Migalhas de Peso

Sobre os decretos de armas de fogo – cismas ou ilegalidades

O STF julgará os decretos que explicitam o Estatuto do Desarmamento. Ativistas de uma paz de ocasião e uma imprensa ácida mantêm guerra ao tema. Mas juridicamente o assunto é técnico e complexo.

23/4/2021

Pequenos Fundamentos

Arma de fogo é igual a cachorro pitbull. Muita gente ‘quer’ que sejam, ambos, coisas assassinas por si sós. Mas, teimosias humanas e deficiências intelectivas devem ser respeitadas, afinal existem desde que o primeiro primata amarrou uma gravata no pescoço.

É bom ver cães pitbulls ou rottweilers com bebês, seus carinhos e dedicações. O Youtube está cheio de exemplos, mas muito raro no Brasil. Por aqui, moralistas querem focinheiras até nos donos. A sociedade brasileira está piorando em pieguice e caretice.

Ver a arma de fogo como equipamento demonizado também não é exclusividade do Brasil. Nos Estados Unidos há uma parcela autoritária da imprensa que pensa igual, conforme mostra, dentre tantos, o economista PhD John Lott, em seu metódico e estatístico livro1. Mas quem quer estatísticas, números e ciência quando se pode julgar? Coubert tinha um amigo que acordava à noite gritando: ‘Julgar, eu quero julgar!’, conta Christian Delacampagne2, comentando a sanha humana que é esta volição.

Sobre uma tal ‘política armamentista’ em discussão neste cloroquínico Brasil dos últimos anos, admita-se certo provincianismo com a coisa. A ideia de que armado, o povo, com alguns revólveres calibre 32, ou coisa parecida, não seria subjugado por uma ditadura, é um panfleto ideológico bem tosco. A cisma psicanalítica de se ver ameaças comunistas nas esquinas de Copacabana ou nos cruzamentos da Avenida Paulista é de um estapafurdismo paralisante do diálogo.

Alguns dos lados ideológicos, pró e contra, deste armamentismo tardio, ficam numa espécie de delírio sociológico. Um destes lados, achando que pistolas 7.65 – ou 45, é a mesma coisa- poderiam proteger um povo de uma ditadura, teorização patética demais para ser discutida. O outro lado, surfam cult-descolado numa espécie de romantismo save-the-planet teorético – hábil em esconder autoritarismos-, ao qual armas poderiam simplesmente sumir, desaparecer por um estatuto qualquer, numa sociedade. São aquelas cenas histriônicas de tratores fingindo que destroem armas. Sim, ainda por cima tudo isso neste sul-americano Brazuca com 62 mil homicídios por ano. Imaginam que com o tal fim mágico das armas acabariam as mortes e todos seriam felizes-para-sempre. São as estupidezes se digladiando.

Será que números mentem? Pelo jeito dos argumentos que invocam a ‘paz’, no Brasil, provavelmente mentem. Mas vamos a eles. Os EUA têm uma população de 328 milhões de habitantes, possuem 300 milhões de armas e têm como média de homicídios/ano 10 mil mortes. Já o Brasil, com população muito menor, apenas 209 milhões de pessoas, possuindo 600 mil3 armas – o que dá ínfimos 0,2% de armas dos EUA, tem um número de homicídios, por ano, absurdo, na casa estratosférica de 60 mil. E isso em plena vigência de um mondrongo Estatuto do Desarmamento (ED), esta estelionatária lei 10.826/03.

Afora diversas conclusões tiráveis daí, uma é importante. O ED, que agora precisa ser histericamente defendido da ‘violência’ dos decretos, não adiantou nada em termos de o que queria. Não desarmou o crime, muito menos o crime organizado. Não conseguiu afetar absolutamente nada em termos de números de homicídios em quase 2 décadas e se mostrou uma falência legiferante total. A parte pacificadora, educadora, benéfica, esperancística do ED que caberia reduzir homicídios simplesmente não existe. São mais de 60 mil por ano. E aqui uma observação metodológica primária: não se pode imaginar que a finalidade do ED teria sido desarmar o cidadão correto que não comete, jamais, homicídios, principalmente quando se conta, no país, com um crime organizado infinitamente mais inteligente do que as polícias, bastando ver o crescimento dele.

Aí, com quase 20 anos de atraso vêm os decretos ao ED para se lhes explicar juridicamente conceitos e detalhes internos, exigência normal de qualquer preceito normativo primário que assim o demande. Mas ora que surge, por detrás da moita e à espreita, uma imprensa autoritária, aliada a institutos preocupadíssimos com um civismo pacificador. Ambos buscarão ‘retirar’ a ordinariedade regulamentadora que seriam os decretos, atos executivos que meramente explicitam uma lei. Sim, a meta é transformar os decretos em verdadeiros demônios regulamentadores das armas que vão atacar a família brasileira. Não é à toa que um secular Nietzsche4 já disparava sobre o mundo: ‘Nada é mais raro entre moralistas e santos do que a retidão’.

