A reportagem publicada pelo jornal Estadão no início do mês - que dá conta do mercado paralelo de oferta de vacinas durante a pandemia - nos remete ao questionamento que este breve ensaio se propõe a responder: quais parâmetros devem ser observados para responsabilização de gestores públicos durante a pandemia?
Segundo a citada reportagem, 90% dos municípios do estado de Santa Catarina tentaram adquirir a vacina denominada Sputnik V, de uma empresa búlgara, por um valor inferior àquele praticado pelo Governo Federal. A vacina, no entanto, não possuía registro da ANVISA à época das negociações; e a empresa búlgara não tinha aval do laboratório russo responsável pelo respectivo imunizante.
É sabido que os gastos públicos no combate à pandemia estão sendo cuidadosamente analisados pelos órgãos de controle, e o futuro ainda se apresenta com uma gama de possibilidades jurídicas. No dia 15.4.21, por exemplo, o juízo de primeiro grau do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) decretou cautelarmente o bloqueio de bens, no valor de R$ 76.413,70, de um prefeito que furou a fila da vacinação, por entender que ele havia incorrido na prática de improbidade administrativa por violação aos princípios (art. 11 da lei 8.429/92).
As situações que serão analisadas por este ensaio, por suas vezes, sujeitam os gestores à responsabilização civil, penal e administrativa. Estudaremos apenas a última. São as situações de: i) aquisição de vacinas; e ii) aquisição de medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da covid-19.
Apesar de a União Federal estar capitaneando o processo de aquisição de vacinas, os municípios continuam negociando aquisições paralelas – e, por vezes, clandestinas, conforme noticiado pela reportagem citada. Quanto à aquisição de medicamentos, não faltam notícias sobre a compra, por vezes amparada em leis municipais, de coquetéis médicos comprovadamente ineficazes no tratamento da doença que pretendem combater.
Sabe-se que, após a alteração na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) pela lei 13.655/18, os gestores públicos passaram a responder pelos seus atos em caso de dolo ou erro grosseiro (art. 28). A análise sobre regularidade das condutas, ainda, deve ser precedida da consideração de circunstâncias práticas impostas, limites ou condições a ação do agente (art. 22, parágrafo único), bem como dos obstáculos, das dificuldades reais do gestor e das exigências das políticas públicas ao cargo dos gestores (art. 22, caput).
Pedro de Hollanda Dionísio, em obra intitulada “O direito ao erro do Administrador Público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros”, propõe uma metodologia de análise para operacionalizar o sistema de responsabilização administrativa instituído pela LINDB. Segundo o autor, há quatro parâmetros para aferição da tolerabilidade jurídica dos erros cometidos pelos administradores públicos, quais sejam: i) diligência do gestor; ii) exigências técnicas do cargo ocupado; iii) nível de incerteza fática e jurídica envolvidas na análise da decisão; iv) o grau de aderência da decisão às informações reunidas.1
Ambas as situações analisadas podem ser consideradas como i) urgentes – o que, em princípio, reduz o nível de diligência envolvido na tomada de decisão;2 e, por outro lado, ii) relevantes – situação que aumenta o nível de diligência exigido.3
A análise sobre o nível de diligência dos gestores, ainda, passa pela consideração sobre a existência de obstáculos materiais à obtenção de informações relevantes para decisão.4
Neste caso, considerando a relevância da decisão, que, se equivocada, poderá resultada na morte de dezenas, centenas ou milhares de pessoas, a tolerabilidade dos erros cometidos, a nosso ver, demanda que o gestor aja com elevado nível de diligência.
Além disso, as únicas situações urgentes que possibilitam o aumento quanto ao grau de tolerabilidade jurídica ao erro do gestor são aquelas incertas e imprevisíveis. Isto porque, como anota Pedro de Hollanda Dionísio, muitas vezes as urgências são “fabricadas”, pois decorrem de uma falta de planejamento culposa ou dolosa dos gestores.5
Por sua vez, o significativo volume de notícias falsas sobre o tema dos tratamentos e vacinas – oriundo do polarizado processo de politização havido sobre o tema - deve ser considerado como um “obstáculo à obtenção de informações”, aumentando a “incerteza fática” sobre o tema.
