoração da reprimenda em caso de um recurso manejado pelo réu e que foi ao fim e ao cabo provido?
Estar-se-ia a tergiversar todo o arcabouço de direitos e garantias fundamentais, máxime àquelas atinentes a contenção de poder estatal e à dignidade da pessoa humana.
Demais disso, oportuno rememorar ainda que, respeitável parcela da doutrina visualiza o direito ao recurso no processo penal como sendo uma garantia do imputado.
Tal entendimento, consubstancia-se na interpretação de normas supralegais (bloco de constitucionalidade), mormente os Decretos 678/92 (Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica) e 592/92 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).
Nas palavras de Geraldo Prado (2001, p. 115-116) “se ela (a acusação) não chegar a ter sucesso em sua pretensão não lhe resta mais nada, e efetivamente se consolida a absolvição nesse plano. Caso seja vencedora, ao condenado se assegurará o direito à revisão da decisão, pois este é o princípio do duplo grau de jurisdição em sua dimensão substancial.”
No mesmo caminhar é o escólio de Gabriela Jugo (2002, p. 285, apud GLOECKNER, 2014, p. 190) para quem “neste ponto, fica evidente a disparidade de finalidades do ‘recurso’ tradicionalmente estudado pela doutrina nacional e o conceito de ‘recurso’ concebido como garantia da pessoa submetida a ação penal” – tradução nossa.
Julio Maier (1996, p. 83), por seu turno sustenta a vedação de recurso da acusação contra a absolvição, propondo que a dupla conformidade (doble conformidade) exige que, para a aplicação da pena, sejam necessárias duas condenações (primeiro e segundo graus), de modo que a sentença penal condenatória, se submeteria à uma espécie de recurso de ofício para o Tribunal.
Tiago Bunning Mendes, no que lhe concerne aduz que (2018, p. 210) “o duplo grau de jurisdição tem conteúdo protetivo como garantia fundamental destinada exclusivamente ao imputado. Tudo isso amparado em um somatório de fatores demonstrados que incluem a inexistência de fundamentos para que se reconheça um direito ao recurso ao acusador; a literalidade dos tratados internacionais de direitos humanos; os fundamentos do duplo grau de jurisdição (dupla conformidade em matéria penal e presunção de inocência); a proibição da múltipla persecução penal (ampla interpretação do ne bis in idem) e as categorias de legitimidade e interesse recursal”.
Ora, em sendo anulada uma sentença pelo Tribunal em apelo que acolheu preliminar de nulidade suscitada pela defesa e que julgou como prejudicado o recurso interposto pelo Ministério Público, indubitável que incide in casu, a proibição da reformatio in pejus.
Vale dizer, não pode o Ministério Público ser beneficiado por um recurso acolhido pela defesa, de modo que é defeso ao magistrado o agravamento à situação jurídica do réu.
Os julgados supracitados são, data máxima vênia, verdadeiras contradições em termos.
Afrontam contra a vedação double jeopardy, que como verberado por Rogério Schietti Cruz (2013, p. 27) é a regra do direito anglo-saxão, onde, para não pôr o acusado em duplo risco de ser condenado (double jeopardy), costuma-se restringir ou vedar o recurso da acusação”.
Há a considerar, ainda, um outro aspecto impregnado de extremo relevo jurídico, qual seja a prejudicialidade do recurso interposto pelo Ministério Público.
Convém neste ponto, alinhavar que o recurso prejudicado, consoante ensinamentos de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (2015, p. 1851) “é aquele que perdeu seu objeto. Ocorrendo a perda do objeto, há falta superveniente de interesse recursal, impondo-se o não conhecimento do recurso por ausência de requisito de admissibilidade”.
Em suma, a prejudicialidade deságua no não conhecimento do recurso, e aqui, permita-nos repisar o óbvio: não conhecido o recurso, a decisão outrora vergastada mantém-se indene, de modo que seu conteúdo será para todos os fins, plenamente eficaz.