Decretos de armas, como qualquer decreto, tipologizados em naturezas jurídicas próprias, visam a outorgar legitimidade a funcionalidades; aferir extensão eficacial fática; conceber potências normativas explicitadas; e precisamente operar o desdobramento de forma ou de fundo acerca de conceitos jurídicos. Por que tanta opinião pública, agora, sobre o tema? Ou será ‘opinião publicada’, como dizia um insuperável José Carlos Barbosa Moreira5, o grande processualista que ensinava que a imprensa tem suas ‘iras especiais por linchamentos de certos réus’. Fica claro que as armas de fogo passaram a ser um destes ‘réus’ da atualidade que não se quer julgar, apenas linchar por antecipação.

Desde quando decretos regulamentadores passaram a ser notícia? Se o tema em si – armas de fogo- importa socialmente, isto não tem poder para transformar xingamentos de ‘inconstitucional’ aos decretos, usados por qualquer um, em jurídica e verdadeira inconstitucionalidade. Mesmo que a grande imprensa concertada assim o queira e incentive. O leigo poderá se sensibilizar, ou crer. Mas o Direito não. Se a magistrada Rosa Weber se sentiu pressionada por esta onda modernosa desarmamentista é situação particular dela, registrando-se que ela demonstrou equilíbrio jurisdicional ao afetar a matéria para o plenário.

Como algum ‘fundamento’ ainda, o desarmamento, em épocas de decretos, se tornou um ícone midiático. Mas ele poderia, em apenas um detalhe, ser comparado à famosa Guerra das Drogas – pensamento monolítico, político e policial norte-americano que continua a consumir bilhões de dólares e só produziu uma certeza: a droga nunca deixou de existir; parece que não deixará; e agora é aferida em toneladas e contêineres.

O Estatuto do Desarmamento além de ter falhado nestas duas décadas, é um exemplo histórico de errância conceptiva no próprio nome da lei, nunca desarmou nada, muito menos a bandidagem. Não se vai dizer que o ED tenha ‘contribuído’ para a criação deste Novo Crime Organizado brasileiro, um fantasma social da atualidade que sucessivos governos, de todos os níveis, não souberam extinguir, mas o ED conseguiu inibir zero por cento o sucesso desta nova criminalidade, com as armas que ela bem entende e imagina, inclusive verdadeiramente militares, às centenas, aos milhares. O espetacular – e antigo- documentário de Kátia Lund e João Moreira Sales, Notícias de uma Guerra Particular, de 1999, já mostrava garotos de 12 anos de idade, nos morros cariocas com fuzis de exércitos estrangeiros na mão, ‘muito bem obrigado’. E o que o Estado fez nestes 20 anos deste tal ‘Estatuto de Desarmamento’? Quem responder ‘nada’ estará errando. O Estado não teve inteligência policial e política para desarmar o crime. E continuará a não ter.

A bravata patética do ED mirou o crime, sonhando que o desarmaria, que o desmantelaria, e, ao invés disso acabou beneficiando-o; desarmou somente os crédulos da população num ‘felizes-para-sempre’ e nunca, jamais o criminoso. Não há nesta antítese nenhum brado armamentista, apenas uma triste verificação histórica irrefutável de um famélico Estatuto do Desarmamento que, joga no lixo teorias acerca de sua funcionalidade finalística, de sua presteza, de seu suposto cuidado para com a sociedade. Nada disso o ED conseguir ser, ou otimizar, muito menos frear o absurdo de 60 mil homicídios por ano.

Inicialmente, os primeiros decretos sobre o ED, saídos há pouco mais de um ano, sofreram uma escandalosa ‘derrota’, talvez até mais política do que jurídica. De toda sorte, nunca se soube ao certo – e agora com Sergio Moro desinventado, menos ainda-, se aquilo foi manobra volitiva maquiavélica, ou se foi apenas incompetência jurídica do ministro ou outro serviçal do Governo.