No entanto, novamente prepondera o requisito da relevância da decisão – pois, frisa-se, poderá resultar em inúmeras mortes, se equivocada –, impondo-se a necessidade de pesquisa sobre a cientificidade das informações que embasarão a tomada de decisões dos gestores. A Medicina Baseada em Evidências (BEM)6 deve preponderar, nestes casos, por exigência do art. 3º, §1º da lei 13.979/207 e do art. 20 da LINDB.8
A consideração das exigências dos cargos ocupados, por seu turno, perpassa pela análise da participação das secretarias e órgãos especializados no processo de aquisição. Isto implica que, caso um gestor ignore um parecer técnico ou jurídico sobre a questão, deve fazê-lo motivadamente, sob pena de redução da tolerabilidade jurídica de suas decisões.9
O Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR), quando do julgamento do Acórdão 338/21, multou pessoalmente um prefeito e a sua secretária municipal de saúde por valores gastos com o vulgo “tratamento precoce”, inscrevendo esta última no rol de gestores com contas irregulares, justamente em razão da comprovada ineficácia do medicamento para enfrentamento da covid-19.
Na aquisição de vacinas, por exemplo, caso os gestores as adquirissem na circunstância denunciada pelo Estadão na matéria citada no início do artigo – ou seja, se adquirissem as vacinas sem registro da ANVISA e de revendedor não credenciado – poderiam responder por ato de improbidade administrativa culposo por violação aos princípios da administração.
Isto porque, a ausência de verificação quanto ao credenciamento da vacina adquirida e do revendedor com o qual se está negociando nos órgãos reguladores competentes representa equívoco que pode ser evitado por pessoa com diligência abaixo do normal, considerando que basta uma pesquisa simples para evitá-lo.
Distodecorre que tal situação se enquadra no conceito de erro grosseiro,estabelecido pelo Tribunal de Contas da União (TCU),quando do julgamento do Acórdão 2.391/18, possibilitando a responsabilização pessoal ao gestor público que lhe deu causa.
Em um entendimento mais elastecido, ao qual não nos filiamos, pode-se enquadrar a conduta descrita acima como ato de improbidade administrativa por lesão ao erário (art. 10 da lei 8.429/92), uma vez que por omissão ou ação culposa se adquiriu um produto que não poderá ser utilizado para o fim pretendido, em razão da ausência de autorização exigida dos órgãos competentes.
É inegável (ao menos para aqueles que raciocinam) que a atual situação sanitária do país é gravíssima. Após mais de um ano de pandemia, não há como alegar “urgência da situação” para justificar atropelos e equívocos. A atuação do poder público, neste caso, não pode se dar de maneira irresponsável e inconsequente, pois o que está em jogo é a vida da população.
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1 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 116.
2 “[Q]uanto mais imediata é a solução requisitada da Administração Pública, menor é o nível de diligência a ser exigido do gestor no caso concreto. (...)”. DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 134-135.
3 “[Q]uanto maior a relevância da escolha a ser feita pelo administrador, maior também deve ser o nível de diligência dele exigido e, portanto, menor o espaço de tolerância a erros”. DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 138.
4 [A] existência de obstáculos materiais à obtenção de informações relevantes tem o condão de reduzir o grau de diligência exigido do gestor e, por consequência, ampliar o espaço de tolerância ao cometimento de equívocos decisórios”. DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 141.
5 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 136.
6 LOPES, Antônio A. Medicina Baseada em Evidências: a arte de aplicar o conhecimento científico na prática clínica. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 46, n. 3, p. 285-288, 2000.
7 Art. 3º (...) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.
8 Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
9 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019, p. 152.