Outrossim, sabendo-se que a sentença pode ser dividida em capítulos distintos e estanques, na medida em que, à cada parte do pedido inicial, atribui-se um capítulo correspondente na decisão STJ - REsp 203.132/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 25/3/03, DJ 28/4/03, p. 202), chega-se a premente conclusão de que “quanto a extensão da nulidade na sentença em decorrência da violação da regra da correlação, há que se analisar caso a caso, pois nem sempre a nulidade será total” (LOPES JÚNIOR, 2021, p. 1005).
Revela-se, portanto, de bom alvitre destacar decisão proferida pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que modo didático apregoou que “assim, a nulidade da sentença, por julgamento extra petita, deve ser apenas parcial, limitada à parte contaminada, mormente porque tal vício não guarda, e nem interfere, na rejeição das demais postulações, que não foram objeto de recurso pela parte interessada” (STJ - REsp: 203132 SP 1999/0009526-0, Relator: Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Data de Julgamento: 25/03/03, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação DJ 28/4/03, p. 202).
Disto decorre outra constatação de ordem processual: para que não se cogite da vedação da reformatio in pejus indireta, deve o Ministério Público recorrer da decisão que julgou o seu recurso como prejudicado, do contrário, não há que se falar em inexistência de trânsito em julgado para à acusação.
Voltando ao questionamento que serviu de norte para o presente ensaio, temos em síntese que: 1) a ausência de previsão legal da proibição da reformatio in pejus indireta de há muito fora superada, não há, pois, óbice ao seu acolhimento; 2) a gênese da vedação da reforma para pior transcende a existência ou não de recurso manejado por parte do órgão acusador; 3) o réu não pode ser prejudicado (mesmo que por via indireta) pelo provimento de um recurso interposto por ele; 4) em um sistema de cariz democrático é insustentável que se defenda a possibilidade de condenação e/ou majoração da reprimenda em caso de um recurso manejado pelo réu e que foi acolhido pelo Tribunal, o que, aliás, violaria o princípio da segurança jurídica (art. 5º inciso XXXVI, CR/88) ; 5) o direito ao recurso no processo penal é uma garantia do imputado (Maier; Prado; Mendes), não há que se cogitar em ônus ao exercício de um direito; 6) a prejudicialidade do recurso interposto pelo Ministério Público é sinônimo de não conhecimento, logo, a decisão impugnada mantém-se indene, não há que se falar em inexistência de transito em julgado para a acusação.
Seriam essas nossas conclusões, salvo melhor juízo.
___________
CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias processuais nos recursos criminais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Direito fundamental ao recurso no processo penal: uma crítica à concepção bilateral da impugnação. Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 11, Curitiba, 2014.
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; SCARANCE FERNANDES, Antonio. Recursos no processo penal: teoria geral dos recursos, recursos em espécie, ações de impugnação: habeas corpus, revisão criminal, mandado de segurança contra ato jurisdicional penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 18.ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
MAIER, Julio B. J. Recurso acusatório contra la sentencia de los tribunales de juicio y múltiple persecución penal: ¿ un caso de ne bis in idem? Revista Uruguaya de Derecho Procesal, Montevideo, n. 2, 1999.
MENDES, Tiago Bunning. Direito ao recurso no processo penal: o duplo grau de jurisdição como garantia exclusiva do imputado. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, PUCRS, 2018.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código de processo civil comentado. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
NICOLITTI, André. Manual de Processo Penal. 10. ed. Belo Horizonte: Editora D' Plácido, 2020.
PACHECO, Denílson Feitosa. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis; 5. ed. rev. e atual. Niterói: Impetus, 2008.
PRADO, Geraldo. Duplo grau de jurisdição no processo penal brasileiro: homenagem as ideias de Julio B. Maier. In: BONATO, Gilson. Direito Penal e Direito Processual Penal uma visão garantista. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001.
TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.