O histórico fático necessário e indispensável para uma análise avaliativa no plano jurídico de um decreto explicitador do ED, um tema sensível, deve levar em consideração um mínimo da dados críticos e sob um mínimo de contraditório verdadeiro – técnico- para que se componha propriamente como padrão historiográfico. Por seu turno, o magistrado do Supremo encarregado de analisar possível ilegalidade deste regulamento, terá que, inexoravelmente, inteirar-se deste referido histórico fático, sob pena de julgar ao sabor de uma simpatia pessoal ou medo psicanalítico, de alguma influência poderosa midiática, ou de alguma gritaria eficiente e ideologicamente afinada, ou mancomunada, entre si, seja para um lado ou para outro.

O Supremo Tribunal Federal, ao contrário de o que se passou a dizer nalguns botequins do ‘conhecimento’, por ‘analistas’ que vivem de implorar likes, sininhos e seguidores – as novas moedas do capitalismo youtubiano-, não é nem nunca foi um balcão de politiquismos devassos como se passou a sugerir. O julgamento dos decretos de armas exigirá hermenêuticas e fundamentos metodológicos próprios para esta atividade jurisdicional, verificadora do desdobro regulamentar que um decreto deve corretamente causar e representar em relação à lei, como anteparo legitimador aos votos, e, fiscalizáveis, normalmente por qualquer estudioso do Direito Constitucional.

Sobre o conceito de ‘decreto’ e o caso em si

Muitos ‘querem’, cheios de certezas, que os decretos das armas sejam inconstitucionalidades gritantes. Mas será que o defeito seria inconstitucionalidade? Seriam tão gritantes assim? Pois é, se as ciências exatas explicam, as humanas compreendem. E compreender é algo às vezes construído demoradamente.

Léon Duguit6 ensina que decreto é um nome genérico que serve para qualificar todo ato escrito do presidente da República. Pode-se ainda incluir no conceito, conforme Pinto Ferreira7, o fato de conter uma determinação ou um comando. Assim, dois motes: escritura, enquanto competência, e comando.

Estas concepções propositadamente genéricas têm valia para além de uma principiologia meramente conceitual, no sentido de recepcionar epistemologicamente certa presunção de legalidade. Ao presidente, é-se-lhe natural o decreto, sendo extraordinária a exorbitância na regulamentação. Para esta é que há de se buscar, excepcionalmente, uma verificação das extensões metodológicas de o que se regulou para se lhes chancelar episódica errância jurídica.

A literatura constitucional, com limites científicos, é pródiga no tratamento do decreto.

O tema da discussão acerca da validade, constitucionalidade, legalidade, eficácia, ou mesmo possibilidade fática sobre a existência de um decreto, relativamente a uma lei, atrai institutos complexivos do Direito Constitucional e diferenças às vezes difíceis ou graves como 1) competência atribuída a Poder, e função (capacidade-dever) que o Poder tem para a prática de um ato, sendo a função regulamentar atribuída exclusivamente a chefe do Executivo – qualquer um dos entes federativos; 2) ato normativo da Administração e regulamento; 3) regulamento de primeiro grau e regulamento de segundo grau; 4) função reguladora, como atividade de gerenciamento, e função regulamentar, de edição de preceitos; 5) regulamentos autônomos (Agra8 ensina inexistirem decretos autônomos com força de lei; Barroso9 consigna a terminologia para decretos estaduais) e regulamentos independentes, que desdobram preceitos constitucionais, e regulamentos de execução e regulamentos delegados, que desdobram preceitos normativos primários – leis complementares e ordinárias. Estes e outros institutos veem-se na mais importante obra de Direito Constitucional brasileiro da atualidade10.

Ainda, no caso atual dos decretos das armas ouve-se dizer que decretos não poderiam, jamais, criar direitos, só leis o poderiam. Querem, os tiranos nominais da paz, que decretos meramente repitam o que a lei normatiza. Nada mais inexato. Em diversos países da civil law, dentre eles o Brasil, qualquer ato normativo pode criar direitos e obrigações, como ensina José Carlos Francisco, in Comentários à constituição do Brasil, cit. p. 1310.

Celso de Mello, ainda, em precisa decisão11, mostra duas observações balizares importantes no estudo do decreto, que parece que muitos estão ignorando no caso presente. Primeiro, que qualquer divergência do decreto em relação à lei, para mais, menos, contra ou lateralizante será ‘crise de legalidade’, e não de inconstitucionalidade. Segundo, qualifica a divergência como ‘insubordinação executiva aos comandos da lei’, feliz expressão que pode ser contextualizada para se compreender – como ferramenta de interpretação- a extensão jurídica operada pelo chefe do Executivo no desdobramento de uma dada lei. Na mesma linha está Luís Roberto Barroso, op. cit., ensinando que “os atos normativos secundários, como decretos regulamentares ... por estarem subordinados à lei, não são suscetíveis de controle em ação direta de inconstitucionalidade.’ Ressalva Barroso os decretos que inovem autonomamente atuando com força de lei, neste caso podendo ser passíveis de controle abstrato, para se verificar eventual violação ao princípio da reserva legal.

Efetivamente não é o caso dos decretos das armas que explicitaram o Estatuto do Desarmamento. A aberração social que alguns ‘querem’ ver com, por exemplo, número de munições ou de armas que alguém pode ter é fator epistemologicamente desdobrativo da lei, haja vista que a tença ou posse efetiva de armas é permitida no ED.

Por outro lado – e isso preocupa por possível errância processual- nota-se que as diversas ações judiciais contra os decretos ajuizadas no STF visam à declaração de inconstitucionalidade, pois, ADIs. Apostam elas numa cartada estreita e tênue de que os decretos possam ter tido a esdruxularia de inovarem autonomamente, o que é um caminho jurídico muito mais árduo – a inconstitucionalidade- do que uma mera discussão de ilegalidade. Ainda que o epíteto ‘inconstitucionalidade’ seja mais panfletário e histriônico para o leigo. Entretanto, a análise acerca de um decreto poderá ser bifronte, em ilegalidade potencial relativamente à lei que visa a desdobrar, se lhe exorbitar em dimensão explicitatória; ou em inconstitucionalidade se a episteme violadora se der em relação à própria Constituição da República em seu poder regulamentar. Este último é precisamente o caso explicitado por Francisco Rezek12 que considerava, relativamente a um caso concreto: ‘o decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige’.

Surge outra observação para os decretos das armas, de 2021, decidido inicialmente por Rosa Weber: a rigor, o caso concreto sugere que suposta violação não seria no tocante à esfera constitucional, mas de legalidade ou ilegalidade. O problema estaria circunscrito a uma potencial extensão interpretatória defeituosa então empreendida pelo presidente da República acerca do ED.

Por seu turno, todo decreto atrairá inferências axiológicas e, no mínimo, o princípio da razoabilidade. Ambos impostos ao chefe do Executivo, para a própria elaboração e validade do decreto. Esses dois núcleos intelectivos serão os responsáveis imediatos por eventual análise de exorbitância ou não ao que a lei desdobrada quis, necessitou ou deixou genérico para ser efetivamente regulamentada. Aqui, qualquer parcela de exorbitância ao chamado ‘espírito da lei’ regulamentanda, no decreto, soará inexoravelmente como um vírus interpretatório que poderá contaminar efetivamente o restante da interpretação, supondo-se o decreto, então, totalmente exorbitante. Ou, noutra análise, favorecer ideólogos contrários ao decreto que poderiam querer aproveitar o escândalo da exorbitância pontual para dizer que todo o decreto há-se em ilegalidade.

Numa análise superficial e concreta, entre os 13 itens julgados parcialmente procedentes por Rosa Weber – e mesmo assim ad referendum do Plenário, afigura-se, s.m.j., de todo exagero o porte de arma para não apenas uma, mas duas armas. Os favoráveis à arma legal já lutam, historicamente, pelo porte de uma única para 1 arma; é o óbvio. Um decreto aposterístico aos que já foram anulados com grande gritaria social, ‘pulando’ diretamente para duas armas, no porte de arma, soa como uma estupidez normativa, acontextualizada na história da arma legal. Claro que, paralelamente, há nos decretos atuais as ‘perdas’ de controle tanto por parte do Exército quanto do Departamento de Polícia Federal (DPF), com quantidade de munição, psicólogos não cadastrados etc. Sabe-se que ‘controles’ atendem muito bem a um Estado e a uma sociedade autoritários, causando, o seu rompimento, um grau psicológico de insegurança.

Por outro lado, desde sempre há certa teimosia – particularmente prefiro, jocosamente, ‘ciúme’- por parte dos legitimados à concessão de porte de arma – o DPF- para com os colecionadores, atiradores e caçadores, os CACs, pois que na lei 10.826, o ED, artigo 6º consta expressamente o famigerado ‘salvo’. Há a proibição, no ED, do porte de arma indistintamente, ‘salvo’ para aquelas categorias ali expressamente arroladas, dentre elas os CACs. Este aspecto legal, frise-se, nunca foi respeitado. Por ninguém do Estado. No Judiciário, a inúmeras ações de CACs, deu-se o mesmo, sempre se teve pudores com o porte de arma para o CAC, mesmo com o excepcionante ‘salvo’ na lei específica. Se os CACs não estivessem legalmente no mesmo plano hierárquico, para efeito de porte de arma, que os integrantes das Forças Armadas e os policiais, dentre outros, seria o caso de, sim, se relativizar. Mas, como se vê por expressa ressalva na lei, não é o caso.

Assim, uma análise judicial acerca da ilegalidade de decreto tem, obrigatoriamente, que considerar dois pesos e duas medidas assimétricos, pois a disjunção categorial sai da própria lei. Há o público em geral, ao qual, em regra, é proibida a concessão de porte de arma, e há os CACs, legalmente equiparados a militares e policiais para efeito da referida exceção à proibição do porte de arma. O nome da lei é Estatuto do Desarmamento, mas foi ele próprio que quis e abriu a exceção.

Assim, não há dúvida de que existiria ilegalidade nos decretos por desdobrar menos de o que a lei 10.826 impõe com o ‘salvo’ em relação aos CACs. A matéria do porte de arma para os CACs, como legalmente regulada no ED, ainda continua a carecer de regulamento, apontando-se a timidez dos decretos neste tema específico, como um minus regulatório.

Como a decisão de Rosa Weber existe na qualidade de ad referendum do Plenário, será imperioso que os outros ministros, ao julgar, calibrem a dicotomia para perquirir nos decretos a dupla situação fática e legal, no sentido de examinar a real extensão regulatória dos diplomas.

Infelizmente, parece que o Supremo Tribunal Federal vem se pautando, nalguns poucos casos e em alguma medida – restrinja-se de passagem-, com o que diz ou quer ou cobra ‘uma’ opinião pública. Esta auscultação social se não muito bem dosada glosa o próprio império jurídico-constitucional da Corte, gerando, aí sim, uma insegurança jurídica técnica, uma que talvez não fosse facilmente percebida pelo público em geral, mas notada pela comunidade jurídica.

A imprensa ‘irada’ de José Carlos Barbosa Moreira, acima, ou o Brasil do ‘especialista (hoje, o Brasil é a pátria desses maravilhosos profissionais)’, como espetacularmente destila Roberto Da Matta no artigo do Estadão, Viramos Jacaré?, é um triste fato, descarado e sabido. Assim, do mesmo jeito que a ‘publicidade’ aparece à imprensa, superiormente a ela, não como quarto, mas como quinto poder, pondo-a em seu verdadeiro lugar, no instigante artigo do promotor e filósofo Gilberto de Mello Kujawski13, há se supor que ideologias ou visões de mundo concertadas também apareçam como combustível misturado a uma tal ‘pureza’ da imprensa, então isenta e impessoal. 

A questão das armas – também ela-, numa sociedade que parece se orgulhar de ser piegas, subverteu, por um pânico inoculado, o debate lúcido e racional, científico e fundamentado, dialético e negociado. A estupidez da polarização ideológica vem causando espumosidades moralistas e autoritárias com todo mundo xingando e processando todo mundo. Decreto ilegal ou inconstitucional não é matéria jurídica amigável ou palatável a qualquer um, porque envolve compreensões e intelectividades técnicas e inferências competenciais limítrofes. Para o público em geral, os ‘analistas’ e a imprensa atendem. Mas para um julgamento no STF são necessárias competências e distinções jurídicas. Os decretos não atraem toda esta infâmia de ilegalidade que se ‘quer’ neles e não sendo assim, estão adequados ao Estado Democrático de Direito. Mas tente explicar isto para um ativista da paz.

_____________________

1 LOTT, John. Preconceito Contra Armas. Campinas: Vide Editorial, 2015.

2 Entrevistas do Le Monde – Filosofias – O filósofo disfarçado. São Paulo: Ática, 1990, p. 22.

3 BARBOSA, Bene. Sobre armas, leis e loucos. Campinas: Vide Editorial, 2020, p. 46.

4 NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos – ou como filosofar com o martelo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 112.

5 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual civil – oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 5.

6 DUGUIT, Léon. Manuel de droit constitutionnel. 4 ed. Paris: Anciennes Maisons Thorin et Fontemoing, 1923, p. 506.

7 FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, 6 ed. São Paulo:Saraiva, 1993, p. 439.

8 AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 401.

9 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 217.

10 CANOTILHO, J. J. Gomes et all. Comentários à constituição do Brasil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 1309.

11 STF, Pleno – Adin 996/DF – medida cautelar; RTJ 158/54.

12 STF, Pleno – Adin 14358/DF – medida liminar; Diário da Justiça, seção 1, 6.8.1999, p. 5.

13 KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O quinto poder. In clique aqui, 2010.

Jean Menezes de Aguiar
Advogado. Professor da Pós-Graduação da FGV e do IPOG. Parecerista da Coordenação de Publicações Impressas da FGV e da RDA - Revista de Direito Administrativo, FGV.